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segunda-feira, 6 de abril de 2020

O heroísmo das pessoas fracas


The Outsider, adaptação de um livro recente de Stephen King, é inscrito pela ingenuidade simultaneamente encantatória e exasperante com que, demasiadas vezes, os autores americanos tentam enxertar as suas criações em mitologias de origem europeia para fazê-las crescer com o viço mítico que alimenta o reservatório folclórico do Velho Mundo; neste caso, a criatura que perambula pelo Bible Belt, metamorfoseando-se em diversas pessoas com quem contacta de molde a predar os fracos sob essas identidades, é descrita como sendo o monstro que, através dos tempos, foi arregimentando relatos e lendas sobre o Papão — ou El Cuco, em expressão espanhola, como é tratado em The Outsider. Com efeito, quando a personagem Holly Gibney, detective contratada para descobrir pistas sobre este estranho caso, navega a páginas tantas num motor de busca de Internet por entre imagens amadoras de avistamentos de El Cuco e as pinturas negras de Goya percebe-se que existe, efectivamente, um distanciamento enorme entre a sensibilidade americana e a europeia, pois se para a primeira essa cena evocará um lastro mitológico longínquo e até desconhecido, para os olhos europeus a mesma cena tem o efeito de um duche de água fria. Quão melhor seria se os criadores de The Outsider tivessem rebuçado o monstro sob o anonimato, numa mitologia endémica, natural desta produção, sem necessidade de alistá-lo no bestiário.

No folclore e no hagiológio de Portugal, a Cuca ou Coca é, muitas vezes, uma criatura saurópside — como o Dragão que é derrotado nas festividades do feriado do Corpo de Deus, em Monção. Nos livros de O Sítio do Pica-Pau Amarelo, o escritor brasileiro Monteiro Lobato imaginou a sua Cuca como sendo uma jacaré bruxa, prima do Saci-Pererê.

Não obstante a sonoridade patusca, o nome precipita do étimo grego ‘kako”, que significa “mau” ou “maléfico”, e do qual se desprendeu a acepção excrementícia de “caca” e de “cocó”. É, por conseguinte, um nome que tem estado sempre associado ao mal, à sujidade, ao nauseabundo. Aliás, palavras como “cisma”, “consciência” e “ciência” são todas cognatas do étimo em latim “scire”, aparentado de “kako” e do étimo indo-europeu “shkei”, que também significa “excremento”.

Alheias a estas ligações etimológicas, as personagens de
The Outsider caçam El Cuco numa velhíssima gruta de infame historial e conseguem eliminá-lo com relativa facilidade, pois, para sua sorte, a criatura encontrava-se num momento de fraca forma — embora uma coda algo mercenária, martelada já a ficha técnica do último episódio se desenrolava, sugira que poderá ser produzida mais uma temporada.

Não li o livro de King, mas, pelo que conheço do seu estilo,
The Outsider assemelha-se mais a um híbrido eficaz das primeiras temporadas de The X-Files (a sobriedade antártida do tom, da cinematografia e da banda-sonora), os romances de Clive Barker (a caracterização à inglesa da psique perturbada de personagens bizarras) e a matriz narrativa de King (crónica dos medos contemporâneos da sociedade americana, um ambiente cercado pela cultura popular e os ‘underdogs’ contra as forças do Mal).

Na verdade,
The Outsider atenua algumas das características de King que enunciei acima, como as referências à cultura popular da época em que a história se situa, o que favorece o todo, tornando-o mais intemporal. No entanto, no que concerne à crónica pesadelar da actualidade, alia-se no mesmo inimigo o medo da pedofilia e o do roubo da identidade: à semelhança de It, também aqui a criatura transmuta de forma e é uma predadora de crianças — porque «são mais doces», lembrando os fãs de King que o autor tem desenvolvido a ideia de que os seus monstros provêm, em regra, do mesmo local: um abismo inter-dimensional, situado entre mundos, ninho de monstruosidades malévolas, entre o demoníaco e o alienígena. É a influência de Lovecraft, provavelmente, mas se os seus monstros espaciais se caracterizavam pela indiferença face ao humano, os de King estão totalmente interessados em nós. Na verdade, parecem viciados no humano.

