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terça-feira, 25 de julho de 2023

Marginália e Imaginário virtual no site da revista LOUD!


 Lembro aos meus leitores que no site da revista LOUD! poderão acompanhar a minha rubrica mensal Marginália e Imaginário, na qual escrevo sobre aspectos, acontecimentos e personagens pouco conhecidos, além de episódios insólitos e extraordinários da historiografia. 

Este mês, por exemplo, apresento-vos os Gatos Instruídos, mas no arquivo poderão ler ou reler muitos outros artigos e histórias.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Sobre as dalmáticas azuis de São Vicente nos ditos Painéis de São Vicente de Fora

É fascinante a recente descoberta (notificada no jornal Público do passado dia 25 de Maio) de que nos painéis ditos de São Vicente de Fora, de autoria atribuída ao artista Nuno Gonçalves, o protagonista em duplicado (vulgarmente identificado como sendo esse santo) já envergou numa fase preliminar paramentos pintados de azul.
 
Na peça em que se dá prova do novo facto é lembrado que no Livro de Horas de D. Duarte existe uma iluminura na qual São Vicente também veste uma dalmática azul — mas no mesmo livro outras figuras, superiores e inferiores ao estatuto do mártir de Saragoça, vestem igualmente de azul; desde a Virgem (como seria de esperar), como alguns camponeses e até os sicários do rei Herodes. Criado no primeiro quartel do século XV (entre 1400 e 1430) na cidade de Bruges, este códice expressará ainda a trecentista cromofilia flamenga que mutaria de gosto no decurso da centúria seguinte, em que o azul foi, progressivamente, sendo substituído pelo preto como a cor aristocrática, por excelência — moda que se espalhou e perdurou por quase toda a Europa durante boa parte da Época Moderna. Aliás, já no século XVI, a rainha Isabel I de Inglaterra proibiu o uso da cor azul. No setentrional cosmos protestante, o preto é, superlativamente, a cor moral. (Na verdade, a afirmativa emergência do preto como a cor mais digna do espectro pode ser traçada desde a promulgação de certas leis trecentistas e quatrocentistas contra o luxo: as leis sumptuárias que tinham como objectivo regular o vestuário e os acessórios.)
 
De facto, o azul foi uma cor impopular — e até observada com desconfiança — ao longo de grande parte do período denominado de Idade Média: arreigadas aos costumes greco-romanos, as cada vez mais consolidadas elites reais e respectivas nobrezas privilegiavam a tríade clássica de branco, vermelho e preto, reservando, por vezes, algum destaque para o verde; nas representações artísticas, inclusive, o azul é inexistente — até como cor do céu. Foi, certamente, por via da indústria do pastel dos tintureiros, muitíssimo utilizado nas manufacturas de vitrais e de objectos de vidro que o azul, em principal nas primeiras décadas do século XII, foi associado nas igrejas à Luz Divina, como uma manifestação visual da imaterialidade. Para a nova associação contribuiu o pensamento gótico do abade Suger; com efeito, é a partir do tempo de Suger, do dealbar do Gótico, a Arte da Luz, que o azul logra sobrematizar o próprio manto mariano (que até à data era, muitas vezes, preto) e até transmutar-se em cerúleo avatar de França: a cor da corte e da nação. Não obstante, nesse período a popularidade do azul não se traduziu na sua celebridade — e permaneceu fora da paleta de outros reinos. Quanto a paramentos, o azul não se inscreveu como cor litúrgica no catolicismo, ou seja no Rito Romano; sem embargo de se encontrarem vestes cerimoniais azuis, por exemplo, na igreja de Inglaterra do século XIV, ainda em fase de difusão insular do Gótico.
 
O azul foi, em suma, uma cor de tradição francesa e flamenga — e neste caso até finais de Trezentos. Para a Flandres, e não só, o século XV já era o do preto. Assim, as dalmáticas azuis de São Vicente nos painéis consistem num “mistério” estimulante e que, certamente, vem sugerir interpretações que até agora têm estado em suspenso: uma delas, que eu não defendo (faltam elementos), mas que mantenho sem nenhuns problemas em aberto, é a de que os Painéis de São Vicente não são portugueses e podem, inclusive, representar uma camarilha de figurantes cuja identidade de grupo nos escapa à decifração. Lembre-se que Francisco d’Ollanda — que viu os Painéis na Sé de Lisboa e escreveu sobre eles — descreve esta obra como sendo insigne em «tempo mui bárbaro», porque na altura da sua concepção (século XV) os artistas portugueses só queriam imitar o estilo flamengo e desconsideravam o italiano: ora, na sua óptica, os ditos Painéis de São Vicente da Sé iam em sinal contrário, aproximando-se da arte italiana e não da flamenga — como exsuda do políptico aqui sob observação, que nos mostra toda uma gramática visual e encenação flandrinas.
 
(Abaixo segue a imagem de um excerto das notas finais do meu romance O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência, 2010), nas quais reflecti, precisamente, sobre a problemática da identificação das personagens dos Painéis e a proveniência destes.
Este texto foi publicado originalmente no passado dia 28 de Maio na minha página de Facebook.)

