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terça-feira, 28 de abril de 2015

Sobre liberdade e sobre silêncio


1) A liberdade é uma dimensão, medida criptogenésica pela qual, com maior ou menor incorrecção, nos referenciamos: é o espaço que existe entre heurística e hermenêutica; espécie rarefacta de partícula, visível que nem poeira entre luz desenfeixada por frinchas de janelas, mas, rapidamente, esvaecida. Dessa sorte, idoneísta, não pode ser definida como definitiva - somente deixada em aberto.


2) Compreendo a razão pela qual os anacoretas se entregavam à vida contemplativa, despojando-se de todas as superfluidades, eremicolando-se em ermos eremitágios: à medida que se vai envelhecendo, reduz-se o número de coisas de que se gosta, restando, somente, uma paixão, uma adesão tremenda a uma única fonte maior de luz, ofuscante das menoridades. Assim, tornando-se ruído o remanescente, procura-se o silêncio: o silêncio geográfico e psicogeográfico. Nenhum deserto será tão árido e nenhum despovoado tão vazio se o indivíduo que os atravessa estiver cheio.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Sobre a superstição (curtíssimo "off-topic" sobre alguma actualidade do país)


Da rubrica Livros que Vou Buscar ao Fundo das Estantes: se aqui, neste ensaio sobre «a compreensão do pensamento português» (essa coisa, às vezes, tão crípitca que é quase alienígena), não existirem respostas lúcidas sobre o ressurgimento popular da crendice e da superstição por culpa da crença na dita "maldição" do Béla Guttmann, então não sei onde poderão haver - e os portugueses estão perdidos.

(Entretanto, num limbo perto de si:)
 

sexta-feira, 21 de março de 2014

Jogo do Rato e do Gato


Entretanto, Plutão, o meu gato, está enfiado numa das minhas estantes a caçar o livro Rats de Robert Sullivan.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Diário Plutónico #2: O Gato Que Tinha Estrelas


O rabo do gato preto e branco mete respeito: inteiriçado como um ponto de exclamação, lustroso como orleã, não é uma cauda verdadeira, mas uma lembrança do nascimento do universo.
No princípio era o miado!
Um miado assertivo.
Birrento.
Um miado primitivo que pôs a poeira estelar em marcha – o miado divino.
Soou há pouco tempo, quando a Grande Mãe Gata teve uma nova ninhada. Dar à luz universos cansa, porém os gatinhos têm toda a energia – toda a que existe e que alguma vez existirá.
O nosso gato preto e branco, de cauda alçada, coça-se: este felino cosmogónico não tem pulgas, mas estrelas – polvilhadas pela pelagem lorigada e coruscantes como corindo em pó. Uma pata risca essa escuridão, faiscando um cometa sob a abóbada extramundana, feita de pêlo, e a comichão fulgente mergulha no mar como um ex-voto extinto. Saibam que é quando os gatinhos pretos e brancos andam no encalço das suas estrelas, com as garras e com os dentes, que nascem todas as estrelas cadentes.
Os sábios sabem que o universo está em expansão, mas desconhecem a razão.
É porque ele é um gato preto e branco que enfuna o pêlo para parecer maior… É um universo bebé, o gatinho, e na sua pequenez encontra-se a grandeza do Todo: planetas, meteoritos e constelações – borboletas, manuscritos e tubarões.
Que nome tem, este hipnopompo? O único que lhe serve: Plutão. Repousa (como lousa) num volume de velo venusto. Empandeira o rabo – pompadourante –, chilreando, longitroante.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Diário plutónico #1

Há catorze dias que sou dono de um gato preto e branco, com (mais ou menos) três meses de idade, a que chamei Plutão. Embora tenha alguma experiência a lidar com gatos, este é o primeiro que possuo e o mais novo com que contactei até hoje: foi-me oferecido por uns amigos, que o recolheram da rua.