É por esta via que eu considero que os monstros de King se comportam como demónios medievais e os seus heróis são representantes de uma espécie de piedade popular de pendor protestante, segundo a qual os “escolhidos” vencerão. Muitas vezes, os heróis de King derrotam o Mal por meios verdadeiramente perfunctórios, o que só pode justificar-se pelo facto de que o actor vale mais que a acção; ou seja: o Mal é derrotado, porque foi enfrentado por determinada personagem e não por outra. No confronto entre o Bem e o Mal é importante escolher o campeão do Bem. No fundo, a Fé vale mais que as Obras, numa lógica determinista puramente protestante — mesmo quando o cunho determinista é atenuado, a tónica assinala-se pela fé nas Escrituras e não na conduta. Assim, os heróis de King (e não só) acabam por ser os indivíduos mais imprevisíveis, os anti-sociais, os marginais, os imperfeitos. Uma lógica que, com efeito, já vinha anunciada na primeira epístola de Paulo aos Coríntios: «Deus escolheu propositadamente as coisas que o mundo considera loucas para envergonhar aqueles que pensam ser sábios e escolheu as pessoas fracas para envergonhar as que têm poder» (Coríntios, 1, 27).

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Medo do futuro - hoje como ontem


 
O medo é um barómetro social. Por ele são medidas as fronteiras ontológicas de uma determinada comunidade, situada num tempo em específico.

Do ponto de vista nosológico, enquanto plasma de patologias e ansiedades, o medo pouco ou nada se aparenta com aquela emoção bem conhecida, correlacional à sobrevivência, e que é partilhada por um grande conjunto de seres vivos – incluindo as plantas, que, pese não possuírem sistemas nervosos, sentem medo e transmitem-no entre si através de mensagens químicas (o pungente cheiro da relva cortada é enviado pelas folhas mutiladas, de molde a avisar todo o manto verde que está sob ameaça). Não obstante, quando se fala em medo no contexto humano, mormente dirige-se o pensamento a uma peculiar estirpe de construção intelectual, baseada no simbólico; naquilo que, em suma, não existe exteriormente à sua representação alegórica ou espiritual. Pois o homem é, provavelmente, a única criatura capaz de sentir medo de conceitos abstractos; mesmo que na origem desses receios não se excluam imagens, acções ou objectos materiais. Ora, o futuro é por mérito próprio uma abstracção.

Ao dealbar do desenvolvimento da escrita, a concepção do tempo mantida pela civilização mesopotâmica cifrava-se num cunho diametralmente oposto ao actual; pois se para nós é inato imaginar o futuro como estando à nossa frente, para os antigos mesopotâmios ele estava atrás deles. Nessa singular sequenciação temporal, o passado, por ter sido experienciado, podia ser observado através da memorização, podia ser examinado em consciência, estava palpável diante dos olhos; o futuro, invisível porque inconcretizado, situava-se atrás dos olhos. Estava-se de costas para o futuro. Assim, a civilização próximo-oriental de entre o Tigre e o Eufrates era profundamente conservadora, pois quem poderia saber que espécies de perigos e catástrofes traria o futurível que constantemente espreitava sobre o ombro? O futuro era – e é – desconhecido e o medo do desconhecido permanece como uma das mais fortes manifestações dessa emoção.