 

 

domingo, 27 de setembro de 2020

Centros, n.º3

A arduidade de muitas práticas contemplativas que diversas religiões exigem aos crentes constitui uma prova mais do que suficiente de que o Homem não foi feito para o silêncio: assente na oralidade e na escrita, a linguagem é uma forma de vida na aventura humana, reproduzindo-se de indivíduo para indivíduo, coagindo artífices da palavra a transmutá-la e resignificá-la. Mais do que ser uma interrupção da unidade da inconsútil manta discursiva, a assonia do silêncio é um espaço de ausência do humano; logo, o lugar do sagrado, na perspectiva de que o sagrado é, sempre, a antítese do humano, uma formidável força antropofóbica, porque nas crenças que admitem o contacto do homem com o númen, aquele tem de transcender a carne, qual crisálida ou casca de suas primícias, de molde a ascender da plataforma profana que é este mundo.

A percepção de que o silêncio era sagrado — e intangível — expressa-se nos pânteos paleolíticos, preenchidos por divindades teriomórficas, amálgamas de homem e animal, em desiguais graus de hibridez. Esculpido há quarenta mil anos num dente de mamute, o Homem-Leão de Hohlenstein-Stadel representa essa característica da religiosidade primeva: descoberto numa caverna dos alpes suábios, na Baviera, uma semana antes do início da Segunda Grande Guerra, este ídolo de uma Europa tão antiga que poder-se-ia apelidar de mítica, ergue-se em trinta centímetros de altura — pouco mais alto que um gnomo de jardim (outra criação das alpinas latitudes germânicas) —, enfrentando com confiança felina o olhar dos observadores. É um macho sem juba, segundo o figurino do extinto leão das cavernas europeu, espécie cujos últimos descendentes ainda foram caçados pelos antigos gregos e romanos. Este é o Leão de Nemeia, fabulosa fera chacinada por Herácles no seu primeiro trabalho: o último filho de Équidna, primordial mãe de todos os monstros, irmão mudo da Esfinge. O silêncio e a ferocidade, apanágios dos deuses, anaglifados por lâmina de pedra; arrancados, por esse lítico fórcipe, do útero da matéria-prima animal até a cintilante e imaterial sefira do sonho.

O seu homuncular corpo não se encontra anediado pela erosão milenar, mas pelos ininterruptos afagos dos crentes: isto é adoração no estado mais puro — carícia, beijo, prometimentos contra a miséria dos elementos. Contra a fome e contra o desespero, o Homem-Leão foi venerado na sua despojada gruta: santuário ‘ad fontes’ de todos os templos seguintes. A sua silhueta ainda transmite uma firmeza simultaneamente autoritária e compassiva, de quem, em segredo, gostaria que as presas humanas se tornassem seus filhos. Os deuses não falam, porque ensinam pelo exemplo.

Não obstante, nós falamos — com efeito, não somos capazes de ficar em silêncio. Mussitamos suaves orações, rogamos de voz entrecortada pela desesperança, quando não amordaçada pela própria morte em leito hospitalar cercado de crípticos e cruéis instrumentos. Procuramos a luz fosca da memória; tão fosca quanto uma candeia acesa numa caverna — e igualmente frágil. As palhas da memória precisam do fogo da imaginação.

Esta é a verdade da condição humana: comunicar com o numinoso e ominoso silêncio dos deuses, transcender os contornos do Antropos em direcção ao zoomorfismo silencioso e sagrado das bestas. Homem-Leão, Homem-Pássaro, Homem-Peixe: os elementos não aprisionam o humano transfigurado. E no entanto — uma semana depois de o Homem-Leão ter sido descoberto, deflagrou a barbárie: o mesmo território que deu à luz o monacal Homem-Leão também vomitou o Holocausto. O Homem é um construtor: ergue catedrais e câmaras de gás; fabrica deuses e crucifica-os. Sozinho no universo, só ele inventa o Céu e o Inferno.

A vantagem de idolatrar o silêncio, como bem sabiam os aurignacenses, é que, ao contrários das vociferantes ideologias e credos contemporâneos, não nos é dito como nos devemos comportar: isso — tal como a opção entre cultivar ou não a imaginação — é uma escolha de cada um.

Centros, n.º2

Do rol de confusões da contemporaneidade, uma que me desgosta especialmente é o erro de achar-se que Ciência é o mesmo que Tecnologia e que esta é o mesmo que Fé na tecnologia — a fé de que o desenvolvimento geométrico de comodidades tecnológicas remirá o ser humano das armadilhagens do seu atávico irracionalismo.

É uma percepção positivista, brotada da fonte das Luzes, esta de que moléstias sociais, como o crime, a loucura e o vício, podem, em última análise, ser extirpadas através da aplicação rigorosa de leis racionais, executadas por governos científicos ou tecnológicos. Os antigos Gnósticos acreditavam que o conhecimento libertaria o Homem — não se tratava de sabedoria, como hoje a entendemos, mas a árdua descoberta de que se estaria encasulado numa ilusão colectiva criada por um demiurgo diabólico. Não obstante, o topos de que o conhecimento liberta, e a metafísica aprisiona, permeia toda a Época Contemporânea e a fé resoluta — obstinada — de que o conhecimento racional, alcançável pela ciência e pela tecnologia, resolverá todos os problemas (mesmo quando se comprova que esse conhecimento nada tem de conhecimento e nada tem de científico). A figura electromecânica do robô, ícone futurista por excelência, é uma preclara representação do Homem Contemporâneo: programado para executar tarefas de modo eficaz — logo, de modo racional —, o nosso sósia cibernético ignora completamente tudo aquilo que identifica um ser humano enquanto tal, começando pela irracionalidade, o erro, o transcendente.

