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sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Morreu António de Macedo


Morreu António de Macedo - soube há poucos minutos.
Conheci o António em finais de 2005 e fomos, desde essa altura, mantendo o contacto, falando de livros e de outros assuntos. Participámos juntos em diversas palestras e mesas-redondas. O António apresentou alguns dos meus livros, prefaciou um, e por tudo sinto-me grato e privilegiado. Das nossas conversas de café, tidas às tardes num local perto de sua casa, resultou uma longa entrevista que publiquei no meu blogue. Quando lembro os meus mortos, os indivíduos que me foram próximos e de quem tenho saudades, faço-o, sempre, de modo anónimo, em plural: não cito nomes, não me aproveito da sua memória para publicidade pessoal, como, infelizmente, por vezes se vê por aí. A partir de hoje, o António faz parte dos meus mortos: um grupo que de morte só tem a designação, pois a sua presença, em mim, não é outra coisa senão vida. Adeus, António. Obrigado.


terça-feira, 8 de dezembro de 2015

«O Fantástico e o Real» nas Conversas Imaginárias 2015


Informo os fãs e amigos que irei estar na Fyodor Books no próximo sábado, dia 12, às 16H45, para uma tertúlia literária subordinada ao tema «O Fantástico e o Real»: conversa, essa, que contará ainda com o insigne cineasta e escritor António de Macedo como meu companheiro de mesa. A tertúlia insere-se no programa do evento Conversas Imaginárias 2015, organizado por Rogério Ribeiro e João Campos: um elenco de temas e palestras em órbita da literatura dita fantástica e análogos universos diegéticos. Apareçam, porque quando eu e o António nos juntamos o resultado é sempre espectacular -- quem já assistiu a eventos anteriores sabe que é verdade. Daí que agradeço a vossa presença e a divulgação: toca a partilhar.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Crowdfunding para filme sobre o cineasta António de Macedo


João Monteiro, co-organizador do MOTELx (Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa) e realizador do documentário em produção Nos Interstícios da Realidade: O Cinema de António de Macedo (sobre a carreira cinematográfica do realizador e escritor António de Macedo) abriu uma campanha de crowdfunding para reunir os fundos necessários para completar esse filme, cujo trailer publico em seguida. 



A ligação na qual poderão contribuir para este projecto é a seguinte: http://ppl.com.pt/pt/prj/fundoapoiocinema/support

Esta campanha de crowdfunding terminará em meados de Maio: admiradores da obra de António de Macedo, impõe-se a vossa participação.

domingo, 11 de novembro de 2012

Entrevista com António de Macedo - 3ª Parte

Com a publicação da terceira parte da longa e pormenorizada entrevista que fiz ao cineasta e escritor António de Macedo cessa o intervalo um pouco mais prolongado do que o previsto desde a publicação da segunda parte da entrevista até este momento. Porém, creiam que valeu a pena esperar - até porque esta parte da conversa que mantive com Macedo adquire um cunho especialíssimo na conjuntura bem desgovernada que, presentemente, atravessamos: a coragem intelectual, artística e cívica de Macedo é uma lição.

Poderão ler (ou reler) as partes anteriores nesta ligação e aqui. Em breve, publicarei a quarta parte desta entrevista que, atrevo-me a dizer, já é um documento imprescindível para os numerosos admiradores da obra de António de Macedo. A ler, portanto, com muita concentração.


(continuação da 2ª parte)

David Soares – Diga-me, na sua óptica, como é ser-se um homem de cultura, sensível, inteligente, à frente do seu tempo, numa conjuntura espácio-temporal absolutamente sufocante e cheia de indivíduos que… olhe, que não percebem nada. Como é que se consegue lutar contra isto?

António de Macedo – Não se consegue, digo-lhe já, honestamente. Não se consegue. De qualquer maneira, a sensação que eu tenho, é a de que nasci no país errado, no planeta errado… no tempo errado, provavelmente… E não digo isto para me vangloriar, não é que eu seja melhor do que os outros: é uma questão de sensibilidade, de maneira de ser. Cada macaco no seu galho… e, se calhar, eu fiquei pendurado no galho errado. Não é que eu seja pior macaco ou melhor macaco do que os outros. Isso não me impede de ir fazendo, porque penso que há outras pessoas que estão numa situação semelhante. É isso que noto, através das reacções de contactos e amizades e tudo isso. O simples facto de estarmos aqui a conversar prova que estamos no mesmo galho, o que é porreiro. Embora possamos ter opiniões diferentes e até divergentes nisto ou naquilo, entendemo-nos porque temos um ideal que nos é comum, o elevado ideal que nos põe no mesmo galho! E não é assim um caso tão raro como isso, obviamente. Embora não seja frequente. Em dez milhões de portugueses, provavelmente, pessoas como nós serão poucas. Mas existem! Se calhar, só por causa dessas, vale a pena continuar a puxar a carroça. A carroça dos dez milhões… Vamos continuando a puxar a carroça, até porque não temos outra coisa a fazer. Isso é que é dramático. Estamos aqui, é aqui que temos de trabalhar, é aqui que temos de construir e que temos de criar a nossa própria realidade que é, no fundo, aquela realidade fantástica – ou não… A tal realidade dos interstícios entre as assimptotas… E se isso ajudar a melhorar, nem que seja um bocadinho, o planeta inteiro… por que não?... Já terá valido a pena termos nascido no sítio em que nascemos e na época em que nascemos. É a única consolação que eu tenho. Vamos continuando.

DS – O certo é que todas as épocas, enfim… Esta época tem, de facto, coisas muito hostis à inteligência e à sensibilidade, mas o certo é que todas as épocas são más. Não existiram épocas ideais.

AdM – Não existiram. Sempre houve gente a queixar-se.

DS – Mas parece que há épocas que vão mais ao encontro de certas ideias e de certas formas de fazer. Vivemos numa época um bocadinho hostil…Há pouco falávamos do som… Eu acho que, hoje em dia, vivemos numa época muito emocional…As pessoas valorizam muito a emoção, mas a emoção fácil…

AdM – Exactamente.

DS – …o sentimentalismo de pechisbeque… As pessoas valorizam muito isso e eu acho que é uma consequência de… Aviso que esta é uma ideia completamente heterodoxa… É uma consequência de, desde umas décadas para agora, vivermos numa sociedade que tem, lá está!, que tem música de fundo por todo o lado.

AdM – É verdade. Isso é verdade.

DS – O António sabe isto muito bem. Num filme, por exemplo, vemos uma cena dramática… Se for uma cena sem música, podemos sentir menor ou maior tristeza, mas se a cena tiver uma banda-sonora adequada ficamos derrotados.

AdM – É a experiência, que eu costumo dizer, de se ver um filme de terror sem som: não mete medo a ninguém.

DS – Hoje em dia, temos banda-sonora em todo o lado: nos elevadores, nos centros comerciais, nos autocarros… Isto condiciona as pessoas a não pensar – e a sentir.

AdM – Exactamente. E a não ver: também condiciona a não ver.

DS – E obras como a do António pedem pensamento. Pedem reflexão da parte de quem as vê…

AdM – E de quem as ouve.

DS – E de quem as ouve. Acho que, cada vez mais, vivemos numa época pouco propícia a que se façam este tipo de obras, que pedem pensamento. O cinema, hoje em dia, é uma coisa muito diferente, por exemplo.

AdM – É muito diferente. Até pelas tecnologias. Hoje em dia existem tecnologias que tomara eu que tivessem existido no meu tempo. Eu tinha ideias, recordo de ter tido ideias para fazer certas coisas nos meus filmes e que não consegui, porque não havia tecnologia e, hoje, quando vejo certas coisas que os programas de computador fazem, penso “se eu já tivesse isto no meu tempo, o que eu teria feito…” Quer dizer… Eram ideias que me vinham à cabeça, coisas mirabolantes, mas a que eu não podia dar concretização. O cinema hoje é muito diferente.

DS – Há cinema esotérico, hoje em dia?

AdM – É uma boa pergunta.

DS – Por exemplo, costuma-se dizer que o David Lynch faz uns filmes meio-esotéricos. Eu acho que não, mas…

AdM – No caso da ficção científica, quem era esotérico, verdadeiramente, era o Philip K. Dick, que era um gnóstico. Assumido. A gente lê o «VALIS» e outros livros dele… Por exemplo, «A Transmigração de Timothy Archer» é um romance profundamente esotérico e, de modo geral, todos os romances dele são altamente esotéricos. Quando nós vemos os filmes feitos a partir desses romances percebemos que as histórias perderam o esoterismo todo. Os filmes sobrevalorizam o aspecto espectacular. Por isso é que a herdeira dele proibiu, a partir de uma certa altura, que os livros fossem adaptados para cinema: porque não estavam a reproduzir o verdadeiro espírito da obra do Philip K. Dick, isto é extremamente interessante. Depois, há um cinema esotérico estranho, que é o caso do «The Matrix», que é altamente esotérico, também.

DS – Além de ser muitíssimo derivativo. É sincrético.

AdM – Pois.

DS – Vai buscar umas coisas aqui, outras ali… E plagia altamente outras obras de ficção que passaram mais abaixo do radar. Mas quando penso nos filmes do António… Acho que o António era o cineasta perfeito para adaptar ao cinema o romance «A Voyage to Arcturus» do David Lindsay. É um fabuloso romance gnóstico, esotérico, apesar de ser uma ficção científica. O crítico de literatura que escreveu o «The Western Canon», o Harold Bloom, tentou armar-se em romancista com uma sequela para esse romance, intitulada «The Flight to Lucifer: A Gnostic Novel». É uma sequela não-oficial de «A Voyage to Arcturus».

AdM – Não conhecia esse livro.

DS«A Voyage to Arcturus» consiste numa história em que duas personagens vão, obviamente, para a estrela Arcturus… Viajam numa espécie de multiverso gnóstico-cabalístico, é muito interessante. E é verdadeiramente esotérico, não usa o esoterismo como uma pátina.

AdM – Ora aí está! Como disse, não conheço esse livro, mas pelo que me diz, isso está certo e faz muito sentido. Por outro lado, em termos de esoterismo… Não é uma coisa muito bem vista. Ou é usado num sentido banal, ou seja, paranormal… até há por aí uma quantidade de filmes e séries de televisão paranormais que nunca mais acabam e que, às duas por três, acabam por ser vagamente esotéricos, mas pela rama, porque só roçam o esoterismo, não são esotéricos no núcleo… Aliás, o verdadeiro esoterismo é indissoluvelmente iniciático, tem de estar ligado à superação de provas e à correlativa iniciação nos Mistérios. Não conheço, assim, nenhum filme cem por cento esotérico. Com os romances é diferente, ainda há alguns… do século XIX e do século XX… Os livros do Thomas Mann têm muito esoterismo, o «Doutor Fausto», por exemplo. «O Eleito», também dele, é um romance altamente esotérico… Tal como, ou mais ainda, o romance «Zanoni», de Bulwer-Lytton, ou os romances cabalístico-iniciáticos de Gustav Meyrink. E até do Bulgakov, que era comunista, temos o «Margarida e o Mestre», a maneira como tudo está composto no livro, a corte diabólica transposta para a modernidade, com as palhaçadas modernas… São romances que de uma forma mais ou menos explícita, ou mais ou menos implícita, incluem sempre uma proposta iniciática… Há, de facto, um certo esoterismo, talvez disfarçado, que anda por aí em algumas obras, mas, curiosamente, ele não é assumido e a crítica literária quando se refere a essas obras não refere o seu lado esotérico, refere outros. O lado fantástico, eventualmente, e o lado… Como é que eu hei-de dizer?... Levam essas fantasias como se fossem críticas a realidades que não estão bem.

DS – É a velha história de que o fantástico só é válido enquanto alegoria de situações sociais.

AdM – Para desmontar coisas que não estão bem e que, então, se levam para o lado do fantástico, de maneira a gozar com elas, para demonstrar que são um disparate. Agora, uma coisa esotérica pelo esoterismo… Ou se cai numas chachadas, como em alguns romances portugueses… Uma pessoa até começa a chorar, porque são de uma esoterice tão imediatista que acabam por ser só pirosos. Não são livros subtis. Quando a editora Hugin funcionava, por exemplo… eu era muito amigo deles… pediram-me para apresentar um romance esotérico de uma autora portuguesa. Fui ler o romance e ia morrendo de susto: era altamente esotérico, mas de um esoterismo bê-á-bá!… Parecia uma novelização daqueles manuais de ocultismo-de-quiosque que se vendem por aí a granel. Era muito mau. E eu pensei: “ninguém vai engolir isto, é uma vergonha completa…” Eu já não podia dizer não e tinha de apresentar o livro. Ora, como é que eu descalcei esta bota? Geralmente, quando se apresenta um livro de que a gente gosta, diz-se que o livro é bom, explica-se porquê e citam-se excertos. Quando a gente não gosta… Aliás, felizmente, foi a única vez que me aconteceu não gostar de um livro que apresentei… Então, como é que fiz? Do que é que eu me lembrei? O tema que a autora abordava era um tema esotérico e por acaso, como tema, até era interessante: então, comecei a falar sobre esse tema e sobre autores que já o tinham abordado e nunca referi o livro dela. Fiz a apresentação toda sem falar no livro apresentado, somente à volta do tema que a autora escolheu e sobre autores, este e aquele, que mais ou menos tinham falado do mesmo tema. Mas romances esotéricos não há muitos. Há é ensaios. Sobre o quinto-império, por exemplo. O Fernando Pessoa também andou nessas áreas e tem uma série de lucubrações sobre isso, algumas muito interessantes, mas quando se entra pela ficção, propriamente dita, seja na literatura ou no cinema… Cinema português esotérico, não conheço nenhum. Fantástico, sim, há umas coisas, não muitas, mas esotéricas, que me lembre, não conheço nenhumas. E mesmo no estrangeiro, no cinema estrangeiro, não me lembro de nada verdadeiramente esotérico, no sentido iniciático do termo, tirando, talvez, como disse, «The Matrix», apesar das reservas, bem observadas, que o David levantou, e, curiosamente, toda a proposta estrutural da série de filmes «Star Wars»…. Mas o facto de eu não me lembrar de outros não quer dizer nada, porque não conheço tudo. Se calhar até há muitas coisas interessantes. Como, aliás, agora o David me apresentou o autor da «A Voyage to Arcturus», que eu não conhecia. É um exemplo.

DS – Quando o António chegou à altura funesta de não conseguir filmar, pode dizer-se que continuou a explorar os seus temas na escrita ou ela já o acompanhava?

AdM – Já acompanhava.

DS – Mas, de certa forma, o que é que o António encontra na escrita que não encontra no cinema? Ou as mesmas linguagens conseguem servir o mesmo propósito? Conseguem transmitir a mesma mensagem?

AdM – Não. São veículos diferentes. Eu comecei pela escrita, como costumo dizer, quando tinha oito anos, nove anos de idade. Escrevia histórias aos quadradinhos. Portanto, a imagem e a escrita acompanhavam-se. Mais tarde, quando comecei a fazer cinema, a escrita acompanhou-me sempre. Eu sempre escrevi os meus próprios guiões. Nunca fiz um filme com um guião escrito por outra pessoa, como é muito corrente… Alguém escreve o guião e depois vem o realizador e filma-o… Isso nunca aconteceu comigo. Eu era escritor. Mesmo que as ideias de raiz não fossem minhas, como em alguns casos em que filmei adaptações, como o «Domingo à Tarde», que se baseia num romance, ou «A Promessa», que se inspira numa peça de teatro, eu sempre escrevi os guiões: para mim, escrever, sentir a plástica da escrita, a plástica da palavra, é muito importante. E eu transmiti isso para os guiões. Digamos que sempre fui romancista – ou ficcionista literário. A parte literária é muito importante para mim. A dimensão audiovisual do cinema era um certo tipo de extensão que ajudava a transmitir de outra maneira o que eu dizia em literatura. Em teatro dizem-se as coisas de uma maneira, numa certa forma de expressão, no cinema dizem-se de outra e em literatura em outra. Há certas coisas que digo literariamente que não consigo dizer em cinema. E inversamente: há coisas que faço e transmito em cinema que não consigo transmitir literariamente. São meios diferentes, artes diferentes, têm lógicas comunicacionais diferentes, e é por isso que certas adaptações de romances para cinema desagradam a muitas pessoas. Porque quando leram os romances visualizaram as coisas de uma maneira que não corresponde àquilo que vêem, depois, nos filmes… os actores não se parecem com as figuras que imaginaram, por exemplo… E, depois, não gostam dos filmes, que até podem ser muito bons, enquanto cinema. Trabalhar no cinema foi uma experiência muito importante para mim, porque me permitiu criar um tipo de formas de expressão, para transmitir determinadas coisas, que foram fascinantes de descobrir. Não consigo exprimir literariamente certos sentimentos que consigo colocar em filme com um actor, se ele for bom e eu souber dirigi-lo bem. O actor, com um simples piscar de olhos, uma expressão, uma contracção no rosto ou outro movimento, transmite sentimentos que dificilmente seriam descritos ou dificilmente ficariam tão bem num romance, ou então exigiriam páginas e páginas de descrição literária. O cinema teve essa importância, mas, ao mesmo tempo, fui sempre escrevendo: nunca deixei de escrever ficção. Não publicava, porque, fazendo cinema, tinha de viver dele. E muitas das coisas que filmei nem sequer foram coisas que me interessaram muito: era o chamado “cinema alimentar”, era um cinema que me permitia pagar a renda da casa e alimentar a família, documentários promocionais ou cinema publicitário…. Pronto, lá realizava, de vez em quando, uns filmes de longa-metragem que tinha interesse em fazer, mas nunca deixei de escrever. Contudo, nunca me preocupei em publicar. Tinha muita coisa escrita, novelas, contos, até um romance começado, mas não tinha tempo de procurar editor. Quando o cinema começou a abrandar… Porque não foi cortado de repente… o corte aconteceu a pouco e pouco. Foi, praticamente, desde que fiz «Os Abismos da Meia-Noite» que começou a haver uma relutância da parte dos júris do Instituto de Cinema em financiar aquele tipo de cinema “esquisito”. Aliás, com «Os Abismos da Meia-Noite» já tive dificuldade, porque o próprio Ministério da Cultura da altura… Imagine!, houve uma directora-geral que se meteu com o argumento do filme, contestando-o: “mas isto sai muito caro, estes cenários, esta fantasia toda”… E eu lá tive de argumentar com uma senhora, uma funcionária que eu nem sabia quem era – e já não estava no tempo da censura, que, nesse tempo, eu tinha mesmo de argumentar, senão os gajos cortavam tudo. Entre esse filme e «Os Emissários de Khalôm»«Os Abismos da Meia-Noite» estreou em 1984, mas é de dois anos antes, por aí, e «Os Emissários de Khalôm» é de 1987, por isso está a ver que têm cinco anos de diferença, cinco anos que passei sem filmar. Quer dizer, sem filmar, não, porque filmei que nem um desesperado, para sobreviver. Fiz programas para a televisão, documentários, fiz trinta-por-uma-linha, mas não fiz o cinema que eu queria. Depois, lá consegui fazer «Os Emissários de Khalôm», com muita dificuldade, porque o júri estava muito relutante. A seguir, se não me engano, fiz «A Maldição de Marialva», que foi uma encomenda da RTP, curiosamente. Tive sorte, porque não tive de passar pela aprovação de nenhum júri do Instituto de Cinema… Eu prefiro chamar-lhe Instituto de Cinema, genericamente, porque aquilo foi mudando de nome: era IPC, depois passou a ser IPACA, depois foi o ICAM, agora é o ICA… Eu chamo-lhe apenas Instituto de Cinema. O filme «A Maldição de Marialva» foi uma encomenda da RTP, feita no tempo em que o Fernando Lopes era director da programação da RTP2, se não me engano, quando o canal entrou num convénio com seis televisões europeias para se fazer uma série, a tal série «Sabbath», em que cada uma… a francesa, a italiana, a espanhola, a alemã… produzia um filme sobre um tema fantástico do seu próprio lendário tradicional, de referência. Depois, que faziam? Cada televisão oferecia uma cópia do seu filme às outras: ou seja, cada televisão produzia um único filme e recebia seis! É um esquema inteligente. Por acaso, é interessante. A RTP alinhou nisso e calhou-me «A Dama Pé-de-Cabra». Foi o João Palma Ferreira que escreveu uma espécie de sinopse que eu depois desenvolvi num guião, mais uma vez todo escrito por mim, diálogos e tudo, mas essa ideia básica, essa tal sinopse, foi do João Palma Ferreira. Mas o Instituto do Cinema não teve nada a ver com este filme, portanto não houve júri, foi uma escolha directa. Ou seja, quando a RTP teve essa ideia para essa encomenda perguntou-se “bom, então qual vai ser o tema português?” e o Fernando Lopes, que estava na direcção de programas e era muito amigo do João Palma Ferreira, como eu, veio dizer-me que ele tinha uma ideia, tinha uma sinopse para uma nova versão de «A Dama Pé-de-Cabra». Uma versão popular que o Palma Ferreira tinha ouvido na Beira Alta. Aliás, na zona de Linhares da Serra, de Trancoso, e da vila de Marialva, na Beira Alta, onde a gente filmou. Essa ideia foi aceite pelo produtor internacional, que estava a tomar conta desse projecto europeu, um espanhol chamado Antonio Cardenal, que até era um gajo porreiro. Contactei com ele muitas vezes, fomos a Madrid várias vezes por causa disto… Ora, ele perguntara “então quem é que vai escrever o guião e realizar o filme, da parte portuguesa?” e o Fernando Lopes respondera-lhe “aqui em Portugal só há um maluco capaz de fazer isto, que é o António de Macedo”. Foi assim que vieram ter comigo, perguntando-me se eu queria fazer um filme sobre aquele tema. Disse-lhes que sim. Já tinha, portanto, a sinopse… escrevi o guião, que foi aprovado internacionalmente pelo tal consórcio, e, pronto, fiz o filme, que ficou a chamar-se «A Maldição de Marialva». A seguir, fiz outro filme, «O Altar dos Holocaustos», que também foi uma encomenda para televisão, para a RTP, que é uma série de três filmes, mas, no fundo, todos somados, dão um filme só. É um tema fantástico, esotérico, passado na véspera de Natal, com todas as implicâncias místico-mágicas que isso tem… E, entretanto, eu continuava a concorrer todos os anos aos financiamentos do Instituto do Cinema. Entre 1987, com «Os Emissários de Khalôm», até 1989 ou 1990, com «A Maldição de Marialva»«O Altar dos Holocaustos» foi em 1992, por aí… Ou seja, todos esses anos fui concorrendo com vários projectos e fui, sempre, levando sopa – já com o argumento de que o meu cinema era um tipo de cinema que não interessava ao cinema português, que era muito esotérico, fantasioso de mais, não interessava a ninguém, etc. Mas, entretanto, como eu tinha recebido aquelas encomendas, «A Maldição de Marialva», «O Altar dos Holocaustos», mantive-me a trabalhar, incluso em publicidade audiovisual. Finalmente, houve um ano em que um dos guiões que eu apresentei, o «Chá Forte Com Limão», foi aprovado. Já tinha sido chumbado nos anos anteriores, mas naquele ano foi aprovado em virtude de uma circunstância inesperada e curiosamente divertida… O júri desse ano… O ano de 1992, se não me engano… era constituído, como de costume, por aqueles “intelectuais” que detestavam o tipo de cinema que eu fazia, mas estava lá um músico, o João Paes, que nessa altura trabalhava como compositor para os filmes do Manoel de Oliveira – ou seja, seria a última pessoa de quem eu poderia esperar que tivesse qualquer interesse nos meus filmes. Mas, é estranho, porque esse João Paes, que até compôs a música de, entre outros filmes, «Os Canibais», aquela cine-ópera do Oliveira, leu esse meu guião – que já tinha sido reprovado nos anos anteriores, mas, enfim, foi naquele ano que o João Paes foi jurado – e lutou sozinho contra os outros quatro ou cinco membros do júri para o impor, porque gostou muito do texto. Ele não me conhecia e eu só o conhecia de nome como sendo o músico das fitas do Oliveira. Ora, como ele se impôs de tal maneira, o que é que aconteceu? Como era o compositor do Senhor Manoel de Oliveira, os outros jurados não tiveram coragem de contrapor e agacharam-se. Assim, o «Chá Forte Com Limão» passou: porque o João Paes gostou do guião e, praticamente, impôs-se!… Quer dizer, ele não precisou de se impor, se calhar nem pensou nisso, mas como era compositor do Senhor Manoel de Oliveira, os outros membros do júri calaram-se e deixaram que o guião fosse aprovado. Eu fiz o filme, mas, a partir daí, já não houve nenhum “João Paes”. Não tive mais essa sorte.

DS – Foi uma angústia enorme.

AdM – Foi, em parte.

DS – Como se sentiu?

AdM – Senti-me irritado – ouça, e irritado de tal maneira que, desde essa altura, entre 1992 até ao ano 2000 ou 2001, estive numa guerra imparável, porque todos os anos concorria e todos os anos levava sopa. Em todos os variados projectos que apresentei. Um deles foi «O Pastor e o Magarefe», sobre o Frei Gil de Santarém, essa extraordinária figura do nosso lendário nacional (que existiu historicamente!), precursor e talvez inspirador do mito do Fausto e do seu pacto com o diabo.

DS – Que, depois, deu origem ao seu romance «As Furtivas Pegadas da Serpente».

AdM – Exactamente. Deu origem a esse romance. Isso aconteceu várias vezes: quando eu não conseguia fazer um filme, pegava no respectivo guião e transformava-os num romance. «A Sonata de Cristal» também é um exemplo desses: foi um guião que eu submeti, levando sopa dois ou três anos seguidos, e eu, depois, evidentemente, peguei nele e transformei-o num romance. O que aconteceu na década de noventa, e que, curiosamente, coincidiu em paralelo com a minha actividade de cineasta, é que uma colectânea de contos minha, «O Limite de Rudzky», que eu já tinha escrito anteriormente, ganhou uma espécie de menção honrosa num dos concursos de ficção científica da Editorial Caminho, ao qual concorri. Pensei: “olha, já agora, vou concorrer, para ver o que acontece”. Foi no ano em que o Luís Filipe Silva concorreu com «O Futuro à Janela». E foi assim que conheci o Belmiro Guimarães, que era director da colecção de fantástico e de ficção científica da Caminho. Eu não conhecia o Luís Filipe Silva, nem fazia ideia de quem era o Belmiro Guimarães – que me telefonou a dizer que eu não tinha ganho o prémio por uma unha negra, porque o júri ficara dividido entre dois textos, que, dos quarenta ou cinquenta que tinham sido recebidos naquele ano, eram os melhores. Os jurados ficaram divididos entre um trabalho e outro. Até que lá houve um desempate e optaram pelo livro do Luís, o que eu achei muito bem, porque o livro dele era muito bom e ele era um jovem, enquanto eu já tinha feito cinema, já tinha feito muita coisa. O Luís estava a começar, por isso ainda bem que o prémio foi para ele, mas como o júri também achou que o meu texto era bom… bom, enfim, quer dizer, pelo menos do ponto de vista deles… então decidiram recomendá-lo para publicação. Foi assim que o livro foi publicado, foi recomendado pelo júri. Coincidiu mais ou menos com a preparação do «Chá Forte Com Limão», que foi aprovado graças ao João Paes. Eu fiquei muito contente, porque o meu livro tinha sido editado. Assim, podia trabalhar em dois veículos: por um lado o cinema, por outro a literatura e em cada um deles eu podia transmitir coisas próprias de cada um; ou seja, complementavam-se. Como já tinha outro romance pronto, intitulado «Contos do Androthélys», aconteceu uma coisa que eu nem fazia ideia… Pensei “bom, agora tenho o romance pronto, lá tenho de andar outra vez a bater às portas dos editores”… E, enquanto pensava nisto, falei com a Rita Pais, que nessa altura era a revisora da Caminho… no fundo, era mais do que revisora, era aquilo que no meio editorial anglo-americano se designa por editor, que é um papel raro neste país, mas no qual ela era muito boa e até excelente, porque era compreensiva com os autores. Ela lia os textos dos autores e dava as correcções que tinha de dar, de acordo com aquilo que cada autor, realmente, queria dizer. Não impunha, como fazem os nossos revisores, que impõem as suas próprias manias, que é o pior que pode haver… como de costume, à portuguesa! Ela, não. Ela trabalhava à inglesa: lia o texto dos autores e aquilo que sugeria era aquilo que convinha, realmente, transmitir-se da melhor maneira, transmitir-se de maneira mais eficaz aquilo que os autores queriam dizer mas não tinham sabido lá muito bem. Ela ajudou-me muito nisso. Portanto, eu falei com a Rita Pais e disse-lhe “por acaso, agora, tenho outro romance, não sei o que lhe hei-de fazer”… O que é que eu pensava? Que tinha de andar, outra vez, a bater às portas dos editores. E ela diz-me: “então, mas você já publicou um livro connosco, publicámos «O Limite de Rudzky», você passou a ser um autor da Caminho”. Eu não sabia que eles tinham este esquema, nessa altura. “Passei a ser um autor da Caminho?” “Pois, agora é assim: qualquer original que você tenha, entrega aqui e a gente publica. Nem discutimos.” E eu disse: “Isto é genial.” E assim foi. Foi assim que eu percebi que tinha ali uma porta aberta, que, ainda por cima, tinha o beneplácito do Belmiro Guimarães, que se tornou um grande amigo nosso, quer dizer, da malta da ficção científica dessa época, e passámos todos a editar lá: o Luís Filipe Silva, o João Barreiros, eu, o Daniel Tércio, a Maria de Menezes, o José Manuel Morais, o Luís Sequeira… Editei por eles o romance «Contos do Androthélys», um calhamaço de trezentas e tal páginas… Entretanto, estreou o «Chá Forte Com Limão»: não teve sucesso nenhum. Esteve em exibição durante uma semana inglória no Cinema São Jorge, um bocado às moscas. As pessoas acharam-no detestável. Teve críticas horríveis que diziam que era um disparate pegado, de uma ponta à outra, que não tinha graça nenhuma. Portanto, a coisa morreu por ali… Em termos de cinema, continuei a concorrer ao Instituto de Cinema com guiões para mais filmes, como «O Pastor e o Magarefe», falámos dele há pouco, e outros… «A Pomba», também… e um outro, «Apaga a Lua e vem p’rà Cama»… Vários guiões, todos a levarem sopa, sempre com o mesmo argumento: o de que era um cinema que não interessava ao cinema português, que era um cinema “desligado das realidades”. E isto era feito de uma maneira tão despudorada que dava para ver claramente as manipulações dos júris sucessivos, pelos vários anos. Depois deu-se aquela cena desgraçada de eu reunir uma volumosa documentação para provar as manipulações e as fraudes e as corrupções que iam pelos júris, que eram descaradas, perfeitamente vergonhosas. Reuni essa documentação, entreguei-a toda ao provedor de justiça e fiz queixa, apresentei uma queixa formal. Isto já no ano de 2000 ou 2001, e o provedor de justiça demorou seis meses para responder-me e respondeu que estava tudo de acordo com a lei. Ora, que estava de acordo com a lei sabia eu, o problema era outro, era a lei que estava corrupta e prestava-se às manipulações mais vergonhosas. Porque a lei dizia que a apreciação dos júris é feita segundo tais e tais critérios, “qualidade artística e cultural”, “potencialidades estéticas”, “qualidade de comunicação com o público”, etc. … uma porção de coisas profundamente subjectivas às quais qualquer júri podia dar “pontuação zero” ou dar “pontuação dez” e estar sempre certo. Não sei se está a ver o grave que isto é. É evidente que critérios destes se prestam a ser manipulados, e a favorecer o “clube de amigos”. Portanto, eu fiz queixa formal e o bom do provedor, seis meses depois, responde-me que “não podemos fazer nada, porque está tudo de acordo com a lei”… Eu disse: “oh, senhor provedor, que está de acordo com a lei, sei eu… O senhor é provedor de justiça, não é provedor de leis: já o Platão sabia distinguir entre as leis, que são humanas e falíveis, e a justiça que é divina. Portanto, o senhor é provedor de justiça, quero que o senhor diga ao governo que esta lei está corrupta, que é uma lei que se presta a manipulações e tem de ser mudada.” Não me respondeu. A partir daí, não consegui fazer mais nada. Desisti. Até porque começou a ser caro apresentar um projecto: era preciso apresentar o projecto em oito ou nove exemplares, para os jurados e mais não sei para quem, com o guião completo, orçamento completo, os diálogos, as localizações, o dossiê de produção… Ficavam uns oito ou nove calhamaços que custavam aí uns trinta contos nessa altura e nós, na Cinequanon, não tínhamos dinheiro para estar a investir, constantemente, cerca de trinta contos de cada vez para ir tudo para o cesto. A partir daí, desisti. Pensei: “desisto de fazer cinema, continuo a escrever”. Porque, entretanto, fui publicando vários romances na Caminho. Publiquei o último em 2004, que foi a altura em que eles começaram a entrar no Grupo Leya e, a partir daí, fiquei sem editor: a Caminho enfeudou-se à Leya e o Belmiro Guimarães adoeceu gravemente e reformou-se e ele é que era o nosso sustentáculo lá dentro, era ele que gostava de ficção científica e de fantástico, porque os outros gestores da Caminho detestavam esse tipo de literatura “de género”. De maneira que, mal ele se reformou, os outros venderam-se à Leya e acabaram com a Colecção Caminho Ficção Científica, foi imediato. Sucedeu-se aquela história que já lhe contei, deles deitarem fora todos os livros que tinham nos armazéns, meus e de outros autores: foram todos destruídos. Ainda consegui publicar «A Conspiração dos Abandonados» na Zéfiro e «O Sangue e o Fogo» na Saída de Emergência e, agora, não sei… Agora estou à espera, estou pendurado. Estou assim… Ando a ver… Mas, de qualquer maneira, isto vinha a propósito da pergunta se houve um desgosto muito grande, digamos assim, do facto de não ter continuado a fazer cinema, devo dizer que sim e que não. Porquê? Digo que sim, porque, de certa maneira, foi um dos veículos através dos quais eu podia transmitir um certo tipo de coisas que em literatura talvez não conseguisse, mas, por outro lado, digo que não, isto é… Até senti um certo alívio, porque com o correr do tempo e com as dificuldades progressivas… É assim: este país foi-se afastando. Nos anos trinta e quarenta o cinema português era igual em qualidade técnica ao cinema europeu que se fazia nessa época. Você vê um filme português dos anos trinta e quarenta, como o «Inês de Castro» ou o «Camões», os filmes de grande espectáculo do Leitão de Barros, ou o cinema do António Lopes Ribeiro e do Jorge Brum do Canto, mesmo as comédias musicadas do Cottinelli Telmo, do Chianca de Garcia, do Arthur Duarte, e percebe logo que o preto-e-branco desses filmes tem uma grande qualidade técnica e que a movimentação de câmara e a música, não ficavam abaixo de um filme europeu da mesma época. Mas com o correr do tempo foi-se dando uma divergência cada vez maior entre o cinema português e o estrangeiro – de Badajoz para lá! E eu fui sentindo isso, cada vez mais acentuadamente, à minha própria custa: isto é, os nossos laboratórios e estúdios iam ficando cada vez piores à medida que o tempo avançava. Nos anos sessenta, consegui fazer um certo tipo de efeitos especiais nos laboratórios da Tóbis e da Ulyssea Filme, nos anos setenta, também, e nos anos oitenta, mas já com mais dificuldade… Nos anos noventa com maior dificuldade ainda… Foi preciso vir o apoio de Espanha para fazer certo tipo de efeitos para «A Maldição de Marialva», porque cá já não os conseguiam fazer – e mesmo assim não ficaram bem. A divergência – o sacrifício – de fazer cinema em Portugal foi-se acentuando. A partir do ano 2000 já não me apetecia fazer cinema em Portugal, porque sabia que não iria conseguir fazer aquilo que eu queria transmitir, por falta de substrato tecnológico, para não dizer económico. Ia ficar restringido a fazer umas coisinhas que coubessem numa caixa de sapatos e eu não estava interessado nisso. De maneira que o desgosto foi-se atenuando, porque fui passando para a literatura, que era uma coisa que já vinha de trás. Mas em relação à “censura” das candidaturas, sabe o que ela é? Acho que é uma desculpa estúpida da parte de quem não se quer maçar. Quer dizer, ter ideias dá trabalho, ter ideias é cansativo e gerir ideias novas é um frete do caraças: assim, se tudo não passar de uma espécie de papa de linhaça cinzenta é óptimo.

DS – Falando em cinzentismo, como é que o António conseguia fugir à outra censura, a dos cortes?

AdM – Era por subterfúgios, evidentemente, e, em outros casos, era mesmo por guerras. Havia guerras. Em alguns casos, não consegui. Foi o caso do «Nojo aos Cães», de 1970, que foi totalmente proibido. Só depois do 25 de Abril de 1974 é que começou a ser visto. E nem sequer passou nos cinemas: só passou, vagamente, na televisão, na RTP2, a uma hora assim um bocado tardia… Mas, em outros casos, era pela estupidez dos censores, que não viam certas coisas. Como, por exemplo, no caso de «Sete Balas Para Selma», que é de 1967. Há três canções, cantadas pela Florbela Queirós, e uma delas faz uma alusão ao Bertolt Brecht, que era uma figura maldita, e à música que o Kurt Weill compunha para as peças dele. Aliás, os censores tinham listas com os nomes proibidos: eles já nem liam qualquer texto desses autores, eram logo para cortar. E o Brecht estava na lista de autores que eram imediatamente cortados, tal como as canções do Weill. Ora, uma das canções cantadas pela Florbela… o Alexandre O’Neill, que era malandro e até estava, mais ou menos, ligado ao partido comunista que, nessa altura, ainda estava na clandestinidade, disse-me: “tenho aqui uma ideia…” Tinha uma espécie de pequeno poema, que pediu para ser musicado – a música é do Quinteto Académico –, uma espécie de homenagem à «Ópera dos Três Vinténs» do Brecht, a «Die Dreigroschenoper», musicada pelo Kurt Weill. Há uma personagem, o chulo, que é o… como é que ele se chama?... É o Mackie Messer, que na versão em inglês dessa ópera, a «The Threepenny Opera», se chama Mack the Knife. Na versão francesa é Maquereau, que, em francês, quer dizer “carapau”, mas também é o termo que eles utilizam para “chulo”. E o Alexandre O’Neill achou, em colaboração comigo, que íamos pôr a Florbela a cantar uma canção com frases musicais da balada «Mack the Knife» do Kurt Weill. É aquela canção muito conhecida. Portanto, o Quinteto Académico compôs uma música, com indicação minha e do O’Neill, com umas referências musicais à «Die Moritat von Mackie Messer», no original, e a própria letra do O’Neill dizia “O Maque, o Maquereau, que ninguém ama, ninguém amou”“Quando entra na sala, esvazia a sala à bala”… Ora bem, o censor deixou passar tudo.

DS – Porque não conhecia.

AdM – Porque não conhecia. Nem sequer sabia o que queria dizer Maquereau, porque, em português, “maque, maque, maquereau” até é uma coisa que fica gira. Bom… E eu lembro-me que, nessa época, o francês era a língua culta, o inglês não era muito usado, mas o francês sim e toda a gente sabia que Maquereau era o chulo, não é? Mas o censor não sabia, pronto. Isto só para dizer que há certo tipo de subterfúgios que podiam ser utilizados. Como aquilo não falava em Brecht, era só uma referência musical, o censor fez lá ideia!... Quem visse a fita reconhecia, de imediato, o que se estava a passar, mas o censor não reconheceu e deixou passar. Em alguns casos, não passou: no «Domingo à Tarde» queriam cortar-me quatro cenas, tive uma guerra com eles, ficaram duas… É claro, felizmente, eles não cortavam o negativo, portanto as versões que estão agora a ser exibidas no ciclo na Cinemateca são as integrais. Mesmo aquelas que foram cortadas pela censura estão a passar na integral, porque eles cortavam o positivo, que era a cópia de exibição, mas não tocavam no negativo, o que era óptimo! Com «A Promessa» foi muito complicado, porque eles queriam cortar duas cenas grandes ao filme, que são duas cenas muito importantes, a do diálogo dos padres e a final. Isso dava-me cabo do filme. Aquela fita sem aquelas duas cenas ficaria… E, aí, foi uma guerra em que fui eu e o Fernando Lopes, nessa altura presidente do Centro Português de Cinema, que era o produtor do filme, fomos discutir com o Moreira Baptista, que era Ministro do Interior. Depois de uma guerra muito grande, que durou uma tarde inteira a chatearmos a cabeça ao homem, ele por fim, já farto de nos aturar, sobrepôs-se à censura, mas avisou: “se alguém se queixar, eu tiro a fita de cartaz imediatamente”. Felizmente, ninguém se queixou, veio o 25 de Abril logo a seguir, porque a fita estreou em Fevereiro de 1974, e esteve não-sei-quantas semanas em cartaz e não houve problema nenhum.

DS – Apesar disso, o António nunca colocou ou, pelo menos, não imprimiu, uma tónica política muito forte nos seus filmes.

AdM – Não, porque, vamos lá a ver, a política estava implícita, porque naquela situação a política só podia ser uma: era lutar contra o regime. Depois criava-se uma monotonia e isso era visível em certas…

DS – A monotonia da oposição?

AdM – É um bocado isso, porque era sempre o mesmo Salazar.

DS – Ser subversivo já era aderir ao regime?

AdM – De certa maneira. Isso é muito óbvio num filme do Artur Ramos, uma pessoa de quem eu era muito amigo, o «Pássaros de Asas Cortadas», uma adaptação de uma peça de teatro do Luiz Francisco Rebello, que era um homem oposto ao regime, declaradamente oposicionista, com colaboração no guião do Luís de Sttau Monteiro, outro grande oposicionista ao regime. O próprio Artur Ramos era do partido comunista, na clandestinidade, claro. E o filme, todo ele, trata da luta de classes, chamemos-lhe assim. Tem a criadagem, por um lado, o chauffeur, depois os senhores ricos… Mas tudo isso para poder passar na censura acaba por ficar uma coisa… Bom, há para ali uns criados, há uns senhores… às vezes discutem… O filme é interessante, bem feito… O Artur Ramos fazia os filmes com muito cuidado, com um apurado perfeccionismo, digamos… Depois a censura cortou-lhe uma coisita ou duas, uma cena em que havia um quadro com um antepassado que está com ar de gozo enquanto uma personagem diz uma frase politicamente mais “ousada”, mas não muito… Ficou-se por ali, quase nem se nota que é um filme oposicionista. Outro em que se passou o mesmo foi «O Recado» do José Fonseca e Costa, que tem a ver com a clandestinidade do partido comunista. Há, assim, uns fulanos que desembarcam de noite e são perseguidos pela polícia e tal… Uma pessoa vê esse filme e a intenção, na ideia do Fonseca e Costa, é que aqueles tipos eram uns comunistas que queriam fugir para o lado de lá da fronteira e estavam a ser perseguidos pela Pide. Mas ninguém percebe nada. Dizia até o João César Monteiro, com aquela verrina que lhe era muito própria, que “bem, aquilo, no fundo, vê-se que é uma polícia de fronteira a perseguir o Partido Contrabandista Português”… andam uns contrabandistas por ali e a polícia de fronteira persegue-os. Quer dizer… O problema de fazer um cinema francamente político desembocava nisto: quer a gente quisesse, quer não. Isso não me interessava, era uma banalidade muito grande. Até porque dizer mal do regime era banal, tudo aquilo era obviamente banal, não acrescentava nada. Dizer-se “vivemos num regime de opressão”… Pois vivemos!... Em vez de estar a dizer o óbvio, preferi fazer um filme como «Nojo aos Cães», em que a opressão é dada de outra maneira. Tudo aquilo é subversivo, até os próprios estudantes que são subversivos acabam à porrada uns aos outros, às duas por três, porque não se entendem… Quer dizer, a subversão já está dentro da subversão: os próprios opositores também já não se entendem – o que, aliás, era verdade: a seguir ao 25 de Abril, com a liberdade declarada, as fricções vieram ao de cima, a UDP não se entendia com o PC, o POUS e o PCP-ML não se entendiam com o PC nem com a UDP, o MRPP não se entendia com a UDP nem com o PC nem com ninguém… No fim resultava uma palhaçada que não fazia muito sentido. E o «Nojo aos Cães» é, um bocado, o reflexo disso: tanto é que foi todo completamente proibido pela censura, como é evidente.

DS – Observando toda a sua carreira, o António comprometeu-se com que objectivo? Qual é a mensagem que a sua obra tem? Ou seja, agarrando em todos os filmes, todos tão diferentes, qual é o seu único compromisso?

AdM – O meu único compromisso é a liberdade de expressão. A liberdade do criador. Fundamentalmente, é isso. É o artista ter uma ideia, seja ela qual for: política, esotérica, metafísica, não importa, materialista… O artista tem uma ideia e tem de ser livre para exprimir essa ideia até ao limite da imaginação. O problema é quando não se tem nada para… Há um autor espanhol, não me recordo do nome dele, mas é muito conhecido, que diz “maldito o artista que não tem nada para dizer”. É esta a minha grande mensagem, também. Faço minhas as palavras deste autor anónimo, cujo nome não recordo com muita pena.

DS – Mas quem não tem nada para dizer não é artista.

AdM – Ah, mas aí é que está… Nós vemos muitas obras que estão por aí, obras artísticas, filmes… até bons filmes… Mas espreme-se aquilo e… A “Nouvelle Vague” toda, na minha opinião, é uma cosmética.

DS – Foram experiências.

AdM – Foram experiências, mas cosméticas que, no fundo, estão a disfarçar…

DS – Agora vamos filmar com a câmara aqui, agora assim…

AdM – …estão a disfarçar a falta de ideias. Repare que a gente vê os filmes da “Nouvelle Vague” e vê que eles não têm, rigorosamente, ideias nenhumas. Têm ideias estéticas, sim senhor, experiências, uma maneira fresca e nova de dizer as coisas, como não se dizia antigamente… Falam com muita graça e sensibilidade sobre coisa nenhuma.

DS – É como a experiência do Guericke, do Otto von Guericke, a dos hemisférios de Magdeburgo, agarrados pelo vácuo… O vácuo tem uma força extraordinária.

AdM – Exactamente!

DS – O vazio tem uma força extraordinária!

AdM – Exactamente, lá está! É a força do vazio. É isso mesmo. Há muitos filmes e romances que a gente espreme e diz “espera lá, o que é que este gajo quis dizer com isto?…” Vemos uns filmes muito bonitos, muito bem feitos, bem filmados, à francesa, não é?, com uns diálogos que até têm graça, mas o que é que eles querem dizer? Não querem dizer nada. Zero. Não têm uma única ideia por trás. Isso é que me horroriza. O artista tem de ser livre: que diga o que quiser, desde que tenha coisas para dizer. “Maldito o artista que não tem nada para dizer.” Há artistas que são artistas e não têm nada para dizer, é horrível. Têm só o prazer de mexer na matéria. Ou escrevem muito bem ou pintam muito bem ou filmam muito bem, mas não têm nada para dizer. E o que eu quero transmitir com os meus filmes é o seguinte: é preciso ter ideias! Mesmo que sejam contestáveis, mesmo que não sejam certas, mesmo que sejam grandes disparates. Podem ser, mas desde que dêem discussão, desde que ponham as pessoas a pensar, quer estejam de acordo ou não estejam. Alcança-se um objectivo. É isto que eu quero transmitir, que é muito importante: artistas, sejam livres! Esgotem a imaginação até ao máximo dos limites – para além dos limites, de preferência.

(Continua.)

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Entrevista com António de Macedo: 2ª Parte


Segue-se a segunda parte da entrevista extensiva e exclusiva que fiz ao cineasta e escritor António de Macedo. Continua-se a desvendar os segredos (alguns) por trás da obra de Macedo, assim como a filosofar sobre muitos outros assuntos. A conversa continuará na terceira parte.


Entrevista com António de Macedo: 2ª Parte

David Soares – Lá está, mas isso inscreve-se no que eu disse há pouco: de o seu experimentalismo estar ao serviço da voz autoral e do tom do filme.

António de Macedo – Como os actores começam a conversar naturalmente entre eles…

DS – Já o espectador está enlevado na narrativa…

AdM – Já está. Já foi apanhado na rede. Já não se ri, porque, entretanto, aquilo entrou “de pantufas”, ele não dá por isso. Isso é um aspecto. O segundo aspecto… Percebi, também, que os actores não podiam… Ou melhor, que eu não deveria captar o som directo, porque eles representavam como se estivessem no teatro. Representavam assim, porque os actores que a gente tinha eram de teatro. Hoje, com a proliferação das telenovelas e independentemente dos seus óbvios defeitos, surgiu uma geração de actores jovens mais desinibidos diante das câmaras, sem os tiques inerentes à teatralidade. Mas naquele tempo não era assim, o “actor de teatro” só raramente fazia cinema. Ora, o actor de teatro projecta a voz. Como dizem os próprios actores de teatro, a voz pode ser colocada na cabeça, pode ser colocada no peito ou pode ser colocada no estômago. Quando a voz é colocada na cabeça é para ser atirada para a última fila da plateia. Quando a voz é posta no estômago cria-se aquela voz íntima, não é?, que eles usam para falar ao pé uns dos outros. Isto em teatro funciona, dentro de certos limites, mas não funciona em cinema. Em cinema, a voz… a voz não é para estar na cabeça, nem no peito, nem no estômago — a voz tem de estar “no microfone”. E, então, eu dizia aos actores… até por uma questão de expressão visual… Se a pessoa fala mais alto a própria expressão visual acompanha-a, se a pessoa coloca a voz mais baixa, e fala de uma maneira íntima, a expressão visual também a acompanha. É preciso ter cuidado com isso, portanto, todos os meus filmes são dobrados. Tomei essa decisão: “vou dobrar os meus filmes todos”.

DS – Isso foi algo que, na altura, também concorreu para a tal desapreciação crítica dos seus filmes? Porque havia um certo preconceito contra…

AdM – Contra a dobragem.

DS – Uma espécie de cartilha Dogma “avant la lettre”

AdM – Exactamente.

DS – Tudo o que não fosse captado em directo era muito criticado.

AdM – Era mal visto, exactamente. Até porque depois dos bons filmes dos anos 30 com o Vasco Santana, a Beatriz Costa, o António Silva, o Ribeirinho, a Maria Matos… eram todos em som directo porque essa plêiade de actores era muito boa, e eles aguentavam a representação em som directo muito bem… mas depois vieram os “maus” filmes “sérios” dos anos 40 e 50, e até 60, com actores de menor envergadura, e esses filmes passaram a ser dobrados porque saía mais barato durante as filmagens, filmar sem a sobrecarga das aparelhagens de captação de som, mas eram muito mal dobrados, a boca dos actores mexia por um lado e o som saía por outro, e era insuportável de se ver. E eu fui em contra-corrente, decidi dobrar os meus filmes mas rodeei-me de cuidados especiais, como por exemplo ter sempre o cuidado de, durante as dobragens, colocar as vozes dos actores nos tons certos e nos sítios certos… Nas dobragens é mais fácil controlar as vozes dos actores, porque eu, quando estou a filmá-los, eles estão no cenário, estão a representar, falam e é difícil estar sempre em cima deles para controlar as vozes. Eu não estava com essa preocupação, porque dizia-lhes o seguinte: “vocês falem sempre em voz baixa”. Mas eles queriam que eu os ouvisse… Ora, eu era o realizador, estava ao pé da câmara, no limite do plateau, e eles, os actores, estavam em pleno plateau, um bocado mais longe… E eu respondia-lhes: “mas eu não vos quero ouvir”. E eles: “então, como é que sabes se a gente está a fazer bem?” E eu: “basta-me ver o vossos movimentos e já sei se estão a fazer bem ou não”. Isso fazia-lhes muita confusão à cabeça. Eles queriam representar para mim: como não tinham um público, estavam habituados à plateia e para eles, ali, a plateia era o realizador. “Sim, estou aqui longe, atrás da câmara”, dizia-lhes, “não se preocupem comigo. Vocês têm aí ao pé as pessoas com quem estão a contracenar, estão mesmo aí junto de vocês, têm de falar para elas”. O truque que eu utilizava era dizer aos meus actores: “Vocês falem da seguinte maneira, façam de conta que está aqui mesmo ao lado um bebé a dormir. Vocês têm de falar de maneira que os vossos colegas vos ouçam, mas sem acordarem o bebé.” E este truque funcionou. Eles começavam a representar de uma maneira muito mais… em “underacting”

DS – Sem caricaturar.

AdM – Sem caricaturar. Que é a tendência do actor de teatro da velha escola.

DS – No teatro tem de exagerar-se ou o público não se apercebe.

AdM – Não se apercebe, tem de ser tudo muito marcado. O próprio teatro é um exagero, tudo aquilo é convencional, por isso, aí, está tudo certo. Mas em cinema, não. Depois, quando chegava à dobragem é que eu os controlava. Punha-lhes o microfone mesmo à frente, colocava-lhes a voz mesmo onde eu queria.

DS – Para eles deve ter sido algo um bocado surrealista.

AdM – Foi um bocado surrealista, mas adaptaram-se facilmente. Curiosamente, nunca tive problemas com os meus actores. Todos eles perceberam, perfeitamente, e adaptaram-se. Até houve um actor do «Chá Forte Com Limão»

DS – O actor francês que foi dobrado por um português?

AdM – O Jean-Pierre Cassel? Não, não foi ele.

DS – Dá-me ideia que há partes em que aquilo que o Cassel está a pronunciar equivale ao texto em português. Ele representou em português?

AdM – Não. Representou em francês. Traduz-se o guião para o actor falar em francês, porque se ele falar em português, como o actor não é português, perde a naturalidade e fala um português com o ritmo todo trocado, ficam as sílabas fora dos sítios, e o resultado é muito mau. Portanto, o actor francês fala em francês. Depois, vem um especialista… Sobretudo, em França faz-se isto muito bem… Vem um especialista que vê quais são as labiais, quer dizer os pontos de contacto, porque as labiais permutam-se: o “b” de “bota, o “m” de “Mafra” e o “p” de “palhaço”, têm todos a mesma colocação labial. Por isso, torna-se fácil substituir palavras. Num texto falado em francês, o especialista procura as labiais, que são os pontos de contacto, são os vários “ganchos”, e, depois, limita-se a colocar labiais portuguesas nesses sítios, sejam elas quais forem. Repare: se ficar à frente de um espelho e articular mudo a palavra “pai” estando por cima o som da palavra “mãe” verá que os movimentos dos lábios são iguais. O “p” e o “m” são labiais e, como o são, tanto faz ouvir um como ou outro. A expressão visual é a mesma, tanto faz pôr o som de “pai” como o som de “mãe”, portanto eu, na dobragem, posso fazer a aldrabice que quiser. E é assim que se faz. Mas estava a dizer que havia um actor, que vinha do teatro e que tinha a tendência para colocar a voz na cabeça, digamos assim… E quando fomos dobrar o filme… Ele até a falar, naturalmente, é assim. Eu disse-lhe: “estás com a voz muito alta e eu não quero isso”. Expliquei-lhe como queria e ele respondeu: “Ah, já sei o que queres. Que chatice, isso agora obriga-me a uma preparação… Só te peço um favor. Vou pedir-te meia-hora. Arranja-me aí um sítio sossegado para eu fazer uma preparação de treino de voz”. Disse-lhe para ele colocar a voz no estômago, o mais abaixo possível. “Repara”, disse-lhe, “estás a fazer um papel romântico, de D. Juan apaixonado, estás a interessar-te pela rapariga… Se pões uma vozinha muito alta ninguém acredita em ti, ninguém te leva a sério”. Ele fechou-se durante meia-hora num cubículo na Nacional Filmes, lá onde ficava o estúdio de som, e, no final, apareceu com uma voz óptima, parecia mesmo a voz de um galã. E eu fiz a dobragem impecavelmente. Ou seja, isto é só para dizer que todas estas partes técnicas (desde a direcção de actores), ao serviço de um determinado tipo de intenção, tudo isso foi, realmente, conseguido ao longo de anos de experiência e sempre com a preocupação de obter o resultado mais eficaz para o ponto de vista do espectador. Aquilo que, desse ponto de vista, fosse mais eficaz para transmitir a sensibilidade que eu queria que fosse transmitida, fosse num mundo fantástico, fosse num mundo real. E isso obtém-se através da tecnologia. Foi por isso que eu tive de aprender como funcionava muita tecnologia, em termos de cinema. Daí os meus filmes terem um aspecto técnico muito apurado, tão apurado quanto possível dentro das limitações que nós temos. Sempre entendi que o som é uma componente fundamental do cinema.

DS – E uma que, na maioria dos filmes portugueses…

AdM – É desprezada.

DS – É desprezada. A maioria dos filmes tem um som miserável.

AdM – Tem um som miserável. Parece que os realizadores são surdos…

DS – Será uma consequência da hegemonia do tal som directo?

AdM – Eventualmente, será… Penso que eles serão mais visuais que auditivos. Até porque, repare…

DS – Mas o António tem formação musical, logo tem uma sensibilidade diferente.

AdM – Tenho, exactamente. Isso tem muita importância. Reconheço-o, perfeitamente. Aliás, o meu filho, o António de Sousa Dias, que é músico – formou-se em música, é musicólogo e compositor, que sempre foi a vocação dele, desde muito novo – e trabalhou comigo durante muitos anos, diz que aprendeu muito comigo, e eu, mais tarde e com o trabalho conjunto, aprendi muito com ele… Temos falado muito sobre isso. O nosso trabalho sempre foi de grande cumplicidade. Ele começou por fazer alguns filmes comigo, para a televisão, pequenos documentários, e o primeiro filme de longa-metragem que ele fez comigo foi «Os Abismos da Meia-Noite», que tem uma qualidade de som extraordinária. Ele fez a música de fundo e os efeitos sonoros que se ouvem no filme, que foi uma coisa que ele delirou em fazer, para a criatividade dele foi excelente. E isso tem a ver, exactamente, com a preocupação que eu sempre tive – e, felizmente, encontrei da parte dele uma colaboração fabulosa – sobre a importância que o som tem no cinema. Os meus colegas vêm todos de uma geração… os meus colegas do meu tempo, porque os mais jovens já têm outra visão, diferente… mas os realizadores da geração de cinquenta, sessenta, até setenta, ainda vinham com a velha escola de que o sonoro é uma deformação, uma deficiência do mudo. O cinema mudo é que era o verdadeiro cinema.

DS – Ainda estavam arreigados a essa visão?

AdM – Estavam. Havia uma frase que eles diziam: “o cinema quanto mais mudo, e mais preto e branco, melhor”. O cinema a cores era mal visto. Você não faz ideia da dificuldade que eu tive para tentar impor os meus filmes a cores aqui em Portugal. Embora já cá houvesse alguns filmes a cores… Uns documentários com uma cor muito “ranhosa”… E eu, pela primeira vez, comecei a trabalhar a cor em cinema como uma forma de arte. As filtragens que se usavam nas étalonnages dos filmes… aproveitei-as para criar novos cromatismos, alguns até aberrantes… comecei a trabalhar isso como uma forma de arte. Tive a sorte de encontrar uma colaboradora excelente, que era a Teresa Ferreira, no laboratório da Ulyssea Filme. Ela tinha formação artística, estudara na Escola António Arroio, e, então, percebeu o que eu queria fazer e entusiasmou-se. Mas, realmente, havia esse preconceito contra o som e a cor: quanto mais mudo e preto e branco, melhor. Havia até um famoso teórico francês, muito citado na altura pelos meus colegas, que dizia: “Olhemos para o fotograma. A imagem no filme, correspondente ao fotograma, tem uma certa área, a pista de som é um milímetrozinho marginal. A importância do som, num filme, deve estar em proporção”. A imagem ocupa oito ou nove décimos de um fotograma e só um décimo é que é ocupado pelo som. Eu dizia que a relação tinha de ser, no mínimo, de cinquenta para cinquenta. Tinha de haver um equilíbrio. Isto criou, naturalmente, um mal-estar. Mas eu apercebi-me que muita gente nem sequer ouvia os meus filmes… Quando eu digo “ouvia”, quero dizer que não percebia o experimentalismo acústico, sonoro, que eu estava a fazer. Quando fiz, por exemplo, o «Domingo à Tarde»… Este filme não tem música de fundo, aliás só tem uma música, na cena do cabaret, que é uma música de cena. Não é de fundo. As pessoas dançam, ouve-se a música, ela faz parte da cena… Lá está, é um filme sem música de fundo… Tive de ter um cuidado muito grande com os chamados ruídos e efeitos de som, tive de orquestrar os sons. A diferença entre a música de fundo e a música de cena é que esta ouve-se quando algo em cena está a produzi-la, uma orquestra, um gira-discos, etc., mas a de fundo é a chamada “orquestra invisível”. Ninguém sabe quem a toca, nem de onde vem… E eu decidi que não queria música de fundo no meu primeiro filme: decidi que iria orquestrar os ruídos. E toda a ambiência sonora que o filme tem, toda a sua “música de fundo”, entre aspas, são ruídos naturais, hospitalares, as máquinas dos raios-X… Todos esses ruídos são orquestrados. A partir daí, comecei a perceber que tinha de fazer partituras com os ruídos. Com a Banda de Ruídos A, a Banda de Ruídos B, a Banda de Ruídos C, a Banda de Ruídos Não-sei-quê, com os passos, as vozes, tudo tinha de estar orquestrado. Tinha de se fazer, como se dizia na rádio nessa época, uma sonoplastia. Aquilo que hoje, em cinema, se chama “sound design” e que, cá em Portugal, não se fazia a mais pequena ideia do que era. Quando realizei o «Sete Balas Para Selma», o meu segundo filme, que já tem música de fundo, digamos assim, a sonoplastia que eu fiz tinha dezassete ou dezoito bandas de som: era de tal maneira que foi dos meus filmes mais complexos em matéria de bandas de som, na mistura final tinha uma orquestração de sons diferentes que nunca mais acabava. E eu, depois de ter esse trabalho todo, pus no fim, no genérico, “montagem e sonoplastia de António de Macedo”. Você não faz ideia do que eu fui gozado! Diziam os meus colegas: “Sonoplastia? Mas que pretensioso! O que é isso? Sonoplastia é na rádio, fazem para lá uns barulhos…” Por isso, quando eu dizia “eu faço sonoplastia nos meus filmes”, era um nome que no cinema nem sequer havia em Portugal: era um termo técnico da rádio que eu fui buscar pela primeira vez para aplicar aquilo que estava a fazer em cinema. Hoje, a sonoplastia, o “sound design”, foi guindada a uma categoria extraordinária, mas antigamente ninguém lhe ligava, era uma coisa abjecta, era uma coisa menor. Eu fui insultado… não fui insultado, fui gozado: riram-se de mim. “Ah, ah, ah! Sonoplastia? Mas que pretensioso! Que disparate tão grande, isso não existe. Isso não é nada.” Nem se aperceberam da quantidade de bandas de som que esse filme tinha, que tinha uma orquestração de ruídos extraordinária. Não “ouviram”. Um filme meu, aparentemente simples, só com três actores, «As Horas de Maria», até foi o filme que mais trabalho me deu com o som, por causa da diversidade dos muitíssimos “pequenos” sons que tem, entre eles a bengala da ceguinha, da Maria. Cada vez que a bengala toca no chão, ouve-se o barulho que ela faz. Tive de colocar esses barulhos um a um: os da bengala, dos passos dela, os ruídos que ela faz quando toca nos objectos, o do vento, o do armário metálico, e tantos outros… Nesse filme todos os sons são fabricados em estúdio, não há nenhum que seja natural. É tudo posto nos sítios certos, com as intensidades próprias, com mais ou menos efeitos de eco, para criar uma musicalidade, digamos assim. É sempre essa a preocupação. Mas eu, ao longo da minha carreira, apercebi-me que nenhum crítico conseguiu “ouvir” os meus filmes. Hoje, felizmente, há uma nova geração de espectadores (e de jovens críticos) muito treinada nas tecnologias de som postas ao nosso alcance, e as pessoas compreendem a complexidade de som que há nos meus filmes, e as intenções de som que estão por ali, mas naquele tempo ninguém “ouviu”.

DS – Esse filme, «As Horas de Maria», foi polémico. Suscitou reacções bastante encaloradas. Isso faz-me pensar no seguinte: os filmes do António são sempre muito subversivos, mas a subversão é sempre introduzida por indivíduos que ocupam posições instituídas. Nesse filme temos um médico “heterodoxo”, representado pelo João D’Ávila…

AdM – Um médico descrente.

DS – …em «Os Emissários de Khalôm» temos os cientistas, os empresários… Temos o professor de história de «Os Abismos da Meia-Noite»… Ou seja, tem-se sempre a presença de figuras de “autoridade”, entre aspas, que poderiam muito bem estar ao serviço de um determinado status quo, mas que, nos seus filmes, são, afinal, as figuras que trazem a subversão.

AdM – Exacto. Isso é a malandrice.

DS – Também deve ter concorrido para haver muitas reacções encaloradas.

AdM – Algumas das críticas que me fizeram foram as de que eu queria fazer passar uma ideia de autenticidade, utilizando, precisamente, essas figuras de autoridade. De “autoridade”, entre aspas, quer dizer, de autoridade convencional, não é? Em «As Horas de Maria» o médico diz uma frase que os críticos não gostaram nada, que é a de que “eu até sou mais competente como arqueólogo do que como médico”, porque ele dedicava-se ao estudo dos manuscritos antigos. Houve até um crítico que disse que “pois, o que o Macedo quer dizer com aquilo é que aquele médico, como é mais competente como arqueólogo, está a destruir a tradição cristã com autoridade.” Com autoridade “arqueológica” e não apenas como um individuo qualquer que se lembrou de dizer o que disse. E isso vale para as outras personagens todas, no fundo. De facto, é verdade, é essa a ideia. Essa subversão é uma dupla subversão. Não é apenas a subversão do contestatário: é a subversão vinda de dentro da instituição.

DS – Nos seus filmes, mesmo nos mais próximos de um certo realismo, é inegável que há um forte substrato alegórico que, no mínimo, para a percepção do espectador, é sempre cada vez mais elevado a cada novo filme. Mas até que ponto é que não existe, também, um esoterismo subversivo, chamemos-lhe isso? Nos seus filmes é frequente aparecerem, falando numa linguagem de iniciação, “maus iniciados” e “bons profanos”. Pelo menos no meu ponto de vista. Por exemplo… «O Princípio da Sabedoria» pareceu-me ser um filme sobre "anti-iniciação". Ou sobre uma "falsa iniciação", levada a cabo pelos desejos materialistas, e pelo egoísmo mais elementar, encerrados na personagem do arquitecto, interpretada pelo Sinde Filipe. O Jardim é o local por excelência da iniciação, não é?, o adepto vai percorrendo esse local, mais ou menos concêntrico, até ser coroado pela Bem-Aventurança e partilhar do domínio dos deuses, mas no seu filme o iniciado, neste caso seria o arquitecto, “perde a coroa”, entre aspas, ou seja: vai despojando-se até acabar os seus dias como desgraçado "falso iniciado", condenado a pedinchar paliativos materiais. Quem, realmente, beneficia do Jardim são aqueles que procuram, sem segundas intenções, os objectos de suas preocupações – aqueles que, no fundo, dominam, sem terem consciência disso, sequer, a arte da percepção. Eles percepcionam que no Jardim se encontra aquilo que procuram, embora sem terem lá estado, pelo menos a maioria deles. No final, o arquitecto, em vez de ser recebido pelos deuses, é abandonado pelos serventes, naquela cena pesadelar em que ele regressa da vila, à noite – e que é um espelho invertido e irónico do ágape que lhe estaria reservado se ele tivesse tido outra arte de percepcionar. A reunião no final do filme, com todas as personagens, é, nesse sentido, simbólica, porque demonstra que nem tudo estará perdido, se houver verdadeira vontade. Vontade e arte de lá chegarem.

AdM – A sua interpretação deu-me uma visão da anti-iniciação do arquitecto – do "candidato"? – curiosamente inesperada: o Jardim como local mágico de todas as maravilhas possíveis e impossíveis, até à anti-iniciação como uma espécie de cúmplice duma entropia que finge querer negar-se a si própria, múltiplos registos se nos apresentam que, no fundo, simbolizam o infinito reservatório de todas as escolhas que temos pela frente e das quais apenas uma nos serve... e o busílis está em adivinharmos qual.

DS – Agora fiquei a pensar no conceito de "anti-iniciação", pois tudo tem o seu contrário: matéria e anti-matéria, catástrofe e eucatástrofe… Então e iniciação e anti-iniciação?
Mas, a existir, teria de ser uma "verdadeira" anti-iniciação: ou seja, algo que despoje e não algo que acrescente. Embora mestre do seu Jardim, o arquitecto parece imune, e até cego, ao maravilhoso que dele emana, preocupando-se antes com questões completamente materialistas, aquela rotina doentia – uma espécie de Usher mais enérgico, mas não menos mórbido. Ele não percorre o Jardim: deixa que outros o percorram por ele e é esse exercício que o vai tornando num anti-iniciado, até acabar despojado e abandonado no final, num reverso irónico do ágape no patamar dos deuses que seria a recompensa do iniciado perfeito.

AdM – Lembro-me, desde o tempo em que estudava René Guénon, cujos livros absorvi todos, da minha discordância do seu rígido "transcendentalismo metafísico", embora reconhecendo o seu grande contributo para uma correcta sistematização das "ciências esotéricas". Uma das coisas que me irritava era o seu conceito de anti-iniciação, que para Guénon se identificava com os métodos da psicanálise freudiana, mergulho fatal num reino de trevas (o inconsciente) e, por conseguinte, tratar-se-ia de uma "iniciação satânica", ou anti-iniciação. Ora, estou de acordo em considerar que a verdadeira iniciação é algo que acrescenta, ao passo que a anti-iniciação de Guénon não é algo que despoja, mas algo que apenas desvia – e desvia numa trivial convencionalização satânica que, verdadeiramente, não vai ao fundo das coisas, nem sequer pela inversa!

DS – Confesso que não estava a pensar no Guénon quando falei na anti-iniciação, porque ele é um autor algo distante no meu horizonte referencial, confesso, assim como o seu ponto de vista sobre este assunto, essencialmente antagónico da via ortodoxa, não se relaciona em nada com o que imaginei ao ver o seu filme. A minha ideia é mais a de uma força sorvedoura que despoja os indivíduos daquilo que eles já têm: uma espécie de travessia às avessas no Jardim. Saliento também o encontro do arquitecto com o Bom Filósofo, ou o Bom Mago, aquele que tanto recusa ser da "mão esquerda" que até chega a decepá-la. No fundo, o mundo contemporâneo é hostil à iniciação e é altamente conveniente à anti-iniciação: os indivíduos parece que caminham às avessas no Jardim, ou seja parece que começam com tudo – já coroados, não é? – e vão, aos poucos, retrocedendo e despojando-se do pouco que já eram, sem crescerem, sem frutificarem. É assustador pensar nisto, de facto, mas poderá ser um retrato não muito distante da verdade que se observa todos os dias. Por isso… Até essa sua face esotérica, chamemos-lhe isso, para simplificar, é igualmente subversiva.

AdM – É efeito do contraste. É o trabalhar por contrastes. Quero eu dizer… Como é que o ouro se revela “o ouro”? Há uma pedra de contraste que os joalheiros usam, que consegue riscar todos os metais, mas que não risca o ouro… E eu, ao trabalhar na zona do contraste, estou a tentar mostrar que o ouro é ouro. Não sei se me faço entender… Portanto, a minha preocupação ao criar essa ideia de contraste é para revelar o verdadeiro ouro. Revelado, é claro, por esse próprio contraste. Logo na Bíblia percebemos que a Luz vem das Trevas, há logo esse contraste inicial. Vamos lá a ver, quando lemos o «Génesis», esquecemo-nos de que é um livro religioso: aquelas histórias são mitologias paleo-hebraicas, da Idade das Trevas, do princípio dos tempos, de um primitivismo muito grande. A gente diz “é primitivo, é primitivo”… Não, atenção, os primitivos tinham, talvez, um outro tipo de visão, mais límpida, não sei… Nós, hoje, já temos uma visão muito contaminada por muita coisa. E quando eles dizem que das Trevas surgiu a Luz há aí qualquer coisa de profundo, nesse contraste: a Luz que nasce do coração das Trevas. E a ciência, de certa maneira, veio um bocado confirmar isso, com a teoria do "Big Bang", quando diz que do Caos, portanto do Ponto Zero, surgiram as primeiras partículas que foram os fotões! Ora, como é que o raio de um tipo que escreveu a Bíblia sabia que os fotões apareceram primeiro? E, mais ainda, quando ele começa a descrever, também na Bíblia… e não é por ser na Bíblia, porque eu esqueço-me que aquilo é um livro religioso… eu admiro-me é como num livro que podia ser sumério ou asteca, escrito há milhares de anos, houve alguém que escreveu aquilo, alguém que teve a luminosidade de perceber que no primeiro dia surgiu a luz, foi logo no primeiro dia que a divindade disse “Faça-se a luz”, e só no segundo e no terceiro dias é que foram surgindo isto e aquilo, mas o Sol só surgiu no quarto dia! Ora, para aquela gente… um raciocino à “cientista” actual… para aquela gente, o Sol é que era a única fonte de luz, por isso como é que este estúpido disse que a luz surgiu no primeiro dia e, depois, colocou o Sol a surgir no quarto dia? Isto não é um disparate completo? Bom, se nós virmos a cronologia cosmológica dada pela ciência contemporânea e se dividirmos os sete dias em milhões de anos, digamos assim…

DS – São dias alegóricos. Simbólicos.

AdM – São dias alegóricos. E, aí, descobrimos que a nossa galáxia só surgiu no “quarto dia”, entre aspas. Não sei se me faço entender… Os primitivos não lhes chamavam fotões, nem eles sabiam nada disso, mas tinham conhecimento de qualquer coisa, e isso é extremamente interessante. Realmente, é essa ideia de que não há Luz sem Trevas… De que sempre que há luz há sombra… a própria luz provoca sombra… Se não houver o Mal eu não sei o que é o Bem e se não houver o Bem eu não sei o que é o Mal e assim sucessivamente. Começamos a ficar inquietos, porque percebemos que para apreciarmos o Bem tem de haver o Mal – então, isso é horrível. Olhamos à nossa volta e vemos coisas horríveis, guerras, morticínios, genocídios, crimes de todas as ordens, das mais horrorosas. E, depois, a seguir, vemos as flores, os passarinhos, a Primavera, a beleza, um sorriso de criança… Mas será possível que para eu apreciar um sorriso de criança tenho de, a seguir, ver um espectáculo horrível de outras crianças a serem espetadas com baionetas por soldados? Isto é muito esquisito: estas Trevas de um lado e a Luz do outro. Como é que é possível? Mas isso co-existe e eu interrogo-me. É a interrogação dos meus filmes – esse tal esoterismo, que é revelado nesse tal contraste, é, de facto, uma pergunta. No fundo, repare, todos os meus filmes terminam em forma de ponto de interrogação. Eu não faço afirmações dogmáticas. Mesmo quando parece que o filme acaba, e acaba bem, fica sempre uma pergunta. Em «As Horas de Maria», no final, a freira vai-se embora…

DS – A Maria é a alma humana, atrofiada pela Igreja.

AdM – Pela Igreja. E pelo médico… Pelo dois! Pelos dois dogmatismos fanáticos, o religioso e o materialista… Mas pela Igreja, sobretudo. A freira é que a mata, não é? Reza-lhe a extrema-unção e ela morre. Mas morre banhada em luz. Não sei se se vê nesta cópia que foi usada… que a luz aumenta.

DS – Sim.

AdM – Mas termina em ponto de interrogação… Todos os meus filmes terminam dessa forma. Há um em que isso é descarado, é o «Nojo aos Cães», em que no final a palavra FIM aparece mesmo com um ponto de interrogação: “FIM?”. Em «Os Abismos da Meia-Noite», que termina em apoteose, o Grande Contemplador vira-se para o Magister, que estava à espera de ser promovido, e diz-lhe “agora vamos esperar mais uns séculos até ver” e o outro fica com um ar… “Então, espera lá? E, agora, a seguir a isto?... E a próxima rosa?... Terá mais sorte que esta?” Todos os meus filmes terminam com uma pergunta. No fundo, o meu problema é esse: é a Pergunta. Aliás, já o Almada-Negreiros dizia… Cito isso no meu filme sobre o Almada, aquela frase dele, do livro «Pierrot e Arlequim, Personagens de Teatro», em que, no fim, o Anjo da Guarda diz que a tua pergunta está tão bem perguntada, que se pensares mais um bocadinho tens já a resposta a seguir”. A própria resposta está contida na pergunta bem perguntada: o problema não está em responder, o problema está em bem perguntar. E a minha preocupação, nos meus filmes, é bem perguntar. Como é que se faz a pergunta? Pode-se fazer a pergunta malfeita – e se eu fizer a pergunta malfeita obtenho uma resposta estúpida. Ou melhor, uma resposta correcta em relação à pergunta feita, mas acaba por me levar pelo caminho errado. Estou-me a lembrar de um exemplo disso, que aconteceu com o meu filme «A Promessa», que é um exercício de sociologia aplicada… Eu parto da peça do Bernardo Santareno, mas reformulei e reinterpretei a peça e eu próprio fui para o local… fui para os Palheiros da Tocha e para os Palheiros de Mira, aquelas zonas em que me dava jeito que a história se passasse, porque a peça… acho que se passa na Nazaré ou na Póvoa do Varzim… mas eu achei que isso não era suficientemente interessante e decidi mudar a história para os Palheiros da Tocha, para os Palheiros de Mira – que já não existem como se vêem no filme. «A Promessa», hoje, é um filme arqueológico, aliás é um filme precioso: não pelo filme, em si, mas pelo aspecto histórico-documental que apresenta. E eu fui para lá, para aquela região, com o António Casimiro, que era o cenógrafo e o figurinista, mais o director de fotografia, o Elso Roque. Fomos uns meses antes de começar a rodagem e eu levei um gravador e comecei a entrevistar aquela gente para saber como eles agiam e se comportavam. Descobri que havia certas queixas que eles tinham contra o padre… havia várias situações interessantes e eu ia gravando tudo e, ao mesmo tempo, ia observando como é que aquela gente falava, como se vestia, como funcionava. Recolhemos todos uma série de dados, de informações, com as nossas perguntas todas… O António Casimiro, também, para fazer os cenários, porque «A Promessa» tem cenários exteriores, naturais, mas, depois, há muita coisa feita em estúdio. O exterior da casa das personagens principais é uma das casotas da aldeia, mas o interior é feito em estúdio. O moinho, a mesma coisa: a gente construiu lá um moinho, o exterior do moinho, num morro, mas o interior foi feito em estúdio. Isto a propósito da pergunta bem ou mal perguntada… Começámos a preparar tudo, os guarda-roupas todos… Quando chegou a altura de começarmos a filmar voltámos para lá, para os Palheiros da Tocha… Instalámo-nos num hotel na Figueira da Foz, que era, digamos, o hotel mais próximo. Nós tínhamos de ir de carro, todos os dias, da Figueira da Foz para os Palheiros da Tocha. Não era muito longe, cerca de vinte quilómetros, fazia-se bem de carro num quarto de hora, mais ou menos. Logo nos primeiros dias havia uma cena, com a Guida Maria, que fazia de Maria do Mar, a mulher do sacristão, que era também pescador, e na qual ela vinha pela praia fora e ia para casa… Tinha ido buscar água, vinha com uma bilha de água, e subia os degrauzinhos até chegar a casa, que aquelas casas estavam todas assentes em grandes estacas de madeira por causa das marés… E ali ao pé estavam umas figurantes, umas mulheres da aldeia que nós tínhamos contratado. Aliás, a produção já tinha falado com aquela gente toda da aldeia para arranjar figurantes e eles tinham alinhado, eles e elas, todos contentes. Eram pessoas autênticas, que viviam ali, e davam uma figuração realista. Em dado momento, no intervalo da filmagem, quando eu estava a falar com a equipa, põem-se umas velhotas, umas três ou quatro figurantes, a falar umas com as outras e eu comecei a ouvi-las. Estavam a contar a história do filme. Dizia uma para a outra “pois, esta é uma menina que vem de Lisboa, que faz isto assim e encontra não-sei-quem”, enfim, uma história que não tinha nada a ver com o filme. Achei muita graça àquilo: “que ignorantes que são, coitadas também não leram o guião…” Aproximei-me e expliquei-lhes: “Estão muito enganadas. Esta é uma menina cá da aldeia, casada com o sacristão, que é também pescador e vai para o mar…” “Não”, disseram elas, “é uma menina de Lisboa, vê-se perfeitamente. Com uma saia de pregas? Nem pensar. Uma menina da aldeia tem de ter uma saia assim, com um avental… Se ela for solteira, o avental é para cima. Se for casada, tem o avental para baixo e se ela for casada com filhos tem o avental não-sei-quê. O lenço, posto na cabeça, se for solteira, casada, etc. Se o marido estiver fora, já não pode usar o lenço assim, tem de amarrá-lo assado…” E nós começámos a mudar de cor, porque o filme estava todo errado, de uma ponta à outra. E eu disse: “alto, pára já a filmagem toda, pára que estou-me a aperceber que há aqui qualquer coisa que não está bem”. Parou a filmagem. Nesse dia já não filmámos mais. O que é se passava? Fomos ter com uma actriz do teatro amador que era natural da terra e vivia lá, e já tinha colaborado com informações, já era nossa conhecida… Chamámo-la e eu contei-lhe a história. “Como é que vocês fizeram isto?”, pergunta ela. “Então, o António Casimiro esteve cá, fez umas perguntas, informou-se e a roupa que mandámos fazer…” “Não, isto está tudo malfeito, as velhotas é que têm razão.” O avental, o lenço, não-sei-que-mais… O xaile, que se põe por trás dos ombros, tem um significado: se for posto de determinada maneira é porque o marido dela não-sei-quê… Ou ela é viúva ou ela é solteira… Quer dizer…Era uma colecção de códigos que não lhe passa pela cabeça. E nós, aí, percebemos que, naqueles meses de pesquisa antes da rodagem do filme começar, tínhamos feito as perguntas erradas! Quer dizer, tínhamos recebido respostas certas para uma série de perguntas erradas. Repare que isto é extraordinário. E eu disse para comigo “perguntar é mais importante que responder”. No saber perguntar é que está o segredo. Conclusão: não filmámos naquele dia… Perdeu-se o dinheiro todo, porque uma equipa parada está a ganhar… Foi uma noite inteira sem dormir, porque a senhora, simpaticamente, resolveu ir connosco bater às portas da gente toda daquela vizinhança, na aldeia e arredores, a pedir roupas emprestadas para os actores e as actrizes vestirem. E ela explicou-nos os códigos certos, em relação ao argumento do filme. Portanto, perderam-se dois dias de filmagem… tive de refilmar tudo aquilo que já tinha filmado, mas como devia de ser… E as velhotas, quando viram de novo, já disseram: “ah, esta sim, é, realmente, uma menina cá da aldeia que é casada com o sacristão, que está quase a ir para a pesca”… É espantoso que, quando se faz sociologia no local, tem de fazer-se trabalho de campo. Normalmente, cá, faz-se sociologia “de livro”, vai-se consultar os livros dos sociólogos anteriores e continua-se a repetir o que eles já escreveram. O Moisés Espírito Santo sempre me ensinou que para se fazer boa sociologia tem de se fazer trabalho de campo: é preciso sair e ir aos locais, fotografar, e fazer entrevistas e saber fazer as perguntas certas. E eu percebi isso com a rodagem de «A Promessa», é espantoso. Muito antes de cursar sociologia, o que só fiz recentemente.

DS – O antropólogo escocês James George Frazer, autor do «The Golden Bough», orgulhava-se de nunca na vida ter visitado um único dos países sobre os quais escreveu nos seus livros.

AdM – Correu um risco muito grande, mas o problema era dele… Isto é interessante, porque estávamos a falar sobre o esoterismo dos meus filmes… Eles acabam sempre com uma pergunta e a minha grande preocupação – e dúvida – é se fiz as perguntas certas, porque as respostas não sou eu que dou. Alguém as dará. Todo o meu esoterismo, no cinema e na ficção literária que escrevo, é um esoterismo interrogante. Como dizia o Anjo da Guarda do Almada-Negreiros. Esse texto, que ele escreveu em 1924, o «Pierrot e Arlequim, Personagens de Teatro» é muito interessante. A pergunta bem feita é o grande mistério.

DS – E as suas mensagens, as mensagens dos seus filmes, poderiam existir, ser transmitidas, sem o componente esotérico?

AdM – Não, de maneira nenhuma. O esoterismo não está ao serviço da ficção, faz parte da ficção. É um esoterismo intrínseco, independentemente de se acreditar nele ou não. Isso é secundário, até porque a ficção, ela própria, não é para ser acreditada.

DS – Qualquer pessoa pode ver um filme do António, o seu cinema é para todos, e qualquer espectador é livre de fazer a sua interpretação. Porém, não será erróneo dizer que aquilo que o António, de facto, quer transmitir deverá ser perceptível para um número reduzido de pessoas?

AdM – É verdade, tenho consciência disso. Mas é um problema meu, que não sei ultrapassar.

DS – Haverá espectadores que serão atraídos aos filmes do António pelo seu lado fantástico, porque gostam de Fantástico. Haverá outros que, de maneira geral, se interessam por cinema português e é isso que procuram. E haverá outros que, de facto, vão ao encontro da mensagem especial que o António quer transmitir.

AdM – Eventualmente, espero bem que sim. Pelo menos, que haja alguns.

DS – Voltando a obra para o mainstream… Acha que ela sofreu por ter elementos que só alguns indivíduos, pela sua cultura, pela sua sensibilidade, conseguem captar? Ou que, por terem um contacto mais próximo com esses elementos, chegam a eles com mais facilidade?

AdM – Sofre sempre. É evidente que só uma faixa limitada é que compreenderá, não gosto da palavra “compreender”, neste sentido… Há, de facto, do ponto de vista esotérico, uma mensagem, ou uma pergunta, como dizia há pouco, e penso que essa pergunta tem de repercutir no espectador para que este se sinta motivado a responder. É curioso, porque uma das críticas que costumava ser feita aos meus filmes era a de que eu fazia “piscadelas de olho” ao público: isto é, fazia um tipo de cinema que, aparentemente, era “divertido”, entre aspas, para o grande público. Nem que fosse um drama, como o «Domingo à Tarde», ou um filme como o «Chá Forte Com Limão», era visto como um cinema apetecível para o grande público. Como se isso fosse um crime… que não é, porque… Lá está!, o grande público… há do grande público quem seja atraído pela fantasia, outros são atraídos por outra coisa qualquer… Mas, provavelmente, só pouquíssimos é que irão perceber os filmes: isto é, assimilar, aceitar ou entender, mais ou menos, aonde eu quero chegar. Mas, seja como for, aquilo que eu quero dizer está lá e mesmo a faixa maior do público que vai assistir só pelo divertimento – “olha que engraçado, tem aqui um fantasma, que divertido que isto é” – mesmo para esses há qualquer coisa que fica. A ideia é esta: “vamos pôr isto de uma forma o mais acessível possível”, embora incorrendo na ira dos tais críticos que dizem que eu faço piscadelas de olho ao grande público, como se o grande público fosse uma coisa horrível, mas, enfim... O que eu quero dizer está lá. Mais ou menos escondido ou não-escondido… ou não-aparente para um determinado tipo de pessoas e mais aparente para uma faixa mais reduzida… mas o que eu quero dizer – ou perguntar – está lá e fica semeado em todos: mesmo naqueles que vão assistir só para se divertirem um bocado. E as coisas, quando são semeadas, germinam – mais tarde ou mais cedo. Provavelmente, em alguns, poucos, germinarão mais cedo; em outros, poderão germinar mais tarde – ou até nunca germinar. Essa é que é a minha preocupação. Não estou muito preocupado com o tipo de receptividade que se possa vir a ter, porque sei que se acabará por ter, mais tarde ou mais cedo. Aliás, como está a haver, curiosamente, quarenta, trinta anos depois! Na altura foi um descalabro completo. Quarenta ou trinta anos depois, está-se a ver agora um certo tipo de público a aderir… Não sei se está a aderir pelo melhor lado ou pelo pior lado… não me preocupo…

DS – Vão ao caminho.

AdM – Vão ao caminho. Ou seja, aparentemente, eu tinha razão.

(Continua.)