No entanto, é precipitado encerrar a questão nesse unívoco resultado, pois nesta matéria as fórmulas deixadas em aberto apontam para cálculos mais complexos. Com efeito, não será tanto o desconhecido, em si, que provoca medo, mas o potencial perigoso que trará à guisa de lastro; nesse feitio, o medo do desconhecido amiúde se corporaliza em órbita de imagos – ou mitagos – já familiares e que se consideram adversos, indesejáveis, contaminantes. No modo como uma comunidade se relaciona com o tempo e com o espaço reitera-se um longo movimento de contracção e de dilatação que constantemente absorve e expulsa conceitos e discursos numa profunda iteração identitária: no espaço exterior à comunidade estão bem definidos os monstros. Nos mais perturbantes momentos de ruptura – aqueles em que os monstros vêm de dentro – a comunidade metamorfoseia-se, vaporiza-se e sublima-se numa nova-velha comunidade que procura incessantemente recuperar a configuração originária. Nessa óptica, os contemporâneos romances e filmes de horror são, em simultâneo, galeria e vacina, pois mostram-nos a uma distância segura – a da inexistência de uma ameaça – os géneros de medos dos quais nos queremos inocular. É o barómetro social em funcionamento. Porém, a praxis não é tão contemporânea quanto isso.

Para não recuar mais que a Idade Média, observe-se que os exempla eclesiásticos, os contos morais do hagiológio e as parábolas devocionais executavam o mesmo efeito no seio de uma cristandade milenarista – e que depois do ano Mil persistiu em sê-lo. Contudo, a feição desse sentimento mudou inteiramente ao longo da Modernidade, pois o homem arrogou a tarefa de construir ele próprio o Milénio. Aliás, o género literário das utopias aparece em Quinhentos como um estilo reaccionário de literatura: num momento em que a sociedade europeia construía gradativamente os alicerces do estado moderno, os utopistas propunham o atávico e rápido retorno a uma medievalidade que, muitas vezes, era espúria e só existia nas suas cabeças. Não é à toa que as ditas utopias se situam frequentemente em ilhas inacessíveis ou em recônditas cidades fortificadas, um gesto de territorialização política de fantasias que se querem exclusórias e que reflecte, de maneira inversa, a antropomorfização daquilo que provoca o medo: antropomorfiza-se o agente do terror de molde a aplacá-lo, como se assim fosse possível chamá-lo à razão. Um exemplo cristalino desta atitude foi a criação das múltiplas seitas de flagelantes aquando do grande surto trecentista europeu de Peste Negra: romando por ruas atapetadas de cadáveres, os flagelantes talhavam a carne e vertiam o sangue para pacificar o praeternatural elemento morbígero. Não eram diferentes de nós quando hoje usamos a mesma linguagem antropomorfizante para falar do medo ligado ao clima e ao planeta (“o planeta está doente”, “a natureza está zangada”, “para salvar o ambiente temos de nos sacrificar”). A linguagem é performativa e criadora de realidades.

A importância e a sofisticação de certas obras contemporâneas de literatura e cinema que reflectiram sobre a problemática do medo do futuro são variáveis, mas dois romances de ficção científica pontificam na minha opinião como axiomáticos dos medos que têm dominado nas últimas décadas o Ocidente: The Drowned World, de J. G. Ballard, publicado em 1962, e The Sheep Look Up, de John Brunner, publicado em 1972. No livro de Ballard – que iniciou todo um sub-género da ficção científica rebaptizado recentemente de cli-fi (ficção climática) –, um evento de aquecimento global alterou o ecossistema do planeta para condições análogas às do período Triásico. Com personagens que não querem reverter a catástrofe, mas a abraçam, é a primeira distopia climática de Ballard, à qual se seguiram The Burning World (1964), sobre um mundo em que a água é cada vez mais rara, e o inquietante The Crystal World (1966), sobre uma irreversível pandemia de cristalização que mineraliza todas as formas de vida. Assentando em diferente enunciado, o romance de Brunner, publicado dez anos depois, já não elege o aquecimento global como motor da catástrofe, mas a poluição. Do ponto de vista narrativo, Brunner está menos interessado que Ballard em contar uma história dita tradicional, com início, meio e fim, preferindo uma abordagem mais impressionista, embora com personagens e espinha vertebral comuns. O resultado é uma das mais negríssimas distopias – ambientais, também – já escritas em ficção científica, perpassada por uma frieza perturbante. 