Em oposição ao robô, o Homem é uma criatura transcendental: uma mente divina reclusa num corpo animal, falível e deslustrada, capaz de construir uma catedral e, em seguida, escavar uma vala comum. Talvez a melhor forma de garantir que a catedral seja sempre mais alta que a profundidade da vala comum seja admitir a natureza irracional do Humano. Muitos mais cadáveres foram enterrados pelo Sono da Razão que por todos os Sonos anteriores: por trás de cada genocídio ou utopia totalitária novecentistas encontra-se sempre um plano de utilitarismo científico, servido pelos últimos gritos tecnológicos. Do mesmo modo que amputar um órgão não o torna mais eficiente, é uma loucura esperar que processos de desumanização construam seres humanos mais perfeitos. A ser alguma vez forjado, o Homem Novo com que sonham todas as Utopias não será mais do que um robô.

A arte, o sonho, o amor — até a Ciência —, tudo aquilo que identifica um ser humano como humano não é produzido na prancheta de modo canhestro a régua e esquadro: procede da nossa pré-história mental, de um tempo em que muito antes de se pensar em racionalidades, economias e tecnologias, artistas paleolíticos deixavam as mãos impressas nas paredes das grutas — essas mãos dizem-nos “sou eu”, “estou vivo”, “isto foi o que sonhei”. É umbilical, esta poderosa e telúrica energia somente minerada no lugar mais occipital do nosso pensamento, escondida sob compactas camadas de escória mediática e ideológica: penetre-se essa espessa parede, derrube-se as rochas do suposto racionalismo e, ei-las!, as nossas próprias mãos impressas no estrato mais primitivo. Sempre emergentes em tempos de crise da fantasia.

Com efeito, só a fantasia poderá salvar o Homem dos infortúnios da racionalidade, da miséria da acção funcional, da pressão entrópica do utilitarismo. Este é, à maneira gnóstica, um conhecimento perdido que urge encontrar. Se, como dizia Dostoiévsky, “o homem é um animal que se habitua a tudo”, habituemo-nos a fantasiar, a contemplar as mãos na parede da caverna.

Esta foto é de uma fonte esculpida no início do século XVI, no reinado de D. Manuel: representa o rei e a irmã, D. Leonor, na forma de uma serpente bicéfala que jorrava água por ambas as bocas (sabe-se que são o rei e a irmã, porque estão identificados com as suas divisas pessoais, a esfera armilar e o camaroeiro). Não me recordo de outro caso de representação análoga a esta no espaço europeu e penso que este artefacto singular diz muito sobre como uma sociedade e uma civilização podem aprender a fantasiar. A aceitar que a natureza humana é mitológica e metafísica, em oposição a ortogonal ou positivista. A aceitar que a natureza humana é dupla — sagrada e profana; transcendental e reptante como uma serpente. E, como esta, que é da água, anfíbia.

Uma Lisboa feliz produziu uma fonte feérica, simultaneamente rébus e rebis; puro divertimento contra o desespero e o Apocalipse. Porém, quais são os símbolos do nosso tempo? Onde estão as hodiernas mitologias que nos dão sentido? Não existem: vivemos num mundo artificial e desalmado. Não imaginamos nada, porque imaginar é um atavismo irracional.

Mas não tem de ser assim para sempre.

Centros, n.º1

 

Só aqui o Sol se torna luminífero; apenas aqui o tempo se olha, perdulário, ao enorme espelho marinho. Perscrutáveis por cima, gelo e erva padronizam-se em auricerúlea heráldica, esférica e feérica — sonial partícula, fossilizada ao som de tafonómico poslúdio celeste, solene e imperturbável minueto.


Pois haverá outro centro cósmico que não seja aqui, onde as aves transformam em ninhos os excrementos das debulhas, onde a felpa das feras é tão branda ao tacto quanto as suas presas rasgam a carne? Em que outra esfera se poderá ouvir vagidos ensurdecedores de gigantes oceânicos, opacos num crepúsculo plutónico feito de breu abissal e órgãos bioluminescentes? Onde mais se aprende que o sangue sabe a ferrugem — e onde mais haverá sangue e ferrugem?

Quão confortável é o polinomial niilismo do menosprezo da nossa excepcionalidade. Talvez só os loucos e as crianças acreditem que é aqui o centro universal. Olhando-nos do espaço, isso é uma loucura e isso é uma criancice — mas olhando-nos daqui, submersos em recendência e cacofonia, em nascimento e em putrefacção, picados por insectos e aguilhoados pela imaginação, aqui onde as árvores quase existem desde sempre e onde cada vida humana dura menos tempo que a cobreagem de uma folha, aqui a álgebra e a física não nos convencem da descentralidade: pois o centro do universo é aqui.