No que concerne aos feitios, existem dois tipos de gatos: os tímidos e os curiosos. Plutão é muitíssimo curioso, o que é óptimo, porque, em regra, os gatos curiosos são os mais amistosos. Escrevi «mais amistosos», porque um certo grau de indocilidade será sempre de esperar. Os gatos não são como os cães: não fazem nada para agradar aos donos e é inútil castigá-los quando se portam mal. Estas idiossincrasias relacionam-se com um facto muito simples: os gatos comuns ainda não foram totalmente domesticados e retêm todos os comportamentos do gato selvagem africano, do qual descendem.
Qualquer domesticador de grandes felinos (leões, tigres, leopardos) sabe que castigar esses animais durante os treinos é uma perigosa perda de tempo, porque eles não entendem o conceito e apenas se tornam mais violentos. Os animais selvagens (incluindo os semi-selvagens gatos comuns) só reagem bem diante de reforços positivos: comida e carícias (preferem comida, todavia).
Os cães, por exemplo, foram domesticados muitíssimo antes dos gatos serem adoptados como animais de companhia e o apuramento de diversas raças domésticas de gatos é uma prática que remonta há, apenas, cento e cinquenta anos - é por essa razão que os gatos comuns e os gatos selvagens africanos são, praticamente, idênticos (inversamente aos cães e aos lobos).
Os cães foram seleccionados artificialmente para serem bons soldados, para terem um elevado sentido de obediência e tolerância total para com os caprichos dos donos que, hierarquicamente, lhes são superiores. Evoluíram para criar relações verdadeiramente simbióticas com as pessoas, ao ponto de algumas raças caninas terem desenvolvido sobrancelhas proeminentes de modo a serem capazes de comunicarem com mais eficácia: estes animais sabem interpretar expressões faciais humanas e como agir em conformidade com elas, mesmo que nenhum comando verbal ou gestual lhes seja dado pelos donos. Por outro lado, os gatos têm rostos inexpressivos e também não distinguem os rostos humanos uns dos outros, por isso é inútil avaliar o comportamento ou o estado emocional de um gato através do seu rosto ou tentar que ele nos entenda por via das nossas expressões faciais.
Os gatos comunicam connosco, quase em exclusivo, através de linguagem corporal: temos de aprender a interpretar os gestos que fazem com as orelhas e com as caudas. Alguns são idênticos aos da linguagem corporal canina, mas os significados são muito diferentes; por exemplo, os cães abanam horizontalmente as caudas para demonstrar contentamento, mas quando os gatos fazem o mesmo gesto estão a demonstrar irritabilidade ou ansiedade. Ao contrário dos cães, os gatos não entendem o gesto humano de apontar-se com um dedo certos objectos ou locais: apenas fitam o dedo, como se seguissem uma presa (e, às vezes, atiram-se a ele). Quando se quer chamar a atenção de um gato para alguma coisa é preciso olhar directamente para ela ou atraí-lo nessa direcção com um brinquedo para gatos.
É verdade que são muito teimosos, porque os lobos frontais dos seus cérebros são pequenos, o que significa que quando se fixam num determinado comportamento demoram muito tempo para esquecê-lo, porque não são capazes de pensar em mais nada - o multitasking não é para eles. Um gato assustado ou furioso é capaz de permanecer nesses estados durante um dia inteiro. 

Porém, os gatos são criaturas sociais, embora de uma ordem diferente da dos cães. O gato selvagem africano evoluiu para caçar presas pequenas, como insectos, pássaros e ratos, e é por essa razão que os gatos, ao contrário dos leões - ou dos lobos - não caçam em grupo: não faz sentido caçar-se um rato em grupo, porque ele é uma presa que, por culpa do seu tamanho, somente alimentará um predador. Ora, quando não existe a necessidade de caçar em grupo, deixa de existir a necessidade de organizar o bando numa hierarquia rígida (como uma tropa) e é por essa razão que as colónias de gatos selvagens e as de gatos ferais (gatos outrora domésticos que reverteram para o estado selvagem) possuem estruturas sociais muito mais plásticas que as alcateias. Ainda assim, os gatos comuns são animais territoriais e hierárquicos e os donos que tenham cautela ao ignorar essas naturezas.
Ainda não se sabe como é que gatos e pessoas se aproximaram, mas é possível que tenham sido úteis para manter pragas à margem dos núcleos habitacionais. Esta explicação é satisfatória, porque esclarece a razão pela qual os gatos ainda hoje se mantém semi-selvagens: em essência, foram adoptados para fazerem por nós aquilo que já faziam por eles próprios; logo, nunca existiu pressão para tornarem-se mais sociais. Adoptámos os gatos para serem caçadores, o que tem funcionado bem, porque os gatos vivem para matar pequenas presas - sempre. É a alegria deles. Se não têm presas pequenas à disposição, irão inventá-las. Para caçá-las, têm garras muito afiadas.
Os gatos não têm unhas: têm garras - tal como os leões e os tigres. Elas são como anzóis, evoluíram para a predação e irão ser usadas, dê por onde der. Extrair cirurgicamente as garras de um gato é um acto bárbaro que implica a amputação das falanges e cria animais mutilados e miseráveis que nem sequer são capazes de usar uma caixa de areia para eliminarem os seus dejectos: quem não quiser ter um gato com garras é melhor não ter um gato.

