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sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Dez Coisas Que Desconhecem Sobre Aleister Crowley e Fernando Pessoa

O passatempo «Dez Coisas Que Desconhecem Sobre...» que lancei aqui há uns dias foi um sucesso: obrigado a todos pelas vossas sugestões e propostas, todas muitíssimo interessantes, que enviaram por email e por comentários e mensagens de Facebook. A vencedora foi a leitora Helena Teresa que, por Facebook, sugeriu que eu falasse sobre o encontro de Aleister Crowley com Fernando Pessoa. Como sabem, já escrevi sobre esse encontro no meu romance A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência, 2007), mas no momento em que li essa sugestão fiquei com uma vontade enorme de revisitar essas figuras que tanto admiro. De maneira que, em vez de falar sobre o encontro de ambos, na Lisboa de 1930, escolhi dez coisas que, provavelmente, vocês desconhecem sobre eles. Espero que gostem e se surpreendam com...

Dez Coisas Que Desconhecem Sobre Aleister Crowley e Fernando Pessoa



1 - Mussolini expulsou Aleister Crowley de Itália, porque suspeitou que ele fosse um agente comunista

Em Março de 1920, mais encantado pela ideia de concretizar um sonho literário do que tornar-se guru de uma seita religiosa, Aleister Crowley, acompanhado pela companheira Leah Hirsig e por um punhado de amigos, ocupou uma propriedade campesina na comuna italiana de Cefalù, na província de Palermo, na Sicília, e estabeleceu nesse lugar a sua "Abadia de Thelema": espécie de retiro mágico-filosófico, inspirado na Abbaye de Thélème descrita por François Rabelais no Capítulo LVII do livro Gargantua (1534). Apesar de Aleister Crowley sempre se ter sentido atraído pela Itália, em virtude de muitos dos seus ídolos literários terem viajado para esse país, a mudança para Cefalù ocorreu numa etapa da sua vida em que ele quis emular o exemplo do pintor Paul Gauguin que, aos quarenta e três anos de idade, abandonou o emprego, a mulher e os filhos para ir pintar para a ilha do Taiti, na Polinésia Francesa. Quando se mudou para Cefalù, Crowley contava com quarenta e quatro anos de idade (só faria quarenta e cinco em Outubro) e identificava-se totalmente com o percurso de Gauguin, que até transformou em Santo no rito da sua Missa Gnóstica. Nessa ilha, à semelhança de Gauguin no Taiti - que baptizara a sua cabana, decorada com telas de cores vivas, com o nome de "Casa dos Prazeres Carnais" -, Crowley baptizou de "Cela das Putas" o aposento principal da "Abadia de Thelema" e decorou-o com pinturas murais de cores garridas. Por três anos, a rotina de Crowley e seu entourage em Cefalù foi paradisíaca, feita de passeios ao ar livre, mergulhos na praia, sessões de leitura e de meditação. Confundindo os "discípulos" que esperavam um guru tradicional, Aleister Crowley pediu-lhes que mantivessem um diário onde apontassem as suas experiências pessoais de forma a que, individualmente, construíssem o seu próprio percurso "mágico", porque a disciplina de Thelema, por ele criada, arrogava que cada indivíduo tinha um papel particular a desempenhar no mundo e que se cada um o realizasse em pleno nunca entraria em rota de colisão com ninguém: é isso que expressa o mote «Do What Thou Wilt» (também retirado da obra de Rabelais), mais a sentença «Every Man and Every Woman is a Star», redigida no inaugural The Book of the Law, que tem sido muitíssimo mal-interpretada como sendo um convite ao desregramento e egoísmo mais elementares e mesquinhos. Um desses discípulos gregários, Raoul Loveday, que também era o secretário de Crowley, adoeceu em Janeiro de 1923, depois de ter bebido água de uma bica durante um passeio que deu com a mulher, Betty May, pelas imediações de um convento que ficava perto da "Abadia de Thelema"; Crowley já avisara que era perigoso beber dessa bica e o resultado foi que Loveday morreu poucos dias depois, em Fevereiro, com uma fulminante infecção nos intestinos e no fígado: como não era católico, não o deixaram ser sepultado no cemitério e foi enterrado num terreno perto da "Abadia". A morte de Loveday é apontada em algumas fontes como tendo sido o motivo pelo qual Crowley foi expulso de Itália, mas a verdade foi bem diferente.
Pouco tempo depois, Aleister Crowley (acompanhado por Leah Hirsig e Norman Mudd, o novo secretário) foi chamado ao gabinete do comissário da polícia, em Palermo, que lhe deu uma semana para abandonar o país: a ordem de expulsão fora enviada pelo Ministério da Administração Interna e tinha como base a argumentação de que o deboche e a perversão sexual na "Abadia de Thelema" tinham de acabar imediatamente - uma desculpa totalmente esfarrapada, porque somente Crowley teve ordem de expulsão, o que deixaria os seus seguidores à vontade para continuarem com as supostas orgias. Os habitantes de Cefalù chegaram a escrever uma petição para que o Signore Crowley não fosse mandado embora, porque ele e os amigos eram boa gente e, sobretudo, bons para a economia local, posto que gastavam muito dinheiro, mas a iniciativa caiu em ouvidos moucos. A verdade sobre a expulsão de Crowley, como pode constatar-se pela leitura da sua pasta no Arquivo Central do Estado, em Roma - um ficheiro cheio de documentação espectacular sobre maçonaria e comunismo -, é que ele era suspeito de manter relações secretas e subversivas com Giovanni Antonio Colunna, político siciliano anti-fascista que Mussolini também expulsou - Colunna era amigo do cônsul inglês em Palermo, que era maçon - e ainda com um activista sérvio chamado Dimitrije Mitrinović, criador do movimento revolucionário New Europe que advogava uma utopia colectivista e anti-clerical.
As "ligações" entre Crowley e o comunismo, com efeito, não eram novas: quando foi editado em livro, The Book of the Law foi interpretado como sendo propaganda comunista, porque instigava à revolução violenta contra o estado das coisas e defendia que da revolução nasceria uma nova era. O próprio Crowley não ajudou ao esclarecimento, afirmando diversas vezes que The Book of the Law era, de facto, «um livro revolucionário» e que, em breve, a velha ordem seria substítuida por uma nova. Num período fortemente politizado, ninguém percebeu a linguagem alegórica de Crowley, que nunca teve a política em mente, e julgaram que se tratava de propaganda comunista disfarçada.
Acabou dessa forma o sonho da "Abadia de Thelema". Proibido de pôr os pés na Itália, Crowley escreveu vários poemas anti-Mussolini; contudo, inversamente às suspeitas deste, ele nunca foi comunista, nem sequer socialista. Mas, apesar disso, também desprezou fortemente os fascistas: antes de ser expulso de Itália já se referia a eles nos seus escritos como os «banditi».          

2 - Inversamente à imagem que foi popularizada, Aleister Crowley nunca foi satanista