Quanto ao cinema, é admissível que os dois primeiros filmes da série Exterminador Implacável, idealizada pelo cineasta americano James Cameron, consistam nos exemplos de massas mais completos, porque têm a arte de combinar nos tropos dos filmes de acção e de terror dois grandes medos contemporâneos: o de um holocausto nuclear, que ensombrou as gerações que viveram a Guerra Fria (e que estará novamente a erguer a cabeça), e o da projectada automatização do trabalho – sobretudo, o da autonomização da máquina pelo despontar da inteligência artificial. Por este conceito sopra, aliás, um vero perfume a antigos terrores que possuem sábios ou conventículos secretos a entretecer teias maciças de conspiração, capazes de enredar o globo – pois que outra coisa não é essa inteligência artificial tornada diabólica que uma espécie de Velho da Montanha virtual?
Neste aspecto, em particular, não deixa de ser revelador do extremo egocentrismo da mentalidade hodierna que o medo do futuro continue a passar pela antropomorfização de forças ainda invisíveis e incontroláveis.



(Texto publicado originalmente no jornal MEDO: número especial temático, editado por João Paulo Cotrim e Carlos Morais José, do suplemento h do jornal Hoje Macau, por ocasião do FOLIO (Festival Literário de Óbidos), em colaboração com a Editora Abysmo.) 

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Dez anos de "Mucha"


Há dez anos, no dia 24 de Outubro, foi lançado no AMADORA BD o livro Mucha, escrito por mim, desenhado por Osvaldo Medina e arte-finalizado por Mário Freitas, iniciando a minha colaboração com a Kingpin Books.

Seis anos depois da publicação de A Última Grande Sala de Cinema, este livro consistiu num regresso à banda desenhada de horror, num enredo simbólico, partindo da premissa de Rhinocéros de Ionescu. Mucha contém ideias e imagens que figuram entre as minhas preferidas; como a cena em que um grupo de judeus polacos é obrigado por um Einsatzegruppe a escavar uma vala comum e descobre um esqueleto de dinossauro que toma pelo lendário dragão Smok Wawelski.


quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Mesa-redonda no FOLIO 2019

Gente bonita, no próximo sábado, dia 12, às 17H00, estarei no FOLIO - Festival Literário Internacional de Óbidos para participar de uma das muitas mesas-redondas e colóquios subordinados ao tema deste ano, que é O Tempo e o Medo. Ora, os meus leitores mais antigos, mas também os mais novos, sabem que este é, digamos de forma sintética, um assunto que eu conheço bem... Pois desde há vinte anos que a minha obra a ele se devota, de uma forma ou de outra.
Daí que se passarem por Óbidos, terra sobre a qual até já escrevi no contexto do medo no meu romance Lisboa Triunfante, apareçam na tenda dos editores e livreiros às 17H00 para esta mesa-redonda sobre o medo moderada por João Paulo Cotrim. Também será apresentado o jornal especial MEDO, editado por João Paulo Cotrim, e dedicado ao tema do medo que contará, entre outros textos, com um artigo da minha autoria. Venham descobrir por que é que quem tem cu tem medo.


sábado, 29 de junho de 2019

Um cronista americano


A nova adaptação do romance It, de Stephen King, estreada em 2017, evidencia o quanto este escritor americano deve a Lovecraft na tentativa de edificação de um universo negro coeso; em principal, na série de livros The Dark Tower, espécie de mapa e breviário desse mundo autoral, o arranjo taxonómico dos agentes do mal e do bem parece feito propositadamente num plano cósmico que remete para concepções lovecraftianas — especialmente na natureza extraterrestre daqueles que, poder-se-ia pensar, seriam demónios