Os gatos bebés (até um ano de idade) são muito rebeldes, mas, ao crescerem, criam laços emocionais intensos com os donos, principalmente com os indivíduos que os alimentam. (É o reforço positivo de que falei há umas linhas.) São criaturas sensíveis que somente dão o que recebem: nesse aspecto, um animal inesperado com o qual podem ser comparados é o camelo. De todos os animais semidomesticados, os camelos são extremamente intolerantes a maus tratos e vingam-se sem hesitações de quem se esquece de abordá-los com delicadeza. (Talvez ferver em pouca água seja uma prerrogativa de animais que evoluíram em climas quentes.)

Seja como for, ter um gato é como ter em casa um pedacinho de um mundo ainda selvagem: um mundo onde felinos intrépidos subjugam répteis lendários.
   

terça-feira, 13 de agosto de 2013

O segredo da arte



Desvalorize-se o que está em baixo
e nunca se verá o que poderia estar em cima.



sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Sobre eReaders #2

O escritor norte-americano Nicholas Carr (The Shallows) publicou há quatro dias no seu weblog um artigo em que divulga relatórios estatísticos actualizados sobre a venda de eBooks que comprovam o declínio desse mercado: escreve Carr que «The AAP [Association of American Publishers] findings are backed up by a remarkable new Nielsen report indicating that worldwide e-book sales actually declined slightly in the first quarter from year-earlier levels — something that would have seemed inconceivable a couple of years ago» (sublinhado meu).
Os relatórios divulgados por Carr podem ser consultados aqui e aqui.

Apesar dessas ligações ainda profetizarem, desesperadamente, que 2014 será um ano espectacular para a venda de eBooks, é inegável que 2013 não está a sê-lo e que a morte definitiva desse suporte está para breve: um suporte recebido com enorme entusiasmo por editores sem escrúpulos e sem espírito que, contando com o beato deslumbramento sentido pelos tecnófilos mais tontos diante de tudo o que cheira à santidade da novidade, pensaram em produzir livros digitais sem os custos de impressão e distribuição, mas com preços de venda ao público da mesma grandeza daqueles com que são vendidos nas livrarias os livros de papel - chico-espertismo do mais abissal nível merceeiro que, felizmente, não medrou. Além disso, parece que esses chicaneiros da edição nunca pensaram (ou não quiseram pensar) que um livro disponível para venda em formato digital seria logo pirateado até à exaustão. Que lhes faça bom proveito.

É, pois, com regozijo que danço na sepultura dos eBooks, dos eReaders e de outras eStultices similares - monstros modernos que me repugnam profundamente. Aliás, há três anos que ando a cavar essa sepultura, como poderão ler nos meus artigos Sobre eReaders e Os Cangalheiros da Literatura, publicados em Agosto e Setembro de 2010, que vos convido a reler ou a descobrir: artigos que, neste momento, à luz dos supracitados relatórios de vendas, posso perfeitamente apelidar de predizentes.

Quando o tempo dá razão a um homem é sinal de que as suas ideias eram, de facto, as melhores.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Votos Vulpinos de Novo Ano


Votos sinceros de um próspero Ano Novo para todos os meus amigos e leitores: bem-hajam!

terça-feira, 27 de novembro de 2012

A heroicidade da inteligência


A única austeridade a que eu reconheço probidade é a da intransigência da inteligência contra a barbárie. Contra ela, e contra a fatuidade e a estupidez, erga-se a máxima inflexibilidade - erga-se toda a severidade. 
Este quadro, intitulado The Thinker: Portrait of Louis N. Kenton (1900), pintado pelo extraordinário artista norte-americano Thomas Cowperthwait Eakins, representa na perfeição a severidade a que me refiro. É um quadro que evoca um enorme sentimento de heroísmo; uma força intelectual fortíssima, imune ao superficial e à leviandade. Um ícone para um tempo hostil ao pensamento.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Raposices


Caros leitores, ontem descobri esta fofura de aldraba que não aldraba ninguém: é uma Raposa. Ora, a Raposa, por razões misteriosas que nem os mais doutos discernem, é o meu tóteme. Se algum dos caríssimos souber onde posso encontrar uma relíquia igual ou similar, por favor, envie-me essa informação por email para o endereço de contacto que está no canto superior direito do ecrã. Agradeço, em avanço, a vossa perspicácia e boa vontade. Abraços negros.


sábado, 29 de setembro de 2012

Desabafo


Hoje, como ontem, é preciso ter coragem de leão para ser-se gigante entre anões.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O triunfo da treta: história verídica


Haverá poema mais profético que The Triumph of Bullshit, escrito por T. S. Eliot? Profético na sua antevisão da desconsideração do intelecto em valimento da treta (da bullshit)? Como observou Harry Frankfurt em On Bullshit, os treteiros não se preocupam com a verdade, mas, somente em, entre aspas, "marcar pontos". Preocupam-se com a aparência do conhecimento, em mimetizar aquilo que pensam ser o conhecimento - e, muitas vezes, nem isso se encontra nos seus horizontes, tão limitados que estes são.

Como provou Otto von Guericke, no século XVII, através da sua luminosa experiência com os dois hemisférios de Madgeburgo (sobre os quais também escrevi nesta ligação), o vácuo - o vazio, lá está! - tem uma força extraordinária. Ainda hoje tem - o que é verdadeiramente espantoso: o vazio de inteligência, de carácter, de genialidade, tem uma força tremenda. Este, sim, é que é o verdadeiro "vazio lipovetskiano" no qual, infelizmente, se vive: é a era do vazio, pois é, mas de vazio de ideias, de intelecto, de valor. Existe por aí gente de muitíssima má qualidade: gente que não é sequer qualificada o suficiente para dar lustro ao chão pisado por aqueles a quem nunca haverão de chegar aos calcanhares. Cabe, pois, a quem tem horror ao vazio ter tolerância zero para com a treta e os treteiros.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Requiescat in pace

Não gosto da música de Whitney Houston, mas a sua morte serviu para, mais uma vez, me lembrar que gosto ainda menos do modo cruel como facilmente se desvalorizam as vidas que tiveram os artistas, especialmente aqueles que, de acordo com os padrões higiénicos impostos pelas sociedades às quais devotaram anos de carreira, sucumbiram em condições relacionadas com abuso de álcool e drogas. Serão vocês, pessoas comuns, impolutas nas vossas escolhas? Ou serão motivadas pela constatação de que, inversamente aos artistas que desprezam, ninguém se lembrará dos vossos nomes quando a terra sepulcral cobrir os vossos simplórios caixões de pinho? Por que motivos acolhem com satisfação que os programas noticiosos televisivos abram com reportagens sobre todo o tipo de insignificâncias do mundo do futebol, mas consideram uma perda de tempo que se gaste quinze minutos a emitir-se retrospectivas das vidas de quem alimentou sonhos de milhões de pessoas? Vocês ouvem as músicas, vêem os filmes, admiram os quadros e lêem os livros de quem é mais talentoso, sofisticado, inteligente e generoso que vocês e, no final, não mostram nenhum respeito, nenhum apreço, nenhuma consideração. Isso é triste. Triste e revelador de uma mente pequena.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

«Extermine-se todos os brutos»


No livro profético Isaías (séculos VIII-VI a.C.) vaticina-se que «o lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos, e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso, as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha com o boi», mas o filósofo norte-americano Jeff McMahan não está disposto a esperar que os predadores mudem de dieta e propõe uma solução mais radical para que o mundo alcance mais depressa um estádio harmónico.

