Cronenberg não tem tido a atenção que merece no que concerne à
antecipação de algumas atitudes que a sociedade contemporânea adoptou
recentemente face à tecnologia digital; embora os seus filmes não sejam,
per se, perfilháveis no género da ficção científica, eles encerram uma
acutilante reflexão sobre a imprevisibilidade que essas tecnologias
comportam.
Este cineasta
canadiano foi o primeiro, quanto a mim, a antecipar através da metáfora
televisiva o advento da Internet e o modo como a rede digital de
informação se infiltraria na esfera privada, mudando comportamentos e
pensamentos: a dada altura, no filme Videodrome, de 1983, o Professor
Brian O’Blivion, Papa e testa de ferro, em simultâneo, do novo movimento
videodrómico e que só pode ser visualizado num ecrã, declara numa das
suas emissões piratas que «em breve, todos teremos nomes televisivos».
Ou seja, em breve todos substituíriam as suas identidades por criações
virtuais - avatarianas. Ora, esta é, digamos assim, a psicotoponomia do
espaço virtual, da maleabilidade entre o corpo e o digital - prefigurada
no slogan «vida longa à Nova Carne» que serve de senha aos apaniguados
de O’Blivion. Por aqui ressoa o desiderato do movimento Trans-humanista e
a sua cruzada cibernética de transpôr a actual condição humana (evito
empregar a palavra “transcender”, porque o que esse movimento
neo-escatológico propõe é, de facto, a transposição da carne, mas
mantendo o repertório mental e emocional humano — algo que numa
autêntica transcendência seria totalmente deixado para trás). Assim, no
filme Videodrome, os esbirros da Nova Carne querem, de facto,
transcender a Velha Carne. Cronenberg resgatará este conceito no filme eXistenZ, no qual, já perto do fim, é desvendado que a marca do jogo
virtual de novas consolas orgânicas que o grupo de teste esteve a
experimentar se chama Transcendenz.
O filme The Fly, de 1986,
interpretado na altura como alegoria para a sida (o próprio Cronenberg
disse várias vezes que o interpretava como uma alegoria do
envelhecimento), aparece hoje como um aviso chocante contra a
imprevisibilidade da tecnologia: recorde-se que o filme, para além do
horror corporal, inicia numa toada tecnológica, sobre a possibilidade do
teletransporte - tecnologia que, a este instante, volta a ser uma das
mais faladas nos círculos dos ministérios de defesa e empresariais. O
teletransporte de partículas já é, aparentemente, possível — inclusive
para distâncias extraterrestres. Resta saber se teletransportar
organismos vivos, entidades profundamente complexas, será, sequer,
possível, posto que o teletransporte se sustenta numa espécie de
clonagem; tal qual, para melhor se compreender, a cópia e envio de
ficheiros pela Internet, em que se envia uma cópia do ficheiro e não o
próprio ficheiro. Ora, The Fly atira-nos para o colo, ainda com o
sangue fumegante, duas inquietações: 1) que riscos advirão de
imprevisíveis erros na aplicação de uma nova tecnologia?; e 2) será que o
indivíduo poderá conservar a sua identidade no contacto com a
tecnologia ou será, inevitavelmente, metamorfoseado para além dos
limites do reconhecível? No seu processo de metamorfose, o protagonista
perde a forma humana, perde a voz humana e, no final, parece perder o
pensamento humano, antes de pedir para ser abatido depois de fundir-se,
mais uma vez acidentalmente, com parte da própria cabine de
teletransporte, hibridizando o orgânico com o inorgânico. Em suma, todo o
filme é, de facto, sobre o modo arrogante e frívolo com que se lida com
uma tecnologia ainda desconhecida. Os gregos antigos chamar-lhe-iam
hubris.
Em eXistenZ, de 1999, são os jogos de consola a
temática central da reflexão sobre como a virtualidade pode transformar o
indivíduo, mas note-se que as consolas - que se conectam ao corpo do
jogador através de uma mucosa aberta na coluna - são seres vivos,
orgânicos, criados artificialmente para o efeito. O jogo aparenta ser,
neste feitio, uma espécie de sonho construído entre a consola e o
jogador — sugestão reforçada pela relação de dono e mascote que a
personagem principal tem com a sua consola. Pode ver-se aqui uma crítica
à dependência e antropomorfização do objecto da dependência, mas sem
descartar essa perspectiva também vale a pena introduzir a ideia de que,
já que falamos em realidades virtuais - viver uma verdadeira realidade
alternativa: ou seja, experimentar ser Outro, em vez de passear-se num
programa já definido -, só um ser vivo pode definir aquilo que é uma
realidade em específico: ser humano, ser animal ou ser planta — sair de
si para ser outra coisa que não visualizar um pacote já preparado pelos
designers e programadores. Penso que esta é a chave para compreender a
mensagem de eXistenZ — ou Transcendenz. No fundo, é, ao contrário do
panfleto trans-humanista, a negação da escatologia: se há transcendência
- e não mera transposição - não se pode falar em escatologia. Esta
prevê sempre um melhoramento, um aperfeiçoamento de condições prévias,
um fio de continuidade. A transcendência não quer saber disso para nada:
é, para empregar a imagem entomológica de The Fly, uma mudança de
estádio, de crisálida a novo organismo. Por momentos, no desfecho do
filme, o monstruoso protagonista de The Fly parece ter alcançado esse
patamar, demonstrando uma atitude e sentires que de humano já nada
reservam. Mas sob uma segunda e mais radical transformação, o humano
sobe à superfície e pede para morrer.
Clemência, comiseração ou,
por outro lado, a busca de querer sentir-se novamente humano através
dessa derradeira experiência que é o falecimento, momento em que,
segundo diz a tradição, vemos as recordações da nossa vida. Será que o
híbrido de homem, insecto e máquina, buscava essas recordações para se
sentir humano novamente?
E quanto a nós, transformados de
forma irremediável por uma qualquer nova tecnologia dominada
displicentemente, quem se apiedará de nós com um último tiro na cabeça,
de molde a nos sentirmos humanos outra vez?