O monstro de It, já o sabíamos do romance, é uma entidade espacial — extraterrestre, por conseguinte —, mas comporta-se tal qual um demónio das mais tradicionais concepções demoníacas assacadas da teologia: passando ao lado do facto de que não é fácil conjectuar sobre como se comportaria um extraterrestre, na literatura de bruxaria é prerrogativa dos demónios 1) conhecer as propriedades ocultas (pensamentos dos homens, inclusive) porque os seres espirituais vêem a essência das coisas, assim como 2) usar essas propriedades ocultas de modo físico, mas ilusório, de maneira a ludibriar vítimas humanas e 3) por fim consumir as almas ou, pelo menos, manietá-las. Em suma, estes são os poderes da Coisa, completa representação daquilo em que consiste um demónio, até na revelação final de que é feito de luz (éter). Com efeito, estas espécies de criaturas feitas de luz morta — deadlights, no original — são a criação mais lovecraftiana de King, pois quem olhar para essa luz ou morre ou enlouquece, um tropo desenvolvido por Lovecraft para reforçar a ininteligibilidade dos seus antagonistas extraterrestres, cujas formas arquitectadas para além da compreensão humana enlouqueciam quem as contemplava.

Porém, King não é Lovecraft: não só lhe falta uma certa petulância aristocrática que Lovecraft injectava nos seus textos e que funcionava muito bem (King é, em oposição, uma voz totalmente popular, da rua, e muito mais sentimental), como as criaturas que inventa não descolam do plano terreno — estão demasiado interessadas nas personagens humanas para que o sentimento de altivez alienígena se faça sentir. São, em suma, demónios secularizados.

Nesse aspecto, quase todos os vilões preternaturais da cultura popular dos ultimos setenta ou oitenta anos são demónios ou entidades espirituais secularizadas, postas em cenários "científicos" ou materialistas. Assim, o modo de derrotá-los é, de igual modo, secular, plebeu: em It, para regressar ao tema, o grupo de miúdos vence o vilão, obrigando-o a hibernar forçadamente, somente por ultrapassar o medo que sentem por ele. No romance a estratégia encontra-se melhor explanada e até tem um nome (o Ritual de Chüd), cifrando-se numa espécie de braço de ferro mental entre crianças e criatura, que deixa esgotadas as primeiras. No fundo é a ideia secular que "o poder está dentro de nós", atomização no indivíduo de uma ajuda espiritual tradicional. Aqui não há necessidade de introduzir conhecimento (grimórios, objectos) na luta contra o mal: basta "ter coragem". Nem o sinal da cruz pica o ponto, mesmo como mera coordenada cultural do mundo em específico no qual a acção decorre. Neste ponto, a ficção de Lovecraft conceptualiza com mais realismo a natureza humana e a natureza alienígena das suas entidades: estas não estão interessadas em dialogar connosco e nós não temos nenhuma capacidade intrínseca de derrotá-las. Lovecraft é um escritor ateu e as suas criaturas também o são! O mais perto que King andou deste conceito foi no conto The Mist, em que um rombo inter-dimensional deixa entrar na nossa esfera de existência uma macrofauna que levará em pouco tempo o ser humano à extinção (a adaptação para cinema deste conto é muito eficaz, mas o final, embora poderoso, já não comporta o niilismo lovecraftiano original).

No fundo, a minha crítica é dirigida à incoerência interna dos elementos semânticos: sou incapaz de ver na Coisa uma entidade cósmica com milhões de milhões de anos de existência. Só vejo um demónio cristão secularizado colocado num contexto secularizado de luta contra o Mal. No livro, o astigmatismo é ainda pior, porque esse contém outras entidades cósmicas, do Bem, que dão uma mãozinha para derrotar o monstro.

King brilha com grande luz é na construção de ambientes e personagens: poucas vezes se encontram personagens tão bem caracterizadas e com personalidades tão bem buriladas. O paradoxo de King é que, apesar da sua grande imaginação e capacidade inventiva, ele é bem capaz de ser um melhor escritor pós-realista, uma espécie de Faulkner para o século XXI, ponha-se nestes termos, que um escritor do sobrenatural. Este lado mais "literário" de King costuma vir à tona nos contos e nos textos de menor dimensão, como no intrigante The Girl Who Loved Tom Gordon ou nas emocionantes colectâneas Different Seasons ou Hearts in Atlantis, que contém retratos notáveis de uma América profunda, secreta e lírica. Não é à toa que dois dos melhores grandes filmes das últimas décadas sobre a América (Stand by Me de Rob Reiner e The Shawshank Redemption de Frank Darabont) tenham sido adaptações de dois contos de King de Different Seasons. O lugar de King nas letras americanas já estará garantido, precisamente, pelo seu talento de cronista do seu tempo, de intérprete do Espírito americano.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Novas rotas de medo e interdição