Aleister Crowley foi um magneto de controvérsia e a imprensa criou-lhe uma imagem exagerada de indivíduo perigoso e perverso. O jornal inglês John Bull, em especial, criou em 1923, na sequência dos "escândalos" perpetrados na "Abadia de Thelema", a mais colorida sequência de epítetos que Crowley teve: «Wizard of Wickedness» (17 de Março), «Wickedest Man in the World» (24 de Março), «King of Depravity» (11 de Abril) e «The Man we'd Like to Hang» (19 Maio). Quando Betty May abandonou a "Abadia", depois da morte do marido, vendeu ao jornal inglês The Sunday Express, por uma boa quantia de dinheiro, um relato difamatório e delirante, em primeira mão, sobre o sacrifício de um gato num ritual satânico na "Abadia", revelando que o marido tinha morrido por beber o sangue desse gato - mais tarde, arrependida, escreveu várias vezes a Crowley, pedindo-lhe desculpas, mas o mal já estava feito. A verdade é que Crowley nunca foi satânico, nem satanista, pese o facto de muitas correntes que professam estas orientações se dizerem inspiradas na sua figura - na realidade, inspiradas pela imagem "cartoonesca" de Crowley, criada pela imprensa.
No sistema mágico e filosófico de Crowley (Thelema) abundam as referências anti-cristãs e anti-clericais, mas Satanás nem sequer está representado de forma simbólica, quanto mais de maneira preponderante. A disciplina de Thelema faz-se de referências que extravasam completamente o espectro das fontes judaico-cristãs e nem de longe forma um corpo antagónico ao cristianismo por via inversa, como o satanismo teísta cifra. É preciso considerar que Aleister Crowley foi um caso paradigmático no ocultismo ocidental do século XX, em virtude da sua educação clássica e percurso de vida muitíssimo viajado: ele recuperou de fontes díspares ocidentais e orientais - a astrologia, a cabala, a magia enoquiana, os mitos egípcios, a alquimia, o I Ching, o budismo, o taoísmo, o yoga - aquilo que mais lhe interessou para criar uma nova filosofia "mágica", mas iniciática, que, pode dizer-se, começa com a escrita de The Book of the Law, mas foi sendo desenvolvida e modificada quase até ao final da sua vida, como se percebe pela publicação póstuma de Magick Without Tears, um livro muito mais luminoso e positivo que The Book of the Law. Às vezes, até se tem a impressão de que Crowley, na tónica que coloca no rigor científico - no método da experimentação empírica e da repetição de resultados -, numa abordagem racional e pragmática às práticas mágicas, se aproxima mais de um ponto de vista ateu ou agnóstico do que de um ponto de vista crente no sobrenatural. De facto, ele escreveu, diversas vezes, que se se fizer determinada acção (mágica) ocorrerá um determinado resultado (mágico), mas que esses fenómenos mágicos são fenómenos naturais: apenas ainda não se encontram explicados pela ciência. Afirma-o, entre outros textos, no Liber DCCCLX:
«I further take this opportunity of asserting my Atheism. I believe that all these phenomena are as explicable as the formation of hoar-frost or of glacier tables. I believe "Attainment" to be a simple supreme sane state of the human brain. I do not believe in miracles; I do not think that God could cause a monkey, clergyman, or rationalist to attain. I am taking all this trouble of the Record principally in hope that it will show exactly what mental and physical conditions precede, accompany, and follow "attainment" so that others may reproduce, through those conditions, that Result. I believe in the Law of Cause and Effect.» [Sublinhado meu.]
De qualquer das formas, na visão de Crowley, a magia não deve servir para alcançar objectivos imediatos, mas servir de caminho, de via iniciática, para alcançar-se um grau, um horizonte, mais elevado, mais nobre, que é o da transformação espiritual do indivíduo; transformação a que ele chamou, a dada altura, de «conversação com o Sagrado Anjo da Guarda»: um elemento mais evoluído que a carne e que está presente em todos os indivíduos. Ao longo da vida, Crowley foi desconstruindo o significado de «Sagrado Anjo da Guarda» e acabou por identificar o seu com a inteligência preternatural que lhe ditara o The Book of the Law, no Cairo, em 1904: a misteriosa presença que baptizou de Aiwass e que, para ele, não era nenhum espírito, mas uma inteligência extra-dimensional, à semelhança dos Chefes Secretos da Ordem Hermética da Aurora Dourada ou os Mahatmas da Teosofia de via blavatskyana.
O facto de Aleister Crowley se ter intitulado "Besta 666" nada tem a ver com adoração pelo Diabo, porque ele bem sabia que o número 666 nada tem a ver com Satanás ou com satanismo, mas que significa, na cabala, "Espírito do Sol". No livro bíblico Apocalipse (nome que apenas significa «revelação do que está oculto»), é referido que «o número da Besta é o número de um homem e esse número é 666», porque, de facto, esse é mesmo o número do Homem, já que este foi criado por Deus no Sexto Dia da Criação, como pode ler-se no Génesis. As interpretações erróneas que colam este número ao satanismo são completamente espúrias e nada têm a ver com o significado original dessa referência. A prova de que Crowley sabia muito bem destas relações autênticas (ao contrário dos seus epígonos contemporâneos) é que numa sessão de um processo judicial que moveu contra Nina Hamnett por difamação, respondeu desta maneira ao procurador que lhe perguntou qual era o significado do nome "Besta 666": «Significa apenas Luz do Sol. Pode chamar-me Pequeno Raio de Sol».        

3 - Aleister Crowley foi fortemente anti-clerical, mas a sua ideia do nascimento do Novo Éon está impregnada de Joaquinismo

No início do século XIII, já a reforma de Císter ia a meio-gás, o movimento milenarista medieval reforça-se inesperadamente com o desenvolvimento do Joaquinismo: corrente criada em volta das ideias do frade cisterciense calabrês Joaquim de Fiore, falecido em 1202 (a Calábria é a biqueira da "bota" italiana e nessa altura fazia parte do reino da Sicília). Em essência, o modelo milenarista joaquimita consiste numa visão macro-histórica das origens e destino da humanidade, formada por Três Idades, à semelhança da Santíssima Trindade: a pretérita Idade do Pai (os eventos narrados no Antigo Testamento), a presente Idade do Filho (os eventos narrados no Novo Testamento e a Era da Igreja) e a vindoura Idade do Espírito Santo (um período emergente de profunda contemplação espiritual, perfeição e paz). Joaquim de Fiore criou esta doutrina através do estudo do livro Apocalipse e calculou que a Idade do Espírito Santo despontaria em 1260. Três anos depois dessa data, no Sínodo de Arles, o Papa Alexandre IV condenou o Joaquinismo como sendo uma perigosa heresia. Por que é que uma Idade do Espírito Santo, plena de profunda contemplação, perfeição e paz, consistia numa perigosa heresia? Embora a profunda contemplação, a perfeição e a paz joaquimitas fossem conceitos com os quais, em princípio, a Igreja não teria grandes dificuldades em lidar, Joaquim de Fiore também profetizou que a Idade do Espírito Santo traria o desmantelamento definitivo de todas as estruturas eclesiásticas - e isso é que a Igreja não podia tolerar; daí a condenação tout court do Joaquinismo (na verdade, o Papa Inocêncio III já o tinha condenado, mas apenas em parte, em 1215, no IV Concílio de Latrão). Independentemente disso, o Joaquinismo fez furor entre os franciscanos, que sempre foram, de certa forma, bastante anti-institucionais e, ao longo dos séculos vindouros, o milenarismo joaquimita provou ser um poderoso algoritmo, capaz de adaptar-se e dar sentido a um florilégio estonteante de ideias milenaristas de várias proveniências. Entre elas, o milenarismo crowleyano.
Não reste dúvidas que a narrativa apocalíptica de The Book of the Law (até este título é o mesmo nome que os judeus dão ao Pentateuco) é, em essência, uma nova versão do velho ideal milenarista, apocalíptico - em maior espessura, do milenarismo de recorte joaquimita. Na visão milenarista de Aleister Crowley, desenvolvida em The Book of the Law, pedra basilar do edifício de Thelema, as Três Idades são as seguintes: a Idade da Mãe (uma idade que simboliza uma hipotética madrugada histórica matriarcal, cujo narradora é Nuit, a deusa egípcia da Noite), a Idade do Pai (a idade das religiões patriarcais e monoteístas, cujo narrador é Hadit, noivo de Nuit) e a Idade do Filho (o Novo Éon, o início de uma nova idade cósmica, narrada por Ra-Hoor-Khuit, jovem deus rebelde e vingativo, identificado com Harpocrates: o deus grego do silêncio, baseado nas representações infantes do deus egípcio Hórus, o Sol recém-nascido). Assim, pode também dizer-se que Nuit é identificada com Ísis e Hadit com Osíris. Neste modelo milenarista contemporâneo, sincrético, a energia iconoclasta e indomável da juventude, representada pela Idade do Filho, combate com violência o poder institucional e autoritário, mas decadente, moribundo, da Idade do Pai. É, de facto, uma narrativa "revolucionária" que instiga uma mudança violenta contra o estado das coisas - daí, na altura, ter sido entendida como propaganda radical de esquerda. Para Crowley, o advento do Novo Éon, do qual ele se apresentou como profeta, na mesma linha dos profetas veterotestamentários e de Cristo, seria uma ruptura violenta acompanhada de terramotos e guerras. Quando os efeitos catastróficos se dissipassem, instalar-se-ia, como esperado e costumeiro nas ideias milenaristas, a iluminação (thelemita) num período solar de progressão espiritual.

4 - Aleister Crowley "democratizou" as práticas mágicas


No ínicio do século XX, Aleister Crowley quebrou laços com a Ordem Hermética da Aurora Dourada, na qual tinha sido iniciado poucos anos antes. Ele entrou para essa ordem numa altura em que ela estava a ser dividida internamente por culpa de um conflito pela liderança e essa conjuntura atribulada não foi de maneira nenhuma conveniente à sua integração. À parte disso, Crowley hostilizou-se rapidamente, a um nível pessoal, com alguns membros ilustres; entre os quais o poeta William Butler Yeats e o ocultista Arthur Edward Waite, co-criador do baralho de Tarot de Rider-Waite e tradutor para inglês das obras de Eliphas Levi. Em determinado momento, Crowley pôs-se do lado do líder da ordem, Samuel Liddell MacGregor Mathers, na batalha intestina pelo poder, mas não tardou a hostilizar-se com ele e, a partir daí, a saída da ordem tornou-se inevitável. No término de um período subsequente em que se dedicou ao alpinismo (liderou expedições pioneiras às montanhas Kangchenjunga, nos Himalaias, e Chogo-Ri, entre o Paquistão e a China), a viajar pelo Oriente, pelo Egipto e pelo México (onde também fez alpinismo), Crowley voltou a Londres e, a partir de 1907, com a colaboração dos amigos George Cecil Jones (outro dissidente da Ordem Hermética da Aurora Dourada) e John Frederick Charles Fuller, começou a desenvolver a sua própria fraternidade mágica/iniciática: a thelémica Argenteum Astrum (ou, simplesmente, A∴A∴), cujo lema era «The Method of Science, the Aim of Religion». Em pouco tempo, foi criado o órgão oficial de divulgação da ordem, intitulado The Equinox: uma revista corpulenta, bianual, repleta de artigos e ensaios sobre temas esotéricos. O primeiro número foi editado na Primavera de 1909 (o segundo número foi publicado, como é evidente, no Outono - daí o nome da revista). Certamente por despeito para com McGregor Mathers, The Equinox publicou bastante material referente à Ordem Hermética da Aurora Dourada, tornando público um vasto conjunto de referências que, até essa data, era coutada exclusiva dessa sociedade secreta. Na verdade, depois da Primeira Grande Guerra, numa estratégia de escapismo, a Europa devastada virou-se para o oculto e para o fantástico na literatura, nas artes e na vida privada. Toda a gente quis namorar com o oculto e a revista The Equinox foi, nesse aspecto, fundamental, porque havia popularizado, uns anos antes, todo um conjunto de temas e matérias-primas que, já embebidos no caldo cultural, foram instrumentalizados e transformados: a magia e as iniciações deixaram de ser algo mais ou menos aristocrático para, bem ou mal, serem adoptadas pelas massas. Após a Segunda Grande Guerra, o mesmo fenómeno escapista de procura pelo oculto, pelo fabuloso e pelo espiritual fortaleceu-se ainda mais e cristalizou, em definitivo, um pouco por todo o lado, durante o período psicadélico dos Anos 60 e o advento da chamada New Age. Sem a publicação seminal de The Equinox e as restantes obras de Crowley é provável que nada disto tivesse acontecido ou, então, que tivesse acontecido mais lentamente, de forma irregular.


5 - O maior elo de ligação entre Aleister Crowley e Fernando Pessoa foi a paixão pela pseudonímia

Surpreendentemente, Fernando Pessoa e Aleister Crowley tinham bastantes coisas em comum: ambos foram criaturas moldadas por um rigído sistema educacional britânico, sob o qual era mal visto os rapazes demonstrarem as suas emoções (um sistema que fez Crowley explodir e Pessoa implodir); e ambos partilharam o mesmo sentido de humor truculento, o interesse pelas letras e pelo oculto. Para Fernando Pessoa, a iniciação era «uma admissão à conversação com os anjos» e a poesia o canal que conduzia a essa iniciação; tal como para Aleister Crowley o canal para a conversação com o Sagrado Anjo da Guarda era a magia. Mas a maior afinidade entre eles foi, certamente, a paixão pela pseudonímia: Fernando Pessoa criou dezenas de «heterónimos», personagens literárias com biografias, personalidades e estilos autorais distintos, com as quais assinava a maioria dos seus escritos; e Aleister Crowley criou dezenas de pseudónimos para assinar os artigos e ensaios que publicou em The Equinox e diversas personagens com as quais escrevia sobre si próprio nos seus livros. Já em criança, Fernando Pessoa criava personalidades fictícias para assinar pequenos versos, composições ou, simplesmente, para vestir essas peles em brincadeiras com os irmãos: Chevalier de Pas, Capitão Thibeaut, Quebranto Oessus ou Adolph Moscow são algumas das personagens da infância pessoana. Já em adulto, em Lisboa, Fernando Pessoa iria assumir uma espécie de metempsicose zoomórfica através da figura do Íbis: ave pernalta que na mitologia egípcia é avatar do Deus Toth, o criador da escrita e da magia. Durante algum tempo, quando saía com a família, costumava parar de repente na rua para assumir a postura do Íbis, recolhendo uma perna e encostando o dedo ao nariz, para enorme embaraço de quem o acompanhava - era uma pantomima quasi-ritualística, à guisa de santo-e-senha de sociedade secreta. Aleister Crowley tinha, também, uma brincadeira de rua com a qual espantava os amigos e que consistia em seguir um indivíduo escolhido aleatoriamente e imitar-lhe na perfeição os movimentos; quando atingia essa sincronia, simulava uma queda, de repente, e divertia-se imenso a ver o fulano a desequilibrar-se, em grande confusão, sem perceber que força misteriosa o tinha feito tropeçar. Com todas estas afinidades é espantoso que Fernando Pessoa e Aleister Crowley não tenham ficado mais amigos, aquando do encontro de ambos na Lisboa de 1930. É que apesar das semelhanças, existia uma enorme diferença: Crowley era um homem do mundo, um viajante, um extrovertido; Pessoa era um cidadão do imaginário e só viajava por algumas ruas da Baixa Pombalina. Nem Pessoa seria capaz de acompanhar Crowley, nem Crowley seria capaz de ficar quieto para fazer companhia a Pessoa. Vejam bem como uma única diferença pode escavar um fosso tão grande entre duas almas tão parecidas.

6 - Fernando Pessoa era vaidoso e vendia livros velhos para comprar roupas novas

A imagem de um Fernando Pessoa farroupilha, divulgada em grande medida pela popular biografia escrita pelo seu amigo João Gaspar Simões, é romântica, mas não corresponde à realidade. É verdade que Fernando Pessoa passou muitas vezes por dificuldades económicas e que acumulou dívidas de grandeza considerável, mas, felizmente, nunca se viu numa situação de miséria. De facto, nos períodos de maior aflição financeira, não teve pudores em vender livros já lidos, de modo a reunir algum dinheiro: grande parte gasto na compra de roupas novas e acessórios diversos nas mais requintadas casas de Lisboa, como a Camisaria Pitta. Os depoimentos de familiares e amigos são unânimes em esclarecer que Fernando Pessoa «andava sempre bem arranjado», «sempre de camisa muito bem engomada» e que «gostava de vestir com um certo rigor». Ele foi aquilo que na gíria da altura se chamava um "janota", mas ser um janota não era nada barato e sabe-se que Fernando Pessoa até teve uma conta muito esticada num dos mais conceituados alfaiates da cidade, a casa Lourenço & Santos, Lda. Aliás, é o próprio Fernando Pessoa que nos revela, às tantas - com humor -, a sua vaidade, numa passagem que deixou no diário, na entrada escrita a 30 de Novembro de 1915: «À noite fiquei satisfeito por ouvir duas referências diferentes (do Côrtes-Rodrigues e do Perdigão) ao facto de eu estar bem vestido (Oh! Eu!)». Acrescente-se nesta altura que, em Março de 1935, Fernando Pessoa recebeu a quantia de 5000$00 pelo prémio literário Antero de Quental, atribuído pelo Secretariado de Propaganda Nacional e concedido à sua obra Mensagem, publicada no ano anterior a 1 de Dezembro. Ora, oito meses depois de receber esse dinheiro, Fernando Pessoa viria a falecer no Hospital São Luís dos Franceses, no Bairro Alto (provavelmente de pancreatite). Seria reconfortante pensarmos, nós que somos seus admiradores, que Fernando Pessoa viveu os seus últimos meses num justíssimo desafogo que nunca conhecera, mas o facto de ele ter morrido sem deixar dívidas demonstra que gastou grande parte do prémio a saldá-las.

7 - Fernando Pessoa foi um inventor amador

Uma das actividades mais ignoradas pelo público a que Fernando Pessoa se dedicou foi a de inventar novidades - algumas surpreendentes - que pretendia patentear e comercializar. A maioria desses inventos, como os inventos de Da Vinci, nunca saíu do papel, mas entre eles contam-se, por exemplo, um projecto para um novíssimo tipo de carreto para máquinas de escrever, uma inovadora pasta para guardar documentos, um inédito anuário comercial, o Anuário Sintético, nova versão de umas Páginas-Amarelas, e até interessantes jogos temáticos de mesa, sobre futebol, críquete e, ainda, astrologia. Porém, um dos inventos que mais galvanizou Fernando Pessoa foi uma espécie de "carta-sobrescrito" que, segundo suas palavras, seria «a morte do envelope». Após várias experiências, chegou a um feitio que o satisfez e que descreveu com minúcia para efeito de registo de patente (que, provavelmente, nunca pediu). Consistia numa folha de papel dividida em seis partes: na primeira, escrever-se-ia o endereço do destinatário da carta; na segunda, o do remetente; e as restantes partes destinar-se-iam à escrita da mensagem. Esta "carta-envelope" inventada por Fernando Pessoa prefigura, de modo estupendo, o célebre aérogramme (aerograma) que seria comercializado poucos anos depois. Com um bordo gomado que, dobrado e colado, permite salvaguardar de olhos alheios aquilo que nele for escrito, o aerograma é uma única folha - carta e envelope, em simultâneo - que, como o nome indica, se envia por correio-aéreo. Foi desenvolvido pelos exércitos, durante a Segunda Grande Guerra, mas, em seguida, popularizou-se com êxito pela sociedade civil. Se Fernando Pessoa tivesse patenteado o seu invento da "carta-envelope", seria conhecido hoje, justamente, como poeta e como inventor - como inventor do aerograma, pelo menos. Então e o seu futebol de mesa?... Segundo a versão oficial, o futebol de mesa (os matraquilhos) foi inventado em 1921 pelo inglês Harold Searles Thornton, mas, na verdade, os nobres europeus já jogavam uma espécie de futebol de mesa nos salões dos seus palácios, desde meados do século XVIII (numa das salas do Convento de Mafra pode ver-se uma dessas mesas setecentistas de matraquilhos, com intrigantes figuras esculpidas em madeira), logo não podemos atribuir esta invenção a Fernando Pessoa, como lhe poderíamos facilmente atribuir a do aerograma. Compreendam que um homem, por mais genial que seja, não pode estar sempre à frente do seu tempo.

8 - Foi o slogan criado por Fernando Pessoa para publicitar a Coca-Cola que fez com que esta bebida fosse proibida em Portugal

Em 1925, o empresário Manuel Martins da Hora fundou a Empresa Nacional de Publicidade (a primeira agência de publicidade portuguesa), com a colaboração de Fernando Pessoa (segundo as suas palavras até foi Pessoa «a tratar disso» - calcula-se que se referia à "papelada") e com capital social da parceira norte-americana General Motors, mas o empreendimento com a empresa automobilística não arrancou e, seguidamente, fundando uma nova parceria, Martins da Hora tornou-se o representante português da agência internacional de publicidade John Walter Thompson (JWT), mantendo Fernando Pessoa como colaborador (uma colaboração que durou até Setembro de 1935). Por alturas de 1928, Carlos Eugénio Moitinho de Almeida, que também era patrão de Fernando Pessoa, tornou-se o agente português da marca Coca-Cola (conta da JWT) e o poeta foi incumbido de criar a propaganda comercial do refrigerante. Para o efeito, inventou o slogan «Primeiro, estranha-se. Depois, entranha-se». Porém, o médico e professor Ricardo Jorge, na altura Director de Saúde de Lisboa, não apreciou a truculência de Fernando Pessoa, que considerou ser uma descrição fidelíssima do modo insidioso como o organismo se viciava em drogas - primeiro estranhava-as, depois ganhava-lhes habituação: em suma, o slogan pessoano expressava «a toxicidade do produto», derivada do infame composto de coca. Por ter-se alarmado com o slogan inventado por Fernando Pessoa, Ricardo Jorge confiscou o produto e mandou-o atirar ao mar, proibindo taxativamente a introdução da Coca-Cola no mercado português. Somente quarenta e nove anos depois, em 1977, é que essa bebida começou a ser comercializada em Portugal - já com o malquisto slogan de Fernando Pessoa completamente esquecido. 

9 - O livro Mensagem foi mal recebido pela Esquerda e pela Direita

A publicação do livro de poesia Mensagem, a 1 de Dezembro de 1934, vencedor do prémio Antero de Quental, atribuído pelo Secretariado de Propaganda Nacional, confundiu negativamente os admiradores de Fernando Pessoa e, também, os Situacionistas: estes, por seu lado, não gostaram do "nacionalismo místico" - esquisito - do livro, completamente apartado de substrato e referências políticas, tanto directas como indirectas, achando-o uma fantasia sem pés nem cabeça; e os outros não gostaram que Fernando Pessoa se estreasse em livro com um texto que, a seus olhos, o cunhava como apenas mais um Situacionista (quando morreu, as notícias do óbito nos jornais foram unânimes em descrevê-lo como «grande poeta nacionalista») e, ainda por cima, que era desprovido da inventividade de forma e linguagem já demonstrada nos vários trabalhos assinados com os seus heterónimos. Embora Fernando Pessoa fosse um desconhecido para a generalidade do público e invisível para grande parte da crítica literária, tinha muitos admiradores entre escritores e artistas, que o respeitavam e, em certos casos, o olhavam como um mestre. Este conjunto de seguidores desgostou muitíssimo da obra Mensagem, na qual não reconheceu o vanguardismo tão apreciado na restante obra de Fernando Pessoa. O próprio sentiu-se embaraçado pelas reacções negativas e tentou explicar-se sem grande êxito diante dos amigos: Mensagem não tardou a cair no esquecimento. Todavia, mais tarde, o livro foi recuperado por um público e por uma crítica despoluídos de fantasmas de época e hoje é justamente celebrado, paralelamente a Os Lusíadas de Luís de Camões, às obras de Fernão Lopes, de D. João de Castro e de António Vieira, como sendo o livro que melhor representa, nas suas dimensões históricas e míticas, aquilo que é Portugal - nome que esteve quase para ser o seu título. Obra aparentemente simples, escrita ao longo de duas décadas (começou a ser escrita em 1913), esconde na sua estrutura e ritmos uma enorme complexidade temática e filosófica que demonstra toda a cultura e inteligência pessoanas.

10 - Existe um retrato a óleo de Fernando Pessoa para o qual ele, de facto, posou 

Está exposto na Casa Fernando Pessoa, no bairro de Campo de Ourique, em Lisboa. É a imagem de Fernando Pessoa que podem ver reproduzida acima neste artigo: trata-se de um quadro a óleo, pintado em 1912 por Adolfo Rodriguez Castañé: artista do círculo de Almada Negreiros e Stuart de Carvalhais, que trabalhou como decorador e como ilustrador para publicidade. Também fez bandas desenhadas para o Pim-Pam-Pum! (suplemento do jornal O Século), colaborou com o Topa a Tudo e com a revista Seara Nova. Em 1912 e 1913, participou no primeiro e no segundo Salões de Humoristas de Lisboa. Pessoa foi seu amigo: encontraram-se muitas vezes nos cáfés de Lisboa que aquele costumava frequentar e também em casa de Almada Negreiros. Nasceu em Madrid, a 6 Fevereiro de 1887, mas veio aos cinco anos com os pais para Portugal: a mãe era soprano e o pai era arquitecto. Fernando Pessoa foi uma figura bastante caricaturada pelos seus amigos artistas, como Almada Negreiros e Alberto Cutileiro. Outro retrato de Fernando Pessoa feito por Castañé, mas caricatural, foi publicado, também em 1912, na primeira página do jornal República.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Aleister Crowley: 1 de Dezembro de 1947



Além de ser o Dia da Restauração da Independência de Portugal, 1 de Dezembro também é a data da morte do mago inglês Aleister Crowley (no ano de 1947). Para lembrar esse homem tão incompreendido - não foi satanista, ou satânico, por exemplo, como tantas vezes aparece descrito na comunicação social sensacionalista -, cujas crenças pessoais até o aproximavam do ateísmo, partilho a minha leitura de um excerto do meu romance «A Conspiração dos Antepassados» (Saída de Emergência, 2007), no qual ele, juntamente com Fernando Pessoa, é protagonista.

terça-feira, 12 de junho de 2012

"A Conspiração dos Antepassados": excerto em 'spoken word'


 
Excerto em spoken word do meu romance A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência, 2007). Neste trecho, o mago inglês Aleister Crowley retorna pelo espaço-tempo à Boca do Inferno, em Cascais, e é refeito depois de ter sido digerido em Daath pela força física Coronzon. Ao restabelecer-se, percebe que perdeu o paradeiro do poeta português Fernando Pessoa, que ficara à sua espera.

(Este vídeo faz parte de uma série de excertos em spoken word dos meus romances, que estou a publicar regularmente no meu canal de YouTube.)

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Morte de Fernando Pessoa


Recordando Fernando Pessoa, no dia da sua morte, com um excerto do meu romance A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência, 2007). Neste trecho, Pessoa morre.
Às vezes, é a única forma de continuar a Viver.

«1935

Tudo o que é humano é divino, pensou Pessoa, sentindo a morte a entrar-lhe no quarto do Hospital de São Luís dos Franceses naquele final de tarde; fresca, salgada, de pele torrada pelo Sol como Talassa, a Mãe d’Água primordial, ela olhou-o com ternura e deixou-se ficar serena – sereia – aos pés da cama: ainda não era a Hora. A morte, reflectiu, só mete medo se a olharmos com olhos de medo. Estou calmo e ela é linda. Era a primeira visita do dia, desde a do cunhado na manhã anterior; a irmã, também acamada, com uma perna fracturada, não tinha podido vir.
Porque motivo se sentia tão sossegado na presença da morte? Ia morrer sem ter publicado o grande livro que intentara dar à estampa, até ao final do Verão: faleceria órfão de letras, avarento com uma arca cheia de manuscritos erráticos, amontoados como roupas usadas; alguns dentro de envelopes, amarrados às dezenas com cordéis. Tossiu e escarrou, para dentro da boca, uma bola de expectoração que lhe soube a bílis; engoliu-a.
Guardava na alma a imagem ideal dessa Grande Obra que nunca publicara e achava-se como um desses mal-casados que andam infelizes pelo mundo; que guardam as imagens subtis das mulheres e homens desejados – imagens sublimes que não se realizaram. Até era um pouco maçadora aquela tragédia toda de ir morrer.
Calculou que seria indicado lembrar pessoas e coisas que conhecera, para cunhar a morte com um carácter mais ortodoxo. Havia a mãezinha e o pai, este já demasiado vago para ter rosto. Os irmãos, o tio Roza que também havia sido poeta, a Teca, o Chico e os meninos. A avó Dionísia, mais louca que o Ângelo de Lima… Coitado do Lima!... Que grupo de bons malandros tinha sido aquele do Orpheu: como estava tão diferente do Pessoa desses anos. Agora sabia como era fácil um Messias roubar a liberdade do seu povo: ia fazer no dia seguinte um mês desde que decidira não publicar mais nada em Portugal como protesto pela censura coagida pelo Estado Novo – todas as obras censuradas são ridículas!
Certamente que o Ferro o tinha ajudado a ganhar o prémio da Segunda Categoria daquele maldito concurso literário com a Mensagem, porque depois da carta que publicara no jornal a favor da Maçonaria tornara público o rompimento com o salazarismo. Sim, agora pensava de um modo muito diferente do Pessoa que escrevera o Interregno
A Mensagem!...
O conjunto de poemas que baptizara de Portugal: mudara de título por causa dele!
Ele! O mago diabólico.
Ainda era vivo, mas os jornais já não falavam nele.
Pessoa costumava ir ao Café da Arcada para se encontrar com Ferreira Gomes e beber aguardente; às vezes, puxava esse assunto apenas para ver o rosto ingénuo do amigo derreter numa careta desconsolada. O Cirilof, a quem finalmente prefaciara a tão adiada edição de Alma Errante com um pequeno ensaio sobre a ordem rosicrúcia, cortara o cabelo e a barba: quando Pessoa o viu assim pela primeira vez pensou que se tinha enganado na porta. O livreiro passava os dias a falar de política e continuava a achar que o António Ribeiro iria transformá-lo numa estrela de cinema. A relação já não era a mesma e Pessoa, voltando sozinho para Campo de Ourique, com as mãos nos bolsos onde trazia – sempre – o anel de prata deformado, só queria chegar depressa a casa para se sentar a escrever.
Os novos escritores e artistas que ia conhecendo nos cafés e no Abel olhavam-no como um antepassado de estimação: o velhinho que se ria alto, cuja mão tremia ao agarrar a caneta e o copo; uma vez, enquanto conversava com o Almada, até se escondera debaixo da mesa durante uma trovoada. Não era culpa deles se não o levavam a sério, mas que podia fazer? Não gostava daquele mundo, daquela cidade, daquela gente de sorriso pateta que via nas ruas: se achassem que era um Puro Tolo, tanto melhor. O que é que lhes preenchia as cabeças? Mais ninguém se interessava por magia. Ninguém parecia ter imaginação naqueles dias em que nada podia estar acima da Nação. Nem sequer o Homem.
Era por essa razão que a simples menção de Crowley numa conversa murchava as atenções dos ouvintes. Ninguém queria falar de Crowley, ninguém queria falar sobre a Besta: ninguém queria falar sobre aquele que não substituíra os sonhos por comodidades e subira mais alto que todos; daquele que metera medo a toda a gente com o riso satânico – o riso que, bem vistas as coisas, só metia medo àqueles que tinham pavor de viver. Sim, ninguém queria falar sobre ele, porque, ao fazê-lo, reconheciam que não tinham sido bons o suficiente, corajosos o suficiente, loucos o suficiente. Mas Pessoa lembrava-se! E não o esquecera.

Considerei, realmente, a chegada da sua poesia como uma verdadeira MENSAGEM, que gostaria de explicar pessoalmente.

Uma verdadeira Mensagem!
Crowley mostrara-lhe, sem dar conta, como ele gostaria que a sua poesia fosse lembrada no futuro. Lembrou-se do mago, lembrou-se do amigo.

Senhor Pessoa. Que raio de ideia foi a sua
de me mandar o nevoeiro lá para cima?

Sorriu, e a morte sorriu também. Compreendeu porque é que ia morrer sossegado: tinha vivido uma vida mágica e quem vive uma vida mágica sabe que não há morte, apenas um alçapão por onde o corpo desaparece para ir para outro lugar; como no palco de um ilusionista.
Sentiu curiosidade em saber como a sua obra literária seria lida após a morte; se, com efeito, conseguiria deixar um legado nas letras, na cultura do Portugal que tanto amava. Olhou para a mesa-de-cabeceira e viu o bloco de apontamentos ao lado de uma das velas de Abramelin que Crowley lhe oferecera antes de ir para a Alemanha: uma das velas usadas no ritual realizado na Boca do Inferno.
Agarrou o bloco e sentou-se na cama, encostado à almofada. Sentiu-se maldisposto e com vontade de vomitar; os braços tremiam-lhe e apenas com muito esforço conseguiu manter-se equilibrado a olhar para o papel. Aproximou o bico do lápis da folha e pensou na frase que iria escrever para a transformar em sigilo como Crowley lhe havia ensinado. A cama rangeu, ameaçando partir-se; um pássaro que chilreou no pátio demonstrou-lhe que o mundo continuava a girar sem lhe dar importância.
Que frase iria escrever?
Lembrou-se de perguntar: O que é que o Amanhã me irá trazer? Encostou o lápis à folha e, agarrando-o com força, preparou-se para redigir a frase. A mão tremeu-lhe; a visão desfocou-se. Não tinha força e interrompeu a acção, fitando os pés da cama e convergindo o olhar em algo invisível. Compreendeu que, no fundo, ele recusava-se a querer saber o futuro.
E se viesse a saber que a sua obra cairia no esquecimento, que tudo aquilo que escrevera fora em vão? Seria demasiado cruel descobrir que todos os sacrifícios que fizera para se dedicar à escrita haviam sido nulos e que nada perduraria. Não precisava de saber nem o bom nem o mau: ia morrer, era uma parvoíce; um último resquício de presunção, de egomania artística. A obra teria de vencer sozinha.
Sacudiu os ombros e gemeu: era uma pergunta pateta, de qualquer das formas. Limitou-se a escrever, em inglês:

Eu não sei o que é que o Amanhã me irá trazer.

Pousou o bloco na mesa-de-cabeceira e voltou a deitar-se. A morte, entretanto, saíra do quarto. Ouviu um eléctrico passar ao longe, talvez no topo da Rua D. Pedro V; já haviam poucos, substituídos por autocarros. O seu mundo morreria com ele. Fechou os olhos, ensonado, mas não adormeceu; não valia a pena porque a enfermeira não tardaria a dar-lhe o jantar.
No dia seguinte, mais ou menos à mesma hora, a morte regressou. Pessoa sentiu-a como um véu a cair-lhe sobre os olhos e, para ter a certeza que era a mesma dama do dia anterior, pediu à enfermeira:
‘Dá-me os óculos.’
Colocou-os e olhou para o lado. Lá estava ela, radiante. Abriu os lábios gretados e tentou sorrir; uma dormência repentina afectou-o. Virou-se para o outro lado e viu a enfermeira sair depressa do quarto. O véu que tinha sobre os olhos tornou-se opaco. Depois negro. Os sons afunilaram-se num zumbido.
Um táxi passou, barulhento, e o ruído do motor foi abafado pelo vidro da janela. Pessoa não o ouviu.
A cama chiou, baixinho, com o estertor que agitou o corpo do poeta.
Quando o médico Jaime Neves, seu primo, e o colega Alberto Carvalho, entraram no quarto encontraram Pessoa sem vida.
O corpo parecia artificial: mais pequeno.
Na mesa-de-cabeceira, o relógio de Pessoa continuava a trabalhar. Morreu tão cedo!..., disse Jaime Neves, mordendo o lábio.
Mas Pessoa não morrera – Não há Morte! –, participara num truque de Magia!
Passara por um alçapão

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Efeméride negra: Aleister Crowley e "A Conspiração dos Antepassados"


Ontem fez cento e trinta seis anos que nasceu o mago inglês Aleister Crowley; alcunhado pela imprensa britânica de «homem mais diabólico do mundo», embora andasse longe de sê-lo. Recordo hoje o seu nascimento com um excerto do meu romance hermético A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência, 2007), no qual partilha planos com o poeta português Fernando Pessoa. Neste trecho, Crowley renasce na Terra, depois de passar um periodo na sefira Daath, em busca do mítico Filho da Lua - a vera mandragora.
Tal como em quase tudo, um excerto é nada para os tolos: para os sábios... é o suficiente.

«A saliva de Coronzon era um enzima que decompunha a matéria e o tempo; quando Crowley começou a ser mastigado, a carne foi remodelada em grânulos de energia negra: partículas virtuais com carga eléctrica negativa, engolidas como ondas pela garganta da criatura que se alimentou com o produto catalizado. Descodificado pelo enzima, Crowley ficou reduzido a uma série de haikus abióticos; poesia mendeleeviana, aspirada pela densidade que circuitava no cólon de Coronzon. O aparelho digestivo terminava num ânus que funcionava como um buraco branco: a energia negra entreteceu-se em volta desse anel revoltoso e a carga electromagnética foi virada do avesso. As chaves químicas encontraram as respectivas fechaduras e a energia negra, revertida para o código preambular, foi expelida numa cólica quântica.
Em Malkuth, o vento deixou de soprar e todas as moléculas foram beliscadas pelo esfíncter de Coronzon enquanto ele evacuou através do tecido espácio-temporal: sobre três velas acesas, dispostas em triângulo na vizinhança de uma perigosa falésia do litoral português, as fezes caíram ao chão. Escaldantes, as bolas de matéria liquefizeram-se em contacto com o ar, sangrando soro; caíram umas sobre as outras e, em brasa, fundiram-se. Sangrando, mudando de forma aos abanões, a matéria informe regeu-se de acordo com a própria receita morfogenética: agregou-se, deslizando em fios finos, como flores desabrochando e murchando em loop, e o fenótipo evidenciou-se da confusão. A superfície eclodiu e esticou-se numa fita para criar um ânus – uma cópia do Abismo por mérito próprio – e um intestino grosso; foi o evento mais importante da nova vida que Crowley inaugurou – a prova ritual que separava os homens, não dos rapazes, mas dos insectos.

Ó Louco!, gerador do meu Ser e do Nada,
desfaz, fecundo, esta laçada!

A elasticidade da carne suplicou por novidade, mas aquele espectáculo, mudo como um filme velho, era uma reprise da dança bailada há cinquenta e cinco anos atrás no ventre de Emily Crowley. Esta gastrulação, estes passos tímidos para o centro do salão, antecedeu uma coreografia exacta que todas as criaturas, grandes e pequenas, precisam de executar com elegância para convencer o júri que merecem nascer.
A carne arrefecida pelo vento inclinou-se; o mar pautou o ritmo da dança atingindo com violência a parede rochosa da Boca do Inferno. Filamentos cintilantes ergueram-se na direcção das estrelas e solidificaram-se num grande cordão nervoso; a carne percebeu a deixa e dobrou-se. Ela dividiu-se. Ela condensou-se. Ela começou a respirar! Os últimos canudos deslizaram até se juntarem ao bolbo central; mergulharam no âmago daquela confusão organogênesica e emergiram, transformados em músculo, para impingirem um estilo mais arrojado na composição: o coração despertou e o sangue perseguiu o compasso do oceano até o ultrapassar em ferocidade.
Nascido do Abismo – do Nada –, Crowley vingou como uma faísca que, tornada em centelha, abrasa em labareda. O útero que o aconchegou foi a própria noite estelar, com o Atlântico à guisa de âmnio; protegido, ele solidificou como um planeta durante a formação da galáxia. A pele nova, vermelha como os músculos debaixo da superfície, arrefeceu e desapareceram os rastos dos cordões de carne que a enlaçaram. Crowley parecia um feto gigante: horrível e belo, em simultâneo; sem pêlo, com uma pelúcia branca a cobrir-lhe os olhos e a boca.
Crowley, o bebé – o Eremita – abriu os olhos; sentiu frio e, esticando um braço com lentidão, apalpou o terreno: os dedos desenharam uma linha curva no chão, o principio da história


quinta-feira, 21 de julho de 2011

Notas sobre Aleister Crowley e Fernando Pessoa - Segunda Parte

Hermetismo Pessoano


Citando Teresa Rita Lopes, autora do livro Pessoa Por Conhecer, é legítimo afirmar que Pessoa continua, ainda, por conhecer - e a dimensão hermética da obra e da vida do poeta será aquela que é desconhecida pela grande parte dos leitores.

Eduardo Lourenço teoriza que a heteronímia pessoana, em particular os registos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, são abordagens que Pessoa fez à obra de Walt Whitman, subordinadas a diferentes perspectivas; da eulogia ao histerismo. Uma leitura atenta não pode deixar de o compreender, mas esse jogo de simetria não desvirtua a dedução que a cronologia do desdobramento da personalidade pessoana influencia. De facto, Pessoa começou a criar seres fictícios desde muito novo: os primeiros pseudónimos são o Chevalier de Pas e o Capitaine Thibeaut, ambos criados quando ele tinha seis anos de idade. Mais tarde, continuou a inventar personagens imaginárias como os irmãos David e Lucas Merrick, Charles Robert Anon e o mais familiar do público Alexander Search, apontado pelos académicos como o primeiro heterónimo de Pessoa e autor do poema O Círculo, no qual surge uma frase que pode servir de mote a toda a heteronímia: «O meu pensamento está condenado ao símbolo e à analogia».

A obra poética de Pessoa espraia-se em três períodos animados por preocupações distintas: uma breve, e formativa, fase filosófico-cristã; uma fase neo-pagã; e, finalmente, uma fase gnóstica que corresponde às últimas duas décadas de vida do poeta. Paralelamente à evolução da obra, pode acompanhar-se a evolução do sentido que Pessoa procurava imprimir na vida, através do estudo do hermetismo e das "ciências" ocultas. A sua obra nunca deixou de ser, em momento algum, mais do que uma ferramenta para ajudá-lo a alcançar o objectivo dessa busca espiritual, um muito nítido espelho do caminho esotérico traçado.

Antes de interessar-se pela Teosofia, pelo Rosicrucismo e pela Franco-Maçonaria, Pessoa revelou ter passado por uma série de experiências mediúnicas, confessadas pela primeira vez numa carta enviada à sua Tia Anica, também espírita, na qual escreveu: «Estou desenvolvendo qualidades não só de médium escrevente, mas também de médium vidente. Começo a ter aquilo a que os ocultistas chamam "a visão astral", e também a chamada "visão etérica"». Os espíritos que falam com Pessoa, como Henry More, Wardour e J. H. Hyslop, fazem-no com vozes mefistofélicas, até, comentando os últimos poemas escritos e oferecendo conselhos sentimentais que traduzem a sexualidade conturbada do seu invocador. Não é de todo estranho este fascínio pelo mundo fantasmático dos espíritos, porque, enquanto poeta – enquanto bardo –, a etimologia suporta essas inclinações: vates, o étimo latino de poeta, significa profeta ou numa tradução mais apurada: “aquele que tem visões”. O próprio Hermes, de onde deriva a palavra hermetismo, era o mensageiro que fazia a comunicação entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos. Antes de assumir-se como criador de mitos, Pessoa procurou ser um emissário dessa estirpe hermética, traduzindo para português títulos como O Compêndio de Teosofia, de Charles Leadbeater, e A Voz do Silêncio, de Helena Blavatsky. Ainda no papel de emissário hermético, criou a tipografia Íbis, aludindo ao deus Thot, o equivalente egípcio do Hermes grego. O Íbis era também uma designação antiga, que o acompanhava desde a infância, e que se resumia a um disfarce teriomórfico vestido pelo poeta em diversas ocasiões: ele fingia ser um íbis em diversos momentos, em brincadeiras com os sobrinhos ou mesmo em passeios com o resto da família.

O interesse de Pessoa pela astrologia remota desde a adolescência e os registos astrológicos de maior complexidade e segurança datam de 1908, ou seja desde os vinte anos de idade. Pessoa planeou escrever um grande tratado de astrologia, sob o nome do heterónimo Raphael Baldaya, obra na qual apresentaria um estudo astrológico do país. Nunca chegou a escrever esse livro, mas deixou-nos um horóscopo de Portugal onde anotou posições ocupadas por Neptuno, planeta regente do signo Peixes, o "signo de Portugal", em momentos particulares da nossa história, como a derrota de Alcácer-Quibir ou a invasão espanhola de Lisboa. Pessoa deixou-nos temas astrológicos dos heterónimos e dele próprio, onde escreveu que a data da sua morte seria em Maio de 1935. Falecido em Novembro, a previsão apenas falhou por seis meses.

O sistema mágico intitulado O Caminho da Serpente, criado e desenvolvido por Pessoa, foi divulgado pela primeira vez no livro Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética, de Yvette Kace Centeno. Trata-se de um sistema mágico que, aparentemente, resgata elementos pitagóricos, rosicrúcios e cabalísticos. Por desvendar encontra-se o significado da nomenclatura, assim como o sentido e o uso. Sabe-se que Pessoa devotou concentração a este tema no seguimento da demanda por iluminação hermética que o levou desde a mediunidade até à astrologia e da teosofia até à maçonaria. Não se revendo em nenhuma das tradições ocultistas que, por breves períodos, adoptou, Pessoa decidiu criar o seu próprio sistema mágico, já perto da data da morte.

Na minha opinião, o que é surpreendente n’O Caminho da Serpente é a depuração: não há nada de acessório nos escritos que Pessoa deixou sobre o sistema, assim como a simbologia geométrica que o compõe, a fazer lembrar as estruturas ocultas empregues nas telas de Almada Negreiros (seu companheiro tardio da boémia lisboeta e ocultista), está em sintonia com toda a tradição geomágica ocidental, desde os teoremas de Abellio até aos modernos sigilos de Austin Osman Spare.

Intui-se que O Caminho da Serpente é essencialmente simbólico (a fazer lembrar, lá está, o vaticínio expresso no poema O Círculo de Alexander Search), e a sê-lo remete-me para a simbologia do próprio caduceu hermético: o bastão erecto onde se enrolam duas serpentes, trepando em direcção à coroa alada. Ora Pessoa, designou por Fogo a parte superior da Bexiga de Peixe na qual inscreveu esse sistema mágico e designou por Terra o vértice inferior. Essa elevação da serpente, que assim se ergue da Terra – do lodo primordial – em direcção ao Fogo – à Imaginação – é o sentido oculto do bastão de Hermes; e, hoje em dia, encontra uma simetria tremenda com a estrutura em dupla espiral da molécula de ADN, descoberta dezoito anos depois da morte do poeta. Mas já no baralho de Tarot criado por Aleister Crowley e desenhado por Lady Frieda Harris se pode ver no Arcano Maior, O Universo, uma profecia dessa descoberta, caracterizada pela mulher que dança com a serpente, rodeada pelos quatro elementos e vigiada pela presença ocular da Mónade da qual tudo emana.

Uma representação artística que encerra na perfeição essas premissas é o painel de azulejos que o Mestre Lima de Freitas pintou para a plataforma da gare ferroviária do Rossio.


David Soares, Lisboa 2007

Notas sobre Aleister Crowley e Fernando Pessoa - Primeira Parte

Aleister Crowley: A Obra ao Vermelho

Crowley acompanhou a morte do século XIX e viveu no período mais violento do século XX, absorvendo horror e glamour para construir uma lenda pessoal. Foi um reconhecido alpinista e liderou as primeiras expedições às montanhas Kangchenjunga, no Nepal, e Chogo Ri (K2), nos Himalaias, antes de encarrilar a toda a velocidade no caminho da Magia. Em 1902, depois de visitar o amigo ocultista Allan Bennett, em Ceilão, Crowley começou a misturar os ritos orientais e o tradicional hermetismo ocidental com o objectivo de criar um novo sistema mágico. Na verdade, unir o sexo à magia não era um conceito inédito e Crowley deveria conhecer, com toda a certeza, os trabalhos de Paschal Beverly Randolph (que sentia um pavor patológico pela masturbação: prática fundamental na disciplina de Crowley) e de Alice Bunker Stockham (que desenvolveu o método Karezza: doutrina mais cúmplice da profilaxia que da magia, mas que, mesmo assim, advogava a sacralização do orgasmo). Nas sociedades iniciáticas criadas ou lideradas por Crowley, como a Argenteum Astrum (fundada após a saída da Hermetic Order of the Golden Dawn) e a Ordo Templi Orientis, o misticismo encontra-se impregnado de ritos de natureza sexual.

É seguro conjecturar que o advento da revolução sexual que rompeu na década de sessenta do século passado foi previamente ensaiado por Crowley e pelos "thelemitas" nos decénios de vinte e trinta. Sem a publicação da revista The Equinox, o conhecimento hermético aí revelado continuaria a ser coutada de exclusivas fraternidades secretas; e, aqui, o trabalho de Crowley na fertilização do imaginário ocidental foi importantíssimo: não enquanto criador de mitos, como Fernando Pessoa, seu amigo, almejava ser, mas como polinizador – aliás, o papel do Mago por excelência; cujo símbolo (a varinha) não deixa de se revestir com sentido alegórico correspondente à sexualidade.

Não creio que Crowley tivesse sido um homem mau, como o epíteto ‘The Wickedest Man in the World’ (apresentado pela primeira vez no jornal inglês John Bull) sugere. Penso que foi, no seu pior, muito egoísta (com péssimas consequências), mas sem cair no diabolismo cinemático que os media patentearam. Excepto na aproximação que faz ao individualismo filosófico (antecipando o Objectivismo cunhado pela escritora Ayn Rand) a doutrina "thelémica" nada tem de satânico ou de satanista. Em primeiro lugar, tal como se encontra descrita por Crowley, trata-se de um sistema iniciático, logo procura transmitir conhecimentos ocultos através de mensagens e rituais que namoriscam com o sobrenatural. Em seguida, o trajecto que o adepto precisa de cumprir nesse caminho iniciático é ferozmente demolidor do ego. E, para terminar, a disciplina de Thelema ainda incita o indivíduo na direcção de uma espécie de consciência social. Para isso concorreram as fontes de inspiração de Crowley: proto-anarquistas como François Rabelais e Jonathan Swift, mas também teóricos anarquistas e socialistas como Gracchus Babeuf, Louis Blanquis e Pierre Proudhon. É preciso lembrar que The Book of the Law foi recebido por diversos leitores como sendo um livro comunista e que Mussolini expulsou Crowley de Itália, alegando que a Abadia de Thelema, em Cefalù, era um órgão comunista. É confuso constatar que Crowley, inglês imperialista, manteve uma relação calorosa com ideias revolucionárias desta estirpe. Não é, pois, sensato ler o trabalho da auto-denominada Besta do Apocalipse, para quem o fin de siécle era todos os dias, sem ter em mente o sentido de humor provocante e escatológico que o atravessa. E sobre um autor cuja vida é impossível dissolver da obra, a exegese biográfica deve efectuar-se sob a mesma iluminação.

Inversamente aos trabalhos de outros ocultistas seus contemporâneos, junto dos quais foi buscar inspiração, a obra literária que deixou inscreve-se sem qualquer dificuldade no cânone ocidental da literatura hermética; e, pela porta grande, por avanço do já citado The Book of the Law, publicado pela primeira vez no décimo número da revista periódica The Equinox. Texto deliberadamente contraditório, The Book of the Law, a base do sistema mágico crowleyano, é, na minha opinião, uma colagem ao sistema dos Três Tempos (ou Eras) como foi plasmado pelo abade cisterciense Joaquim de Fiore. Ignoro se Crowley procurou esse mimetismo de modo consciente, mas é muito possível, pois possuía um conhecimento enciclopédico sobre hermetismo e tradições mágicas. O que interessa reter é que em virtude da aproximação que faz ao modelo de Fiore (os Tempos do Pai, do Filho e do Espírito Santo), Crowley conseguiu imprimir em The Book of the Law uma longevidade nutrida pela ressonância arquetípica: ou seja, o texto prolonga o impacto provocado na recepção, porque comunica connosco de um modo mais profundo que outros mitos mais juvenis.

A encadernação da edição do livro Moonchild, de Aleister Crowley, que a Sphere Books publicou na colecção The Dennis Wheatley Library of the Occult, em 1974, é bastante conveniente, já que um observador atento não pode deixar de ver Ra-Hoor-Khuit, ou Harpócrates, a versão infante de Hórus, sendo presenteado com a herança de Hadit, o embaixador do Tempo do Pai no segundo capítulo de The Book of the Law. Essa responsabilidade, simbolizada pela caveira, à guisa de fóssil de Ano Velho, é a referência da passagem de testemunho para o Tempo do Filho: o Éon de Hórus.

A sincronicidade desta imagem causa-me admiração; e se é verdade que Wheatley, mero anfitrião dessa colecção, à qual apenas emprestou o nome e o prestígio, foi alheio à escolha, é legítimo adivinhar que ela deixaria Crowley muito feliz.


David Soares, Lisboa 2007

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Fernando Pessoa e Aleister Crowley discutem a Batalha de Alcácer-Quibir


«'Sim, lembro-me do poema que me enviou: Louco, sim, louco, porque quis grandeza. Caro Pessoa, se não soubesse o que sei até concordava consigo, não duvide.'
'Sou todo ouvidos.'
'Toda a informação que encontrei sobre D. Sebastião é factual, como lhe disse, contudo os factos servem a imaginação, se o observador for criativo na interpretação. Não vou discorrer sobre todos os pontos que me levaram à conclusão que lhe vou apresentar. A verdade é... bom, como dizê-lo? Já viu alguma vez o terreno de Alcácer-Quibir?'
'Não. Nunca estive no Norte de África, como lhe disse.'
'Muito bem, então eu descrevo-lhe. É um buraco. É um autêntico buraco.'
'Como?'
'Um funil de pedra e areia do qual apenas com muito esforço um exército conseguiria sair vitorioso depois de ser cercado como foi o português. Ouça: o próprio Sebastião viajou extensivamente em busca de um local ideal para a batalha onde desafiaria o rei Maluco. Foi ele quem quis a guerra e não o Maluco; rejeitou todas as tentativas de diplomacia intentadas por ele e pelo seu tio, Filipe II de Espanha. Foi ele quem escolheu o terreno de Alcácer-Quibir. Só ele e mais ninguém.'
'Sim, era obstinado, teimoso.'
'E onde acaba a teimosia e começa a loucura, senhor Pessoa? Oh, este louco quis grandeza, sim, mas não aquela que o senhor pensa! No dia da batalha, D. Sebastião anunciou que só iria combater à tarde e foi um capitão, um soldado espanhol chamado Aldana, que o fez mudar de ideias.'
'Sim, mas há quem diga que foi mesmo por causa dessa decisão que a batalha foi perdida. Não tiveram tempo para se preparar.'
'Qual tempo, senhor Pessoa! Começada a batalha, D. Sebastião esqueceu-se de emitir a ordem de combate. Esqueceu-se? Como é que isso é possível? Terá pensado que estava num salão de baile à espera que o convidassem para dançar? Uma ilusão difícil de visualizar com toda a gritaria, o pó e o relinchar de cavalos. A impavidez obrigou o Duque de Aveiro e D. Duarte de Meneses, mais os combatentes dos terços, a agir por conta própria. Em poucos minutos, a batalha transformou-se num massacre. Dentro de um buraco, senhor Pessoa, quando a saída está tapada, só há uma fuga possível: para baixo!'
'Está a dizer que ele foi um péssimo estratega, que não sabia comandar. Que era estúpido ou atrasado mental como lhe chamou o escritor António Sérgio.'
'Pelo contrário, senhor Pessoa! Pelo contrário. O homem foi um génio! Um génio da estratégia, frio e calculista. Veja o meu braço! Até estou com pele de galinha.' Arregaçou a manga da camisa e mostrou-lhe.
'Senhor Crowley!', disse Pessoa, surpreendido. 'Que se passa?'
'Estou excitado! Excitado por pensar no génio de tudo aquilo. Na audácia! Na coragem!'
'Pensei que a sua opinião era outra.'
'Ainda não percebeu? D. Sebastião escolheu Alcácer-Quibir porque o terreno era um buraco. Ele reuniu um exército mal treinado. Ele obrigou esse exército a dar uma volta enorme desde Portugal até ao local da contenda em África, ignorando o caminho mais curto que, ainda por cima, era o mais seguro, esgotando as energias dos soldados sem necessidade nenhuma. Ele quis adiar o combate para a tarde, como lhe sugeriu o xerife berbere caído em desgraça, uma ideia que, a ser realizada, iria dar tempo precioso ao adversário. Estas coisas, senhor Pessoa, as coisas que ele fez... Não se fazem! Lembra-se do xadrez? Para ganhar uma partida de xadrez é preciso ser-se objectivo. Ser-se objectivo! é muito simples.'
'Está a querer dizer que ele queria perder a batalha? É diabólico!'
'É genial! O homem queria perder! Ele estudou tudo ao pormenor para perder. Quando se percebe isso, a sua estratégia torna-se brilhante.'
'Mas porquê perder? Acho essa conclusão infame. Que tinha ele a ganhar com isso?'
'Para se encaixar ele mesmo nas profecias do Encoberto? Aquelas que contam como o rei é derrotado em batalha contra o inimigo para andar perdido durante uns anos antes do regresso triunfal?'
'Medonho! Acredita mesmo nisso?'
'Claro que não! Acha que um homem que estuda e planeia uma derrota destas com anos de antecedência ia confiar na sorte? O objectivo dele foi outro, senhor Pessoa. Muito mais medonho!'
'Qual?'
'A derrota em Alcácer-Quibir foi um sacrifício de sangue para carregar de energia mágica um poderoso encantamento!'»

Excerto do meu romance A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência, 2007), sobre o encontro de Fernando Pessoa com Aleister Crowley. Parabéns, Fernando! Até um dia destes.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Duas críticas de leitores a...





Novos leitores descobrem estes romances e deixam-se encantar.
No próximo mês de Setembro, A Conspiração dos Antepassados fará quatro anos de publicação, num período de vida que conta com três edições, uma das quais prefaciada por António de Macedo, o que é uma honra.

E neste primeiro semestre, pelas edições Saída de Emergência, será editado o meu novo romance.


terça-feira, 5 de outubro de 2010

«Uma obra-prima de investigação e erudição»

Nas vésperas da publicação do meu novo livro de contos, A Luz Miserável, continuam a aparecer excelentes críticas aos meus romances: desta vez ao A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência).
«Uma obra-prima de investigação e erudição, plasmada duma forma ficcional para melhor aceitação das moles, não tenho problemas em recomendar altamente este romance extraordinário, que penso será recordado no futuro das nossas letras como um dos marcos do início deste milénio. Assim o queiram as vontades.»

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Ensaio literário sobre os meus romances

O primeiro fim de semana da 80ª Feira do Livro de Lisboa aproxima-se e, como é habitual desde 2004, (ano em que lancei o meu livro de ensaio sobre banda desenhada Sobre BD no auditório principal da Feira), lá estarei para personalizar exemplares dos meus livros: tanto o mais recente (o romance O Evangelho do Enforcado, editado este ano pela Saída de Emergência), como os títulos anteriores. Nesse rol incluem-se os romances A Conspiração dos Antepassados (1ª e 2ª edição, 2007; 3ª edição, 2010) e Lisboa Triunfante (2008), também editados pela Saída de Emergência.

Aproveito a ocasião para publicar nesta página um ensaio literário, escrito pelo crítico Pedro Vieira de Moura, sobre esses dois títulos.
Trata-se de um texto rigoroso, muito bem escrito, que desenvolve com inteligência e profundidade determinados temas e elementos da minha obra. Convido-vos à leitura e, claro, a aparecerem na Feira do Livro, no próximo dia 1 de Maio, às 16H00 (no stand das edições Saída de Emergência).

sábado, 16 de janeiro de 2010

"A Conspiração dos Antepassados": pré-venda

A edição especial do meu romance A Conspiração dos Antepassados chegará às livrarias no próximo dia 22, mas já se encontra disponível para pré-venda no site da Saída de Emergência.

Quem ainda não leu o romance, cujas personagens principais são o poeta português Fernando Pessoa e o mago inglês Aleister Crowley, tem agora uma boa oportunidade para o levar para casa, com uma nova capa e um prefácio da autoria do escritor e realizador de cinema António de Macedo.

Entretanto, o meu novo romance O Evangelho do Enforcado, sobre os Painéis ditos de São Vicente, também está quase a sair (dia 12 de Fevereiro). Quem quiser acompanhar as novidades exclusivas que, diariamente, vou publicando sobre ele na sua página do Facebook, pode fazer-se fã nesta ligação. Em breve, anunciarei o passatempo que dará a um leitor a possibilidade de ganhar um exemplar assinado deste romance.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Ensaio sobre a obra de David Soares


O crítico Pedro Vieira de Moura escreveu um ensaio sobre o meu trabalho de escritor, focando-se, em especial, nos meus romances Lisboa Triunfante e A Conspiração dos Antepassados.
Trata-se de um ensaio crítico rigoroso, que examina a minha obra com profundidade. Convido, pois, à sua leitura.

«Soares não se limita a ficcionar, mas a operar um acto mágico sobre o real. (...) David Soares, escritor, mago e docente, não cria as suas ficções para nos pôr a sonhar, mas antes para nos despertar o poder real da imaginação.»