Nós somos todos centro. O nosso sofrimento intrínseco não resulta de queda ou de expulsão, mas de ferida feita por compasso.

domingo, 12 de abril de 2020

Leitura de "O Corvo" de Edgar Allan Poe (trad. Fernando Pessoa)

Leitura minha do poema O Corvo de Edgar Allan Poe (1845), numa tradução de Fernando Pessoa — para todas as gralhas e todos os corvos que flutuem de fugida entre os sopros de uma poesia.


segunda-feira, 6 de abril de 2020

O heroísmo das pessoas fracas


The Outsider, adaptação de um livro recente de Stephen King, é inscrito pela ingenuidade simultaneamente encantatória e exasperante com que, demasiadas vezes, os autores americanos tentam enxertar as suas criações em mitologias de origem europeia para fazê-las crescer com o viço mítico que alimenta o reservatório folclórico do Velho Mundo; neste caso, a criatura que perambula pelo Bible Belt, metamorfoseando-se em diversas pessoas com quem contacta de molde a predar os fracos sob essas identidades, é descrita como sendo o monstro que, através dos tempos, foi arregimentando relatos e lendas sobre o Papão — ou El Cuco, em expressão espanhola, como é tratado em The Outsider. Com efeito, quando a personagem Holly Gibney, detective contratada para descobrir pistas sobre este estranho caso, navega a páginas tantas num motor de busca de Internet por entre imagens amadoras de avistamentos de El Cuco e as pinturas negras de Goya percebe-se que existe, efectivamente, um distanciamento enorme entre a sensibilidade americana e a europeia, pois se para a primeira essa cena evocará um lastro mitológico longínquo e até desconhecido, para os olhos europeus a mesma cena tem o efeito de um duche de água fria. Quão melhor seria se os criadores de The Outsider tivessem rebuçado o monstro sob o anonimato, numa mitologia endémica, natural desta produção, sem necessidade de alistá-lo no bestiário.

No folclore e no hagiológio de Portugal, a Cuca ou Coca é, muitas vezes, uma criatura saurópside — como o Dragão que é derrotado nas festividades do feriado do Corpo de Deus, em Monção. Nos livros de O Sítio do Pica-Pau Amarelo, o escritor brasileiro Monteiro Lobato imaginou a sua Cuca como sendo uma jacaré bruxa, prima do Saci-Pererê.

Não obstante a sonoridade patusca, o nome precipita do étimo grego ‘kako”, que significa “mau” ou “maléfico”, e do qual se desprendeu a acepção excrementícia de “caca” e de “cocó”. É, por conseguinte, um nome que tem estado sempre associado ao mal, à sujidade, ao nauseabundo. Aliás, palavras como “cisma”, “consciência” e “ciência” são todas cognatas do étimo em latim “scire”, aparentado de “kako” e do étimo indo-europeu “shkei”, que também significa “excremento”.

Alheias a estas ligações etimológicas, as personagens de
The Outsider caçam El Cuco numa velhíssima gruta de infame historial e conseguem eliminá-lo com relativa facilidade, pois, para sua sorte, a criatura encontrava-se num momento de fraca forma — embora uma coda algo mercenária, martelada já a ficha técnica do último episódio se desenrolava, sugira que poderá ser produzida mais uma temporada.

Não li o livro de King, mas, pelo que conheço do seu estilo,
The Outsider assemelha-se mais a um híbrido eficaz das primeiras temporadas de The X-Files (a sobriedade antártida do tom, da cinematografia e da banda-sonora), os romances de Clive Barker (a caracterização à inglesa da psique perturbada de personagens bizarras) e a matriz narrativa de King (crónica dos medos contemporâneos da sociedade americana, um ambiente cercado pela cultura popular e os ‘underdogs’ contra as forças do Mal).

Na verdade,
The Outsider atenua algumas das características de King que enunciei acima, como as referências à cultura popular da época em que a história se situa, o que favorece o todo, tornando-o mais intemporal. No entanto, no que concerne à crónica pesadelar da actualidade, alia-se no mesmo inimigo o medo da pedofilia e o do roubo da identidade: à semelhança de It, também aqui a criatura transmuta de forma e é uma predadora de crianças — porque «são mais doces», lembrando os fãs de King que o autor tem desenvolvido a ideia de que os seus monstros provêm, em regra, do mesmo local: um abismo inter-dimensional, situado entre mundos, ninho de monstruosidades malévolas, entre o demoníaco e o alienígena. É a influência de Lovecraft, provavelmente, mas se os seus monstros espaciais se caracterizavam pela indiferença face ao humano, os de King estão totalmente interessados em nós. Na verdade, parecem viciados no humano.

É por esta via que eu considero que os monstros de King se comportam como demónios medievais e os seus heróis são representantes de uma espécie de piedade popular de pendor protestante, segundo a qual os “escolhidos” vencerão. Muitas vezes, os heróis de King derrotam o Mal por meios verdadeiramente perfunctórios, o que só pode justificar-se pelo facto de que o actor vale mais que a acção; ou seja: o Mal é derrotado, porque foi enfrentado por determinada personagem e não por outra. No confronto entre o Bem e o Mal é importante escolher o campeão do Bem. No fundo, a Fé vale mais que as Obras, numa lógica determinista puramente protestante — mesmo quando o cunho determinista é atenuado, a tónica assinala-se pela fé nas Escrituras e não na conduta. Assim, os heróis de King (e não só) acabam por ser os indivíduos mais imprevisíveis, os anti-sociais, os marginais, os imperfeitos. Uma lógica que, com efeito, já vinha anunciada na primeira epístola de Paulo aos Coríntios: «Deus escolheu propositadamente as coisas que o mundo considera loucas para envergonhar aqueles que pensam ser sábios e escolheu as pessoas fracas para envergonhar as que têm poder» (Coríntios, 1, 27).

segunda-feira, 30 de março de 2020

Três livros da Europa do Sul: coordenadas culturais e históricas

Observações e leituras minhas de três livros do cânone literário da Europa do Sul: Comédia, de Dante Alighieri (Itália), Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes (Espanha), e Os Lusíadas de Luís de Camóes (Portugal).

Interxtualidades, similitudes e coordenadas geomentais entre estes títulos e as vidas de seus autores desvendam uma mensagem positiva para clarear os dias de incerteza que decorrem neste período em específico — em que, mais uma vez, a arrogância e ignorância setentrionais são projectadas arbitrariamente sobre o espaço meridional.

Uma lembrança da importância cultural e intelectual das obras artísticas da Europa do Sul para o desenvolvimento e consolidação do pensamento europeu contemporâneo.


sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Vida e virtualidade


Ao mesmo ritmo que a Vida é, até prova contrária, endémica deste planeta, ela consiste num fenómeno incidental, contingente de arbitrariedades e coincidências, de infinitesimais ajustes de condições. O mais natural seria que, à semelhança do remanescente cosmos, ela não existisse. 

Surpreende esta conclusão tão óbvia e tão oclusa, a de que a vida é árdua para todas as espécies, em parte porque todas são clandestinas neste mundo que, provavelmente, nunca esperou albergá-las. Na maior parte das vezes, a vida das espécies faz-se contra o próprio mundo: o sucesso delas é a derrota deste.

Quando era criança, vi um documentário sobre a vida selvagem que me chocou e cuja recordação, hoje, ainda me perturba: em África, um punhado de marabus repastava-se em tragar de dentro de dezenas de ninhos feitos nos ramos de uma árvore as crias há pouco tempo saídas dos ovos de um bando de pássaros que, impotentes, prostestavam com ruidoso alarme - num plano filmado em frente ao Sol, via-se distintamente os pássaros bebés a rolarem numa grotesca cambalhota pela goela semi-translúcida dos marabus. Seres com poucos dias ou até horas de existência terminavam a sua efemeridade dissolvidos em bolsas de ácido gástrico, baldando as esperanças dos progenitores que tanto trabalho e desvelo tiveram na edificação dos ninhos. De quem seria a culpa desta circunstância violenta? Dos pássaros que escolheram um mau local para fazerem os ninhos? Dos insensíveis marabus de apetite voraz? Deste mundo padrasto que é perverso e cruel para todos? 

Sem dúvida que a observação deste tipo de ocorrências terá fortalecido a noção de que a vida no mundo é falsa, perversa e injusta. Mais do isso: a ideia de que aquilo que se vive aqui no plano terreno nem vida será, sequer, mas uma paródia marionetada por uma mente doente da qual somente a morte nos libertará. Essa noção platónico-gnóstica encerra a verdade profunda de que a Vida é, de facto, incidental. Este planeta não precisava de ter vida nenhuma. E, como tal, como ainda ninguém lhe disse que ela existia, continua a agir no seu ritmo orocronolento, tão rude e brutal como nos tempos em que lava fundente fluia nas fístulas da Terra. Bactérias, plantas e animais, todos aparentados verticalmente uns com os outros desde que ácidos nucleicos assentaram como escuma na cútis morna do abiogenésico caldo primordial, são superfluidades na arquitectura do planeta, à laia de disformes gongronas nos gerônticos troncos das árvores. 

Radica neste sentimento de revolta o mitema de que a vida verdadeira não é para ser vivida aqui, mas em outro plano não-rebatível com este e somente acessível pela morte do disfarce terreno, como Séneca disse a Lucílio empregando a metáfora de que o corpo era a casca de um novo organismo que nascia com a morte e que se deixava para trás. 

Eu não sei se Séneca estava certo. Sei que, de facto, a ideia de uma vida extra-terrena também teve a sua própria evolução, com recuos, avanços e consolidações. Civilizações existiram que não tinham como horizonte a crença numa vida pós-morte. Com efeito, a percepção de que a Vida é um acidente, e que o Sol não deixaria de brilhar se ela não existisse, parece ter criado dois tipos diferentes de atitudes, cada qual com as suas inflexões contemporâneas: 1) a da cândida aceitação de que esse é o estado das coisas; e 2) a busca da transcendência.

Quando me ponho a reflectir sobre estas matérias muita informação me passa, em rede — no sentido da conexão, mas também no da rede de pesca, com tantos dados ensarilhados uns nos outros — pela cabeça; no entanto, a perturbante imagem dos marabus a devorar pintainhos inteiros pontifica num local elevado da minha catedral de cepticismo. Ao mesmo tempo é também por essa via que compreendo a necessidade do sentimento religioso. Cada criatura, autotrófica ou não, tem de criar para si — não a realidade — um sentido para a realidade, um laço de luz entre o barbarismo das trevas mais interiores e o empíreo salvífico que nos remirá de uma condição incerta, dolorida, por vezes miserável. O Homem é o fruto da verticalidade do barro — como é que se pode desinventar essa roda? O espaço vertical é a coordenada de astros e deuses, de dias e noites, de nuvens e estrelas.

Histórias, mitos, teorias e ideologias, versos, leis e pregões. Onde estão os fósseis das histórias? Onde, entre artropódicas impressões de trilobitas e veneráveis pegadas de dinossauros, se encontra registada a calandragem das ideias? A ficção — a virtualidade — é o elemento natural do ser humano: é tão espantoso assim o sucesso das tecnologias virtuais? Desde que começámos a riscar com cores nas paredes das paleolíticas igrejas que são as grutas que vivemos em completa e total virtualidade.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Poema do Plutão



O gato é uma criança
que pede para brincar quando se está a trabalhar.
Faz uma maroteira – que ele sabe ser desgostada –
e olha oblíquo para nós como se não fizesse nada.
Pega-se nele ao colo como se escreve um poema:
númen de peluche, noemático grafema.
O gato é uma criança
que sorri com o olhar enquanto se põe a arrulhar.
Num esplendor abstratício, feito de felícia etiqueta,
apanha todos os brinquedos numa olímpica pirueta.
Com prazer primaveril furtiva-se debaixo da mesa:
entressonha com o brilho de uma alegria acesa.
O gato é um filho
que escreveria prosa como quem um salmo glosa.


terça-feira, 12 de novembro de 2019

Lisboa Triunfante...


...numa montra do Chiado.
Onze anos depois perdura o sentimento de ter-se sintonizado durante a escrita a psique da própria cidade.

 

Aforismos


1) O merceeiro vende muitos produtos, mas tem somente uma ambição (e bem natural, que é a de vender); o mistagogo, inversamente, seja qual for o campo em que trabalhe, tem muitas ambições (que nada têm de natural), mas apenas vende um produto — a Verdade!
Assim, torna-se fácil reconhecer essa espécie de artesãos da metafísica: vendem somente a Verdade e combatem somente o Erro — com maiúscula e no singular. Ah!, como é fácil ser guru de qualquer manha ou ideologia quando aquilo que se vende e aquilo que se adversaria pode ser publicitado sob essa singeleza abstracta.

2) Barrava manteiga no pão como quem peliculava folha de ouro na madeira. Tanto o padeiro como o marceneiro amaldiçoavam o mundo por esse seu grande pecado.

3) É verdade que todos sabem que para pôr um aparelho electrónico a funcionar é preciso ligá-lo à corrente eléctrica, mas essa perfunctória informação não consta dos manuais: é uma dimensão invisível na nossa relação habitual com esse objecto. O estudo do passado não é diferente: na nossa relação com ele existe uma dimensão invisível que não consta dos manuais, nem sequer dos documentos nos arquivos, e que só através da mais rigorosa imaginação pode ser alcançada.

Anjos secretos


Existem anjos secretos que não figuram em nenhum hagiológio. Existe um primevo estrato mitopoético que, rizomático, radica na espinal medula do tempo e que capilariza, recendente e coruscante como todo o Sagrado, na nossa necessidade de transcender a dimensão humana pela proximidade com o animal. Existem anjos secretos que nos protegem da solidão e nos garantem que não estamos sozinhos.

A cappella


Hoje é um bom dia para lembrar que a palavra capela tem origem na hagiografia martinha: com efeito, denominou-se capela — ou seja, capinha — ao aposento basílico em que alegadamente se guardava a metade da capa que São Martinho reservou para si quando a dividiu para ofertar metade a um mendigo. O nome dessa relíquia, hipocorísticamente chamada de capinha, por ser somente metade de uma capa, serve de substantivo às capelas.
De onde escrevo, vejo o sol lisboeta verrumar com veemência o muro de nuvens para salpicar com luz moribunda os edifícios indiferentes a esse Milagre de São Martinho, ébrios pelas falsas luzes dos ecrãs de LCD, faróis de automóveis e opocéfalos semáforos que todas juntas mais parecem cadáveres ainda mornos de estrelas que tombaram deste céu abacinado. A luz verdadeira é sempre uma luz do passado: emitida há muito tempo. Todos somos iluminados pelo passado — só as luzes falsas são imediatas, repentinas, presentinas. É provável que o dito Milagre de São Martinho se relacione mais com a luz do que com uma capa: uma luz que finalmente chega, vinda de outro tempo, para nos dizer que a luz miserável que nos ensopa não é a única, não é verdadeira, não é destino.

(Texto escrito na tarde de 11 de Novembro de 2019.) 

Estas são as últimas palavras


Estas são as últimas palavras — aquelas que a morte interrompeu. Idiotices e fantasias, listas de compras e de oficina, poucas vezes confissões de amor. Mudos, os animais são poupados a essa condição miserável: o desespero de ser-se ponto ao nascer, dois pontos algures depois disso e reticências ao morrer. Reticências numa folha em branco. Todos somos reticências numa execranda folha em branco.

Um bom Halloween


Mais do que observar que se trata de uma calendarização radicada em substrato dito pagão ou, por outro lado, num constructo cristão como o Carnaval, retenha-se que consiste num período poroso em quem vivos e mortos se aproximam da celofânica e frágil membrana a que chamamos existência. Acredite-se ou não na presença operativa dos mortos ou que se liberte o interstício das recordações para alcançá-los, o homem é, assim, essa criatura excêntrica que é, individualmente, todo um contínuo histórico e intransferível, cuja vida se faz com todos: os que ainda cá estão e aqueles que já morreram. No proteiforme limbo da imaginação, cadinho de todos os medos e todas as aspirações, somos todos como a Louca Griet, de chuço em riste contra sabe lá ela o quê. Neste mundo horroroso que é o da contemporaneidade, marcado pelo utilitarismo extremo e pela mercearização do humano, às vezes só a loucura, a quixotesca quimera de querer realizar sentido à força num mundo boçal, hostil e artificial, pode remir o indivíduo. O futuro é um horizonte rarefeito, coado pela peneira de infindas possibilidades — só no passado encontramos aquilo que somos. Só no passado encontramos aqueles que foram connosco.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

MEDO no FOLIO 2019

Sábado passado, no FOLIO - Festival Literário Internacional de Óbidos, com o número especial do jornal MEDO, editado por João Paulo Cotrim e Carlos Morais José (um suplemento especial do jornal Hoje Macau) que entre outras colaborações conta com um artigo de minha autoria sobre o medo, intitulado Medo do Futuro: Hoje Como Ontem; e na mesa-redonda sobre o medo, organizada por João Paulo Cotrim, com Ana Teresa Sanganha, Patrícia Câmara, Carlos Morais José e António Eloy.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Mesa-redonda no FOLIO 2019

Gente bonita, no próximo sábado, dia 12, às 17H00, estarei no FOLIO - Festival Literário Internacional de Óbidos para participar de uma das muitas mesas-redondas e colóquios subordinados ao tema deste ano, que é O Tempo e o Medo. Ora, os meus leitores mais antigos, mas também os mais novos, sabem que este é, digamos de forma sintética, um assunto que eu conheço bem... Pois desde há vinte anos que a minha obra a ele se devota, de uma forma ou de outra.
Daí que se passarem por Óbidos, terra sobre a qual até já escrevi no contexto do medo no meu romance Lisboa Triunfante, apareçam na tenda dos editores e livreiros às 17H00 para esta mesa-redonda sobre o medo moderada por João Paulo Cotrim. Também será apresentado o jornal especial MEDO, editado por João Paulo Cotrim, e dedicado ao tema do medo que contará, entre outros textos, com um artigo da minha autoria. Venham descobrir por que é que quem tem cu tem medo.


quarta-feira, 10 de julho de 2019

Barroco: metamorfoses de uma palavra - Parte I


1 - Uma origem silogística
Foi em meados do século IV a. C., pela mão do filósofo grego Aristóteles, que apareceu no mundo das letras a primeira consubstanciação da palavra barroco: no tratado de lógica intitulado Analytica priora (Analíticos Anteriores, um trabalho envolvido mais tarde no compêndio peripatético Organon), ela assinala sob a forma baroco uma das mnemónicas pelas quais o estudante de filosofia invocaria facilmente distintos tipos de silogismos – neste caso, um dos ditos da segunda figura (como os festino e camestres), que expressa o atributo inferencial do quantificador “nem todos”: ofereço um exemplo improvisado, 1) Toda a literatura é filosofia, 2) Nem todos os escritores são filósofos, 3) Nem todos os escritores são literários.

Todavia, nesta acepção aristotélica, o silogismo baroco, mera categoria intelectual, não se liga à actuação semasiológica que a palavra comportará no decurso da modernidade. Encontramos, ainda, requícios dessa origem silogística nos ensaios do cortesão francês Michel de Montaigne, publicados em 1580: em “De l'institution des enfants”, capítulo XXVI do primeiro livro dos Essais, lê-se «La plus expresse marque de la sagesse, c’est une esjouïssance constante ; son état est comme des choses au-dessus de la Lune : toujours serein.  C’est Barroco et Baralipton qui rendent leurs suppôts crottés et enfumés, ce n’est paselle; ils ne la connaissent [à sabedoria] que par ouï-dire.» (Atentem à grafia moderna com que Montaigne escreveu barroco.)

De molde a caracterizar como obsoleta a filosofia medieval, considerada falaciosa face à quinhentista racionalidade humanista de pendor platónico, Montaigne resgata quase arbitrariamente duas mnemónicas aristotélicas para fundar o argumento que os silogistas arreigados à escolástica só chegarão a uma incompleta compreensão da sabedoria – e por ouvido… –, pois aos seus raciocínios falta a serenidade. Umas linhas à frente encontraremos novamente esta ideia da ausência de serenidade – de harmonia – associada ao “barroco”, mas, para já, introduza-se um outro concomitante sentido que a palavra detinha no período em que Montaigne escreveu e à qual ele não terá sido distante.