 A cultura de entretenimento agiliza-se em detectar renovações prototípicas nos procedimentos psicossociais das comunidades; sob esse enunciado, uma tendência que está a consolidar-se, em determinados filmes e livros de terror e de ficção científica, é a comutação do espaço, enquanto porosa fronteira do desconhecido, pela – igualmente inescrutável – imensidão virtual contemporânea; somando-se-lhe todo o costumeiro repertório de acessórios tecnológicos que a ela estão associados, como robôs, computadores, programas informáticos.

Provavelmente, a mais incontestável exteriorização desta mudança de pólo magnético encontra-se nos filmes que Ridley Scott se encontra a realizar actualmente no âmbito do mundo das personagens que concebera no filme Alien (1979): a nova grelha de referências aplicada em Prometheus (2012) e Alien: Covenant (2017) flutua como escuma sobre a nova psique global que, aceleradamente, abandona a noção de que o perigo reside sob formas extraterrestres no bioma espacial, em favor do fatalismo sentido à aproximação de ameaças procedentes de supositícios progressos nos campos da robótica e da inteligência artificial. Não deixa de ser curioso que a efeméride dos duzentos anos da publicação de Frankenstein de Mary Shelley escorregue neste momento por baixo da baia que delimita um terror do outro, à guisa de emblema do período neo-paracelsiano que atravessamos, no qual o horror homuncular se cifra como astro-rei – pois o que são os antropomorfizados cérebros electrónicos e robôs da hodiernidade, plenos de percepções, instintos e motivações puramente humanos, senão novíssimas representações do mito da concepção na retorta?

O labéu que perpassa toda a condenação moral do ofício paracelsiano sustenta-se na noção que a criação de um homem artificial – ou de uma inteligência artificial – por outro homem será sempre um empreendimento torpe e ímpio, destinado ao fracasso; mas, facto que não escapará aos observadores atentos, o processo da selecção natural depende, em exclusivo, de fracassos pontuais: leia-se, de mutações – imperfeições.
Em suma, a vida deseja a imperfeição; em última análise, nem sequer existe sem ela.

O que diferencia as diversificadas criações naturais das criações operadas por mão humana não é, como se poderia pensar, a imperfeição destas face àquelas, mas o problema de uma delineação inicial: é que no mundo sujeito à selecção natural, a forma antecede a função; no sentido que uma qualquer imprevista imperfeição numa cópia de material genético pode apresentar-se vantajosa para que, num curto intervalo de tempo, o indivíduo que dela concorra possa antecipar-se aos outros na propagação do seu próprio material genético imperfeito. Ora, no múnus da criação paracelsiana – artificial, mecânica, industrial, científica – é sempre a função que antecede as formas: não existe desenho sem objectivo, a forma subordina-se à função. Porém, na natureza, não existe nenhuma contiguidade pré-planeada ou fabricada que aproxime, a priori, objectos tão dissemelhantes como causa e consequência, forma e função. A beleza e o sucesso da criação por selecção natural reside na sua cega arbitrariedade: de facto, a forma vem primeiro – depois logo se verá o que é possível fazer-se com ela.

Na tradição esotérica, os homúnculos costumam, em regra, ser representados como tendo somente quatro dedos em cada mão: a razão para que isto aconteça relaciona-se directamente com a ideia numinosa de o número de cinco dedos ser a marca do ser humano – logo, um homem artificial, fruto da concepção laboratorial, seria imperfeito, exibindo apenas quatro dedos. Os velhos caricaturