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quarta-feira, 30 de maio de 2012

Anjos, Velhos e Novos


Quando alguns leitores de 1955 leram os trechos respeitantes ao exército espectral de Dunharrow, instrumentalizado por Aragorn para derrotar os corsários de Umbar, no recém-publicado livro The Return of the King, de J. R. R. Tolkien, a terceira parte da trilogia de literatura fantástica The Lord of the Rings, deverão ter-se lembrado naturalmente dos ainda eminentes “Anjos de Mons”, os reforços celestiais que acudiram a um pequeno corpo expedicionário britânico, ajudando-o a fugir com segurança das mais numerosas tropas alemãs, na batalha travada perto da cidade belga de Mons, a 23 de Agosto de 1914.
Essa soldadesca sobrenatural era constituída por arqueiros ingleses mortos na Batalha de Agincourt, ocorrida a 25 de Outubro de 1415, no local onde hoje se situa a contemporânea cidade e comuna de Azincourt, no Norte de França. Nessa batalha – episódio da famosa “Guerra dos Cem Anos” (na verdade, durou cento e dezasseis anos) –, o jovem rei inglês Henry V derrotou o numeroso exército francês liderado por Charles I de Albret, condestável da França, inaugurando um interregno na imperante hegemonia francesa; a fortuna de ser-se salvo por corajosos companheiros de armas, provenientes do outro mundo, inspirou, pois, a imaginação inglesa nas trincheiras da Primeira Grande Guerra.
            O relato estreou-se a 29 de Setembro de 1914 no jornal vespertino inglês The Evening News (o primeiro jornal do mundo a ter telefone), editado nessa altura pelo jornalista Walter J. Evans, mas não menciona nenhuns anjos; com efeito, a notícia, intitulada The Bowmen, descreve de modo explícito que os agentes sobrenaturais «cintilantes» são os arqueiros fantasmas de Agincourt, liderados por São Jorge (de modo geral, os santos são personagens que não gozam de grande popularidade no culto inglês, mas, enquanto ícone nacionalista, São Jorge beneficiava do afecto popular). O bosquejo dos archeiros fantasmagóricos como sendo anjos foi desenhado pelos eclesiásticos que, poucos meses após a publicação da notícia, disseminaram-no entre as suas paróquias sob a forma de panfletos. Em principal, o relato intitulado A Troop of Angels, publicado a 3 de Abril de 1915 no jornal paroquiano Hereford Times do condado de Herefordshire, foi decisivo em estabelecer a identidade angélica dos intervenientes além-tumulares: nessa narração, uma jovem chamada Miss Marrable conta as experiências que dois soldados ingleses, presentes no corpo expedicionário salvo por “anjos” em Mons, lhe confidenciaram, inclusive uma descrição de como as tropas alemãs se paralisaram pelo terror ao serem acostadas pelo magote miraculoso.
Diversos jornais britânicos também reproduziram o texto original, discorrendo sobre ele com as mais imaginativas interpretações – chegou a revelar-se que o exército alemão ocultara a informação de que se encontraram flechas nos corpos dos soldados mortos a 23 de Agosto de 1914. Isolado no onfalo da voragem dessecretista, o autor da notícia continuava a ser interrogado por leitores ávidos de mais pormenores, porém o texto não era notícia nenhuma, mas um conto: uma ficção inventada pelo conhecido escritor galês Arthur Machen, que, desde 1910, trabalhava como jornalista para o The Evening News.
Machen sempre disse que o seu conto The Bowmen era apenas uma ficção, sem nenhum referente real, mas isso não impediu que a lenda dos “Anjos de Mons” ganhasse com rapidez um ímpeto e uma dimensão incomuns, firmando-se com solidez na psique popular como um verdadeiro episódio de intervenção divina – aliás, não faltou quem insultasse o próprio autor por tentar denegrir com calúnias a verdade sobre os “anjos patrióticos” e até alguns soldados ingleses, sobreviventes da Batalha de Mons, contaram à impressa que os “anjos”, de facto, os ajudaram a retirar-se do campo de batalha. Também em 1915, o conhecido escritor conservador Edward Harold Begbie publicou um livro intitulado On the Side of Angels, no qual acusou Machen de lucrar com verdadeiras visões espirituais, transmitidas telepaticamente por desgraçados soldados na frente de batalha e que ele sintonizara.
Em tempos de carestia, como o da Primeira Grande Guerra, é natural que os indivíduos desesperados sintam maior disponibilidade para encontrarem conforto junto de ideias marginais que refutariam em melhores circunstâncias. Em Portugal, por exemplo, o fenómeno das aparições de Fátima, cuja data principal de 13 de Maio de 1917 se inscreveu na sequência da partida do corpo expedicionário português para França, pede para ser cotejado com o dos “Anjos de Mons”.
Hoje, a secularização da sociedade não permitirá, certamente, um levantamento de massas de ordem similar em torno de um tema de natureza religiosa, mas os mecanismos que promovem a aceitação do inverosímil também funcionam com o pensamento político, como comprovou a emergência dos nacionalismos durante o século XX. Ao contrário dos nossos antepassados, somos demasiado rebuscados para acreditarmos nas chamadas grandes mitologias formativas, mas, por outro, talvez sejamos mais lestos que eles a acreditar em informação contrafactual desde que ela vá ao encontro daquilo que sentimos, porque, hoje, os sentimentos substituíram os factos e qualquer ficção difundida sem análise poderá ser, tal como o conto de Machen, lida como sendo verdade histórica. 
Por um lado não duvido de que isso acontecerá, mais tarde ou mais cedo. Por outro, prefiro não ser testemunha dos “anjos” que o século XXI poderá trazer.

Crónica publicada originalmente no número doze da Revista BANG! (Saída de Emergência).

quinta-feira, 22 de março de 2012

Pré-publicação do "Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes"


O número doze da Revista BANG! (revista quadrimestral e gratuita sobre literatura fantástica, publicada pelas edições Saída de Emergência) traz uma pré-publicação exclusiva do Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes, intitulada "As Portas do Diabo".

A Revista BANG! é um exclusivo das lojas FNAC: procurem a loja FNAC mais próxima da vossa área, levem a Revista BANG! para casa e leiam, em primeira mão, um dos inúmeros segredos sombrios que o Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes tem para vos contar.

Visitem o weblog oficial do Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes para descobrirem novidades exclusivas sobre ele: assinem a newsletter e recebam todas as actualizações por email.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Pais da Ficção Científica


Em From Paralysis to Fatigue, Edward Shorter enuncia a existência de “reservatórios de sintomas”: aglomerados ideais, preenchidos pelas tendências predominantes dos períodos que permeiam. São, em simultâneo, influenciáveis e influentes. Faz sentido falar em “sintoma”, porque a palavra também significa “presságio”; logo, as mutações que afectarão a sociedade poderão ser calculadas pelo estudo do “reservatório de sintomas”.

Nas primeiras décadas do século XIX, os Estados Unidos foram desinquietados pelo Segundo Grande Despertar: revivalismo religioso, de natureza arminiana, que quis repor o rigor protestante, perdido em favor do agnosticismo estimado pelos Pais Fundadores. Foi um período em que a ciência manteve a orientação de que deveria glorificar o desígnio de Deus. Entre os astrónomos americanos e europeus, a maioria era composta por teólogos crentes num pluralismo cósmico teísta (como William Herschel, descobridor de Úrano e da radiação infra-vermelha), sob o qual o universo era populado por raças tementes a Deus. Reverendos astrónomos, como Thomas Dick, acreditavam que a Lua era habitada por uma civilização isenta de pecado (Dick até calculou que ela perfazia o número de 4,2 mil milhões de indivíduos) e Von Littrow e Friedrich Gauss arrogaram ser possível comunicar com os selenitas. A crença no povoamento da Lua foi aceite por todos como provável: fez parte do “reservatório de sintomas” desse tempo.

Em Agosto de 1835, o jornal nova-iorquino The Sun publicou uma série de artigos sobre a descoberta do astrónomo John Herschel (filho de William Herschel), isolado na África do Sul. Lendo o seriado, intitulado Great Astronomical Discoveries Lately Made by Sir John Herschel, L.L.D. F.R.S. &c. at the Cape of Good Hope, o público ficou a saber que a Lua tinha florestas, lagos e era habitada, entre outras espécies (como castores bípedes), por inteligentes híbridos de humano com morcego, capazes de construir igrejas. Graças a um novíssimo procedimento óptico (descrito ao detalhe), que permitia a magnificação das imagens telescopiadas sem que perdessem definição, Herschel desvendava que o homem não estava sozinho no sistema solar. The Sun, criado em 1833 por Benjamin Day, já revolucionara cabalmente o modo de fazer jornalismo, ao lançar-se no mercado em pequeno formato e com custo de um penny: foi o primeiro diário popular, com características actuais, e as novidades sobre os selenitas transformaram-no no título mais vendido. À edição episódica advieram as panfletárias, com litografias dos homens-morcegos voando entre vulcões, lagos e cascatas lunares. Os restantes periódicos norte-americanos (e europeus) não perderam tempo em republicar o material na integralidade, mas James Gordon Bennett, proprietário e editor do diário nova-iorquino Herald, concorrente do The Sun, não acreditou na descoberta e iniciou uma campanha para que Richard Adams Locke (editor do The Sun) assumisse a autoria das espantosas “noticias”. Com efeito, fora Locke a escrevê-las; e em 1840, numa crónica publicada no semanário New World, assumiu que quisera satirizar a crendice com que a ciência, em particular a astronomia, era praticada nas academias, mas, infelizmente, ninguém compreendera o ponto de vista. O seu único trabalho ficou conhecido como Grande Embuste da Lua.


Foi o “reservatório de sintomas” da época, recheado com a crença na Lua habitada e a exuberância da emergente imprensa popular, que serviu de placenta ao desenvolvimento de um inédito género literário que iria aperfeiçoar-se no início do século seguinte. No dia 3 de Setembro de 1835, Bennett escreveu no Herald um artigo intitulado A New Species of Literature: nessas linhas, cunhou o estilo de Locke como sendo «scientific novel». O seriado foi pioneiro na descrição meticulosa de uma tecnologia óptica especulativa que credibiliza a história do ponto de vista científico: o texto suspende-nos a descrença porque ciência e ficção se entrosam com harmonia – e esse cruzamento aparece pela primeira vez pela mão de Locke, assim como a designação «scientific novel», inventada pelo editor rival Bennett, antecipa em quarenta e um anos a de «scientific fiction», criada por William H. L. Barnes na introdução que escreveu para a colectânea de homenagem póstuma a Caxton (W. H. Rhodes), e em noventa e um anos o uso dado por Hugo Gernsback no primeiro número de Amazing Stories. Conclui-se que Locke, com o estilo inédito, e Bennett, com a designação que lhe deu, foram os pais remotos da ficção científica.


Locke atreveu-se a imaginar sobre a Lua e num precursor jornal popular mostrou-nos como imaginar o século XX. Sem Locke talvez não houvesse Verne e Wells e sem os seriados e folhetins do The Sun talvez não houvesse fanzines, nem weblogs. A Lua deu-lhe ainda oportunidade de usá-la como alegoria de uma sociedade sem escravos, num momento em que Nova Iorque era a cidade mais sulista dos estados do Norte. A especulação fantástica podia, afinal de contas, falar de problemas reais.

O período supracitado, cheio de convulsões, prova que só o fantástico pode salvar a cultura de tornar-se o epifenómeno subserviente de um mercado cada vez mais volúvel e falsamente personalizado. É olhando para a Lua, domínio argênteo da Imaginação, que se pode observar sem cegueira a luz do Sol, radiância dourada da Obra.

Fantasiando, planeia-se o futuro.

(Crónica publicada originalmente no nº 11 da Revista BANG!, editada pela Saída de Emergência.)

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Excelente crítica a "Batalha"...


...assinada por Safaa Dib, no número dez da Revista BANG! (este número, com a versão integral desta crítica, já está disponível nas lojas FNAC):

«Há livros que conseguem atingir a virtude da universalidade nas suas narrativas. (...) E Batalha de David Soares é certamente um desses livros (...) David Soares tem provado ser uma das vozes portuguesas mais autênticas não só do género fantástico, mas de toda a literatura portuguesa (...) este pequeno maravilhoso romance de David Soares guia-nos das trevas para a luz, ensinando ao leitor a mais valiosa lição de todas: o que fica sempre é a Obra, a Dádiva.»

segunda-feira, 14 de março de 2011

Os Livros das Minhas Vidas

Para ser sincero, um convite para falar sobre os livros da minha vida soa como o som trítonocárpico das falanges da mão da morte a bater-me à porta, pois se a invitação se refere aos livros da minha vida, então tenho de aceitar que ela está perto do fim e não vou ter tempo de ler mais nenhum título: mortis en solatium. Talvez. De qualquer das formas, os livros da minha vida – no mínimo da que vivi até este momento; e no limite até ao final da escrita deste texto – não são apenas os livros que eu li, mas aqueles que escrevi. De uma forma ou de outra, os livros são uma parte muito importante da minha vida, porque a leitura e a escrita são duas ocupações às quais devoto a maioria das horas. No início deste parágrafo empreguei o verbo falar, porque é isso mesmo que estou a fazer convosco: a contar-vos um bocadinho de que é feita a minha experiência com os livros. Apenas um bocadinho – é, somente, uma precaução da minha parte, de modo a evitar a insolvência de memórias e garantir que me sobra algo sumarento para pagar ao barqueiro, porque o maior pecado que se pode cometer, mesmo depois de morto, é o da negligência.

Aprendi a ler com a banda desenhada Donald e as Formigas, de Carl Barks, publicada em Portugal pela Editora Abril/Morumbi no número 1500 da série quinzenal Pato Donald. Decorria o ano de 1981, e eu, sentado no sofá da sala de estar da casa dos meus pais, observava com atenção as vinhetas e tentava decifrar as palavras contidas nos balões. Então, num momento inesquecível, que eu só posso comparar com o acender de uma luz dentro da minha cabeça, as personagens deixaram de falar para os balões e começaram a falar para mim: compreendi que não estava a inventar os diálogos, como costumava fazer, mas a ventriloquar as verdadeiras vozes das personagens – estava a ler. O mérito foi, também, da minha mãe, porque ela mantinha a rotina de sentar-se comigo para me ler histórias; do Pato Donald, mas também do Mickey, do Musti e do Petzi. Ela ensinava-me a sonoridade das letras e como elas se harmonizavam e esses ensinamentos fizeram com que eu aprendesse a ler sozinho. Essa conquista primeva de infância foi um dos momentos mais importantes da minha vida, porque aprendi a lidar com palavras antes de ser capaz de me desembaraçar sozinho na casa de banho. Se a vida e a morte são um único movimento circular, prefiro, em simetria, no meu último leito, seja ele qual for, perder a elasticidade entérica em vez da elasticidade da imaginação. Por tudo isso, de modo inexcedível, esse número 1500 do Pato Donald, com uma capa que, à distância, me evoca até a heteronímia pessoana na multifaria de Donalds diferentes que a decoram, é um dos livros da minha vida.

Outra memória mucípara, resgatada desses tempos das criancices, prende-se com O Grande Livro do Maravilhoso e do Fantástico, publicado pelas Selecções do Reader’s Digest, em 1977. Descobri-o em casa de uns tios, em meados da década de oitenta, e fiquei apaixonado pelos relatos assustadores que continha: vampiros, fantasmas, assassinos em série, exploradores do passado e do futuro, demónios e bruxas, monstros humanos, invenções fabulosas, extraterrestres, animais quiméricos… No final dessas visitas, os meus pais vinham resgatar-me do meu refúgio chegado à varanda, onde me sentava com o livro no colo, e eu, mais desconsolado que Jeremias, tinha que me separar dele. Passados poucos anos, em outra visita, convenci os meus tios a emprestarem-mo. (É claro que ainda o tenho.) Muito, muito, muito texto desse livro saboreei ao longo de tardes que pareciam imensas, enquanto comia bolachas Catraias da Triunfo, com os signos do Zodíaco, barradas com manteiga. Acho que aquilo que esse livro me mostrou foi que era possível as maravilhas e as monstruosidades existirem no mesmo mundo: uma histonomia excêntrica, composta de sofisticação cosmopolita e folclore medonho. Também é um livro que, de certo modo, me influenciou a ser céptico, porque apresenta inúmeras secções que desmistificam historietas e lugares-comuns da História: verbetes que eu acho fascinantes. A mistura de proto-esoterismo, História, ciência e fantasia abarcada pelo O Grande Livro do Maravilhoso e do Fantástico faz dele, sem dúvida, outro dos livros da minha vida.

A memória é a única língua com a qual podemos falar com os mortos e os sonhos são os únicos lugares em que os podemos encontrar; às vezes, perder alguém é perder uma âncora que nos agarrava a um determinado local e encontrar o pé, novamente, dá trabalho, mas encontrá-lo é preciso. O terceiro livro da minha vida que me lembrei de vos falar é um pequeno volume, que estava na casa do meu avô, e que se chama Doenças dos Bichos de Nogueira de Araújo, publicado pelo Ministério da Educação Nacional, em 1973. O subtítulo é Memórias de um Veterinário Rural e consiste num comedido compêndio no qual as informações zooterapêuticas são veiculadas através de histórias ilustradas. Não faço ideia porque é que os meus avós tinham esse livro, mas sempre o achei hipnotizante; em especial, a ilustração de um cavalo infectado com tétano, acompanhada pelo retrato detalhado do bacilo anaeróbio responsável. Lembro-me de passar uma tarde de Sábado em casa dos meus avós a ler o Doenças dos Bichos e a desenhar o Homem Elefante, do filme homónimo de David Lynch, que passara à noite nessa semana. Lembro-me desse desenho: era uma criatura careca e deformada, com mãos minúsculas e olhos tão esbugalhados quanto os do Cão Grande do conto fantástico de Andersen – muito diferente do protagonista da película, mas era assim que eu achava que um verdadeiro Homem Elefante deveria ser. Com curiosidade, procurava no Doenças dos Bichos a sua estranha patologia, que um vizinho que estava de visita erroneamente me disse ser elefantíase.

Os livros da minha vida são, também, como indica o título desta rubrica, os das minhas vidas, porque as pessoas que fui quando os li e quando os escrevi são um pouco diferentes da que sou neste instante. Porém, tanto uns como os outros são melhores que os sonhos em que podemos visitar os nossos mortos, porque basta tirá-los das estantes para conversarmos com versões mais jovens, mais optimistas e mais ousadas de nós próprios. Versões que já morreram, evidentemente, mas é mantendo essas presenças do passado na biblioteca que construímos carácter e perduramos no tempo. Escrever é trancar a porta pela qual a morte quer entrar, mas ler é abrir janelas.

(Texto publicado originalmente no número nove da Revista BANG!, editada pela Saída de Emergência.)

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

A prova do nove


O nº9 da Revista BANG! (Saída de Emergência) irá ser lançado na próxima sexta-feira, às 21H30, no fórum da loja FNAC do Centro Comercial Colombo (Lisboa). Com as presenças do director Luís Corte Real e da editora Safaa Dib, mais os convidados João Morales (director da revista literária Os Meus Livros) e do autor Jorge Palinhos. Apareçam.

Fica a informação de que a rubrica Os Livros das Minhas Vidas deste número consiste numa crónica minha sobre três livros que foram muito importantes para mim, cada um à sua maneira especial. Querem saber quais são? Procurem-nos, pois, nesta edição da Revista BANG!
Segue um excerto:
«Para ser sincero, um convite para falar sobre os livros da minha vida soa como o som trítonocárpico das falanges da mão da morte a bater-me à porta, pois se a invitação se refere aos livros da minha vida, então tenho de aceitar que ela está perto do fim e não vou ter tempo de ler mais nenhum título: mortis en solatium. Talvez. De qualquer das formas, os livros da minha vida – no mínimo da que vivi até este momento; e no limite até ao final da escrita deste texto – não são apenas os livros que eu li, mas aqueles que escrevi. De uma forma ou de outra, os livros são uma parte muito importante da minha vida, porque a leitura e a escrita são duas ocupações às quais devoto a maioria das horas. No início deste parágrafo empreguei o verbo “falar”, porque é isso mesmo que estou a fazer convosco: a contar-vos um bocadinho de que é feita a minha experiência com os livros. Apenas um bocadinho – é, somente, uma precaução da minha parte, de modo a evitar a insolvência de memórias e garantir que me sobra algo sumarento para pagar ao barqueiro, porque o maior pecado que se pode cometer, mesmo depois de morto, é o da negligência. (...) Os livros da minha vida são, também, como indica o título desta rubrica, os das minhas vidas, porque as pessoas que fui quando os li e quando os escrevi são um pouco diferentes da que sou neste instante. Porém, tanto uns como os outros são melhores que os sonhos em que podemos visitar os nossos mortos, porque basta tirá-los das estantes para conversarmos com versões mais jovens, mais optimistas e mais ousadas de nós próprios. Versões que já morreram, evidentemente, mas é mantendo essas presenças do passado na biblioteca que construímos carácter e perduramos no tempo. Escrever é trancar a porta pela qual a morte quer entrar, mas ler é abrir janelas.»

quarta-feira, 17 de março de 2010

Ensaio na Revista BANG!

No número sete da revista BANG! podem ler, entre outros artigos muito bem escritos (Livros Míticos ou a Biblioteca (Quase) Invisível de António de Macedo e H. P. Lovecraft - Um Ícone da Cultura Ocidental Contemporânea de José Carlos Gil, por exemplo), um ensaio de minha autoria, intitulado A Companhia dos Cegos.

Consiste numa leitura paralela de Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago (1995) e O Dia das Trífides de John Wyndham (1951): um texto que interroga o modo como o tema da cegueira é tratado de modo diferente em ambos os títulos - um de literatura considerada erudita e outro pertencente aos géneros do horror e da ficção científica. Deixo-vos um excerto, em jeito de primeira dose gratuita:

«A monstruosidade em Ensaio Sobre a Cegueira e O Dia das Trífides não é, com efeito, uma consequência da cegueira. Nasce, com maior autoridade, das nossas próprias noções sobre o que é normal e higiénico; da ideia que, na cultura ocidental, qualquer coisa que se distancie, pela singularidade, dos modelos afeiçoados aos cânones, se transforma numa contagiosa fonte de horrores. Quando lemos sobre um cego a apalpar as fezes dos companheiros de reclusão enquanto procura o buraco da latrina para se aliviar, não podemos fazer nada a respeito disso. E quando lemos sobre trífides a alimentarem-se de corpos em decomposição, também não. Ambas as situações são obscenas fugas à norma – acidentes de percurso: testemunhá-las deixa-nos muitíssimo vulneráveis. Uma vulnerabilidade que se mistura com o nojo, mas esse sentimento é, em última análise, de pechisbeque diante da biologia. Convido-vos a uma pequena experiência: façam uma bola de saliva dentro da boca e engulam-na; em seguida, façam outra bola de saliva, cuspam-na para dentro de um copo e engulam-na. Se não tiveram problemas em realizar a primeira operação, certamente irão recusar-se a fazer a segunda. Mas porquê? A saliva é a mesma; não adquiriu, magicamente, propriedades tóxicas ao ser vertida para o copo. A experiência mostra que o conceito que classifica o que é asqueroso nada tem a ver com a biologia, mas tem tudo a ver com a cultura. «Pode ser que o nojo tenha uma estrutura que se impõe nas nossas noções culturais?», pergunta William Ian Miller no livro The Anatomy of Disgust (Harvard University Press, 1997. Pág. 62). O livro de Miller é o melhor ensaio que conheço sobre a temática do nojo, enquanto agente formador do humano; uma das ideias que o autor avança, para interrogar como é que ele se manifesta, relaciona-se com o tema da Inconformidade: «(…) coisas que metem nojo porque falham em se encaixar nas nossas expectativas. Explica-se, desse modo, o nojo que pode provocar a pele de um homem que possua o toque das escamas de um réptil e o nojo que pode provocar as escamas de um réptil que possuam o toque da pele humana.» Nessa perspectiva, os militares e os cegos “malvados” [sic] de Saramago, mais os hooligans de Wyndham possuem uma falsa humanidade: são humanos só porque não são, morfologicamente, monstros!... Esse papel está, em exclusivo, reservado às trífides.
Em suma: nós, leitores desprevenidos, podemos sentir nojo pelo médico cego que tacteia na trampa em busca da cloaca, mas imagino que uma enfermeira, por exemplo, que contacta com fezes, escarros e sangue o dia inteiro, tenha uma reacção diferente ao ler o mesmo texto. Talvez piedade. Ou ennui…»

A revista BANG! está disponível aqui.

terça-feira, 9 de março de 2010

Pintar o sete...

...e à pistola!...

Acaba de sair o número sete da Revista BANG!, periódico publicado pelas edições Saída de Emergência, dedicado ao Fantástico na literatura. Este número sete apresenta contos, ensaios e artigos diversos sobre os mais variados temas, como é habitual, mas, por outro lado, também marca um novo período de vida da revista, com novo design e orientação co-editorial.

Outra novidade é o regresso à edição impressa. Com setenta e duas páginas, este número da Revista BANG! está disponível para compra, em exclusivo, no site das edições Saída de Emergência.

terça-feira, 12 de maio de 2009

BANG!#6

O número seis da revista BANG! já está disponível, em formato pdf, para download gratuito no site das edições Saída de Emergência.

Contendo diversos ensaios e ficções, é um volume a não perder!
Destaco o ensaio de António de Macedo sobre as semelhanças e diferenças entre duas obras literárias, uma "erudita" e outra "popular": A Sibila de Agustina Bessa-Luís e Alraune de Hanns Heinz Ewers.
Este belíssimo texto será o primeiro de uma série de três dissertações (a segunda será minha e a terceira do João Seixas) que têm como ponto de partida as reflexões conjuntas que nós entretecemos sobre a dicotomia Literatura Popular vs Literatura Erudita e que podem ser lidas no número cinco da revista.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Bang! #5


Onomatopeia: s.f., formação de uma palavra cujo som tenta imitar ou reproduzir o que significa.

O número cinco da revista BANG!, dedicada à divulgação da literatura fantástica portuguesa e estrangeira, já se encontra disponível para download gratuito no site das edições Saída de Emergência. Com mais de 180 páginas de contos, ensaios, críticas e artigos diversos, é um número a não perder.

Um dos conteúdos inéditos que esta edição apresenta é um extenso discorrer que versa sobre as diferenças de classificação entre livros que se consideram ser parte da chamada literatura de género e outros que são observados como representantes de um conceito de alta literatura: intitula-se Literatura Erudita vs Literatura Popular e é escrito por António de Macedo, João Seixas e eu.