2 - Quando as ostras temem tempestades
Dezassete anos antes da publicação dos Essais, o físico português Garcia de Orta deu à estampa em Goa o primeiro tratado português sobre botânica, intitulado Coloquios dos simples, e drogas he cousas mediçinais da India […], no qual se funda as modernas significação e grafia da palavra barroco, aí utilizada como sinónimo de pérola imperfeita: no trigésimo quinto colóquio, “Da margarita ou aljofar […]”, lemos «Tudo por ser verdade porque ho aljofare que de cà vai, e as perolas he groso, e redondo, e em toda perfeiçam, e o que della vem das indias sam huns barrocos mal afeiçoados, e não redondos, e com agoas morras (…)» [Sublinhado meu.] Afigura-se-me plausível que Orta se tenha inspirado nesta passagem da trigésima quinta parte do nono livro da Naturalis Historia do historiador romano Plínio, o Velho, no qual se descreve a germinação de vários tipos de pérolas, inclusive aquelas que coalescem em deformidade por culpa do temor que as tempestades marítimas insuflam nas ostras: «Si tempestive satientur, grandescere et partus; si fulguret, conprimi conchas ac pro ieiunii modo minui; si vero etiam tonuerit, pavidas ac repente conpressas quae vocant physemata efficere, specie modo inani inflata sine corpore; hos esse concharum abortus.» [Sublinhados meus.]

É este o significado que o capelão e etimologista castelhano Sebastián de Covarrubias anotará no ano de 1611 em dois verbetes do seu Tesoro de la lengua castellana: na entrada alusiva ao aljôfar pode ler-se «Otras [pérolas] ay desproporcionadas; que no se acomodan à la forma redonda ; y a estas llamáron barruecos, quasi berruecos, porque tienen forma de berrugas. Las gruessas, redondas, lisas, y de color claro, llamaron comunmente perlas: los Romanos las llamaron vniones , quod nulli duo reperiantur indiscreti : y dellas haze Plinio vn capitulo bien notable (…)»; e na entrada própria encontramos o seguinte: «BARRVECO, entre las perlas llamã barruecos vnas que son desiguales, y dixerõse assi, quasi berruecos, por la semejança que tienen a las berrugas que salen a la cara.» [Sublinhados meus.]

Em 1712, o padre teatino estrangeirado Raphael Bluteau deu no segundo volume do seu Vocabulário Portuguez e Latino […] algumas definições complementares no verbete correspondente a barroco – e, em analogia com Covarrubias, ignora Orta e cita novamente Plínio: «BARROCO. Barrôco. Perola tosca, & desigual, que nem he comprida, nem redonda.»; poucas linhas em seguida, cita este excerto da História Natural de Plínio para corroborar uma familiaridade etimológica: «Crassescunt etiam in senecta conchisque adhaerescunt nec his evelli queunt nisi lima. Quibus una tantum est facies et ab ea rotunditas, aversis planities, ob id tympania nominantur.» Porém, do nome tímpano (ou tímbale, que vai dar ao mesmo), aqui chamado por Plínio para designar uma conformação inchada (já que, conforme o trecho, estas pérolas anormais possuem uma face convexa e uma base achatada), nunca derivaria o nome barroco empregue por Orta, nem este se encontra, aliás, sob nenhuma morfologia, no clássico texto de Plínio.


a) Metamorfose ou metaplasmo?
Com efeito, a única passagem dessa parte que incita a uma ligação entre ela e a proposta de Orta é esta, na qual o autor descreve o torpe engelhamento das pérolas envelhecidas: «Quare praecipuum custodiunt pelagiae, altius mersae quam ut penetrent radii. flavescunt tamen et illae senecta rugisque torpescunt, nec nisi in iuventa constat ille qui quaeritur vigor.» [Sublinhado meu.] A presença de «rugisque», do latim ruga, com o significado de prega ou sulco, credibiliza a hipótese etimológica covarrubiasiana de verruga, assomando até a habitual metaplasmia entre o /v/ e o /b/ e entre o /g/ e o /c/ nas palavras em latim vertidas em vernáculo peninsular. Com efeito, a palavra em latim verruca é empregue por Plínio como uma das maleitas que o sangue vertido do pescoço de uma tartaruga decapitada é capaz de curar: no décimo quarto capítulo do trigésimo segundo livro lê-se «Sunt qui testudinum sanguinem cultro aereo supinarum capitibus praecisis excipi novo fictili iubeant, ignem sacrum cuiuscumque generis sanguine inlini, item capitis ulcera manantia, verrucas. Iidem promittunt testudinum omnium fimo panos discuti; et, quod incredibile dictu sit, aliqui tradunt tardius ire navigia testudinis pedem dextrum vehentia.» [Sublinhado meu.] Não custa, pois, a conceber que Orta, inspirado pelo modelo de Plínio, baseasse o neologismo barroco na palavra em latim verruca para desenhar na imaginação uma coisa inchada e engelhada, oposta à beleza esferetérea evocada por uma pérola perfeita.