Se vocês são indivíduos que acham que o veganismo já é radical o suficiente é porque ainda não se lembraram que existem animais (não humanos) que são carnívoros e que não têm ideias nenhumas em deixar de sê-lo. Que fazer com bichos assim, que continuam a comer outros bichos em vez de tofu ou seitan? McMahan diz que a única coisa a fazer é exterminá-los a todos.
Em 2010 escreveu uma peça intitulada The Meat Eaters, para o jornal The New York Times, na qual, em síntese, defende o extermínio de todas as espécies carnívoras para criar-se um mundo natural mais inclusivo (seja lá isso o que for) apenas com espécies herbívoras. Segue-se um excerto para perceber-se melhor qual o tipo de retórica de que se está a falar:
«The claim that existing animal species are sacred or irreplaceable is subverted by the moral irrelevance of the criteria for individuating animal species. I am therefore inclined to embrace the heretical conclusion that we have reason to desire the extinction of all carnivorous species».
(Imagem: Peace de William Strutt. 1896.)

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Jesus Cristo, exorcista


No contexto desta notícia, sobre o desejo do patriarcado olissiponense de que a prática do exorcismo retorne ao quotidiano, vale a pena recordar, de modo sucinto, algumas considerações sobre aquele que, com efeito, terá sido o primeiro exorcista cristão: Jesus.
Segundo os evangelhos sinópticos, Cristo devotou uma parte significativa dos seus dias à prática do exorcismo, expulsando espíritos indignos e demonetes dos miseráveis que com ele se cruzavam; na verdade, tão frequentemente se devotou ao exorcismo que é legítimo dizer que seria esse o seu ganha-pão.

O étimo da nossa palavra exorcismo é a palavra grega exorkismós que apenas significa prestar juramento, mas nos evangelhos canónicos a palavra que aparece em referência à prática do esconjuro de demónios é a grega ekballein que significa repelir ou expulsar. Em S. João, por exemplo, quando Jesus diz «Tudo o que o Pai Me dá virá a Mim; e não repelirei aquele que vem a Mim» (6:37), no texto original correspondente pode ler-se «ekbaló exó». No mesmo evangelho (2:15) pode ler-se «Com umas cordas, fez um chicote e expulsou-os a todos do Templo» na passagem alusiva ao encontro com os vendilhões e também aqui é usado o verbo original ekballein.

A palavra exorkismós é tardia e revela a exclusividade da prática exorcística sistematizada por um agente eclesiástico autorizado (um clérigo exorcista que se apoia na sua fé pessoal e em textos oficiais - podem ser os textos exorcísticos do Rituale Romanum - que são por ele recitados na presença de um endemoninhado de maneira a expulsar o demónio escondido). No período narrado pelos evangelhos existiram diversos exorcistas itinerantes, de várias etnias, e em São Marcos (9:38-40) pode ler-se como os apóstolos encontraram um desses exorcistas errantes que dizia expulsar demónios em nome de Cristo: «Mestre, vimos alguém a expulsar demónios em Teu nome, sem que nos siga, e proibimos-lho». Cristo respondeu-lhes: «Não lho proibais, porque não há ninguém que faça um milagre em Meu nome e vá logo dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós». Este trecho é interessante, porque desvenda que 1) o exorcismo era uma prática comum e aceite e que 2) Cristo se considerava um irmão dos exorcistas itinerantes.
Convém esclarecer que, embora a crença demoníaca seja um elemento substancial do Novo Testamento, não há Diabo nenhum no Pentateuco, nem sequer no livro sapiencial Job. No Antigo Testamento é sempre Jeová, deus único, que faz tanto o Bem como o Mal, seja directamente ou por intermédio de um agente escolhido para o efeito (como em Job), mas o proverbial Diabo ou Satanás que a igreja popularizou não existe. Em síntese, a dicotomia cristã entre o Bem e o Mal, causados por entidades diferentes (Deus e Satanás), é uma contaminação do antigo zoroastrismo persa (século VI a.C.), religião que assenta num dualismo entre um deus bom (Aura Mazda) e um deus mau (Ariman). Estes deuses gladiar-se-ão numa batalha decisiva, na qual o Bem triunfará definitivamente sobre o Mal; crença sobre a qual se fundou o último livro do Novo Testamento, o Apocalipse (século I). Também é persa a posterior doutrina gnóstica do maniqueísmo, criada pelo profeta Mani (século III), que postula que a ulterior vitória do Bem
na batalha apocalíptica no Monte Megido (Armagedão) não está garantida.

Em paralelo, os evangelhos informam-nos que Jesus operava como curandeiro. Em São Marcos (7:32-35) é descrito como Cristo curou um surdo-gago enfiando-lhe os dedos nos ouvidos e cuspindo-lhe para a boca e como curou um cego cuspindo-lhe para os olhos (8:23-26). Trata-se de um método primitivo que, de um ponto de vista histórico, se inscreve na mentalidade da época: o historiador romano Cornélio Tácito descreveu nas suas Histórias (século I) como o imperador romano Vespasiano era capaz de curar a cegueira com o seu próprio cuspo e, também, outras doenças apenas com o poder curativo do seu toque.
A crença na força salvífica do toque de um soberano continuou a ser instrumentalizada ao longo da Idade Média como sendo um sinal de divino ministerio: ou seja, de que os reis eram indigitados por Deus para governarem e, como tal, partilhavam, até certo ponto, dos seus poderes. No que concerne à religião judaica, acreditava-se que os verdadeiros rabis possuíam poderes mágicos que lhes eram oferecidos por Deus para que, desse modo, pudessem fazer magia e partilhar da Sua glória. Sublinhe-se que nos versículos supracitados de São Marcos não existe nenhuma alusão, seja directa ou indirecta, a Deus ou à fé dos doentes: Cristo cura somente com a propriedade mágica do seu cuspo. É um acto de cura o mais elementar possível e perfeitamente consonante com o universo das mezinhas caseiras.

Na minha opinião, o mais insólito exorcismo de Cristo não é o célebre escorraçar dos espíritos impuros do corpo de um desgraçado para uma vara de porcos (São Mateus 8:28-32; São Marcos 5:1-13; São Lucas 8:27-33 - não há menção desta história em São João, porque este evangelho caracteriza-se por não referir nenhuns exorcismos, embora, como vimos, use o verbo ekballein em outras circunstâncias), mas a expulsão de um demónio do corpo de um paralítico na cidade de Cafarnaum, ao Norte do Mar da Galileia (São Marcos 2:1-12). A paralisia, como a mudez, a surdez, a cegueira, a lepra e a esquizofrenia, era considerada um sinal típico de possessão diabólica.
Nesse curioso episódio, Cristo pede que o endemoninhado seja transportado num catre para dentro da casa onde residia na altura (a de Pedro, presume-se pelo texto antecedente), através de um buraco feito no telhado; naquele tempo, os telhados das tradicionais casas israelitas eram terraços feitos de madeira unida com canas e cobertos de barro misturado com palha. Quatro homens desceram o catre com o paralítico pelo buraco aberto no telhado e Jesus disse-lhe «Meu filho, os teus pecados te são perdoados»; em seguida, ordenou-lhe que voltasse à sua casa: curado, o homem obedeceu e saiu pelo seu pé. Esta descrição faz lembrar um primitivo ritual de exorcismo, no qual os populares tentam ludibriar o demónio da seguinte maneira: descem o possesso para dentro de casa por um buraco no telhado, como neste trecho de São Marcos, ou transportam-no através de uma janela, o que tem o efeito de fazer crer ao demónio que apenas é possível entrar na habitação por essa via. Logo que o exorcista expulsa o demónio, este sai por onde entrou e de imediato é vedado o buraco ou a janela, ficando a casa livre de futuras intromissões dessa entidade sobrenatural.

Em diversos países europeus, as casas medievais ainda eram construídas com portinholas ou postigos para que o Diabo saísse, em herança desse ritual de exorcismo; essas passagens deram origem, mais tarde, às portas exclusivas pelas quais se retiravam os mortos de dentro das casas. O livro Faust: Eine Tragödie, de Johann Wolfgang von Goethe (1808), ainda alude a este conhecimento popular de demonologia nas seguintes palavras de Mefistófeles a Fausto: «Diabos e espíritos obedecem a uma lei, como deves saber: devem usar o mesmo caminho para entrar e para sair. Entramos por onde queremos, mas não podemos escolher a saída» (verso 1410, página 44; Oxford University Press, 1998).

(Imagem: Mosaico bizantino do século VI na basílica italiana de Santo Apolinário, o Novo, em Ravena.)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

O verdadeiro criador do Carocha

(Josef Ganz no seu Maikäfer, em 1931.)

Que a história do Carocha ter sido "inventado" por Hitler era uma espécie de lenda urbana já se sabia, mas que também o austríaco Ferdinand Porsche pouco teve a ver com a sua invenção já é uma novidade: o jornalista holandês Paul Schilperoord descobriu que o verdadeiro inventor do Carocha foi um judeu germano-húngaro chamado Josef Ganz, que, em 1931 (dois anos antes do modelo Tatra V570 do austríaco Hans Ledwinka - até agora apontado como sendo a provável base do V1 de Porsche), criou um protótipo de um carro mais barato "para o povo" que chamou de Maikäfer (Carocha de Maio).

O livro de Schilperoord intitula-se The Extraordinary Life of Josef Ganz: The Jewish Engineer Behind Hitler's Volkswagen e pode ser comprado nesta ligação.

Este site tem informações interessantes sobre o tema: http://www.ganz-volkswagen.org


(O modelo Standard Superior produzido em 1933 pela companhia alemã
Standard Fahrzeugfabrik, segundo os modelos de Josef Ganz
.)

Link

domingo, 22 de janeiro de 2012

A morte de Sherlock


Já vi o último (e épico) episódio da segunda temporada de Sherlock: brilhante! Há muito tempo que uma série de televisão não me entusiasmava tanto. Anseio pela terceira temporada.

Entretanto, acho que descobri como é que Sherlock Holmes encenou o seu suicídio - é tão simples.
A minha ideia é a seguinte: a meio do episodio, Sherlock percebe que vai mesmo morrer às mãos de Moriarty, de uma forma ou outra, mais tarde ou mais cedo, e decide tomar a iniciativa de "matar-se" antes que isso aconteça. Então, combina um encontro com o seu adversário no telhado do St Bartholomew's Hospital. Tenham em mente que a ideia de Sherlock quando sobe para o telhado já é encenar um suicídio, por isso quando é confrontado com esse desafio por Moriarty, que o chantageia com a morte dos amigos, o seu plano não sofre com isso. Quando salta do parapeito, vemo-lo a cair pesadamente no passeio, mas isso é um truque de montagem: na verdade, Sherlock caiu num camião de lixo hospitalar carregado de sacos, que estava convenientemente estacionado junto à berma - quando o vemos a cair no passeio, ele está a saltar do camião para o chão.
Ainda vemos a traseira do camião parado junto ao corpo estendido no chão, por um segundo, e, em seguida, num plano picado, vemo-lo a afastar-se pelo canto superior esquerdo da imagem.
O doutor Watson nunca viu o camião, porque entre ele e o local onde esse veículo estacionou encontra-se um edifício mais baixo. O grupo de pessoas que rodeou o corpo de Sherlock serão cúmplices deste, talvez pertencentes à sua rede dos Irregulares de Baker Street, e os paramédicos diligentes estavam em conluio com a patologista forense Molly que auxiliou Sherlock a encenar o suicídio, pedindo ao camião do lixo que estacionasse naquele local. Um dos figurantes até impede que Watson tome o pulso a Sherlock.

Estou certo? Tenho de esperar pela terceira temporada para descobrir. Até lá, vou comprar o DVD da segunda. O da primeira já cá canta.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Aforismo


A cultura verdadeira é matéria efervescente, infundida de ânimo pelo fogo da imaginação, mas é, também, plutónica - abissal - e à sua superfície solidifica-se outra cultura: leviana; em cremosos atóis que ocultam a agitação inferior, mas que nunca poderiam existir sem ela. São, pois, duas culturas diferentes - uma profunda, límpida e transformadora; e outra informe, inútil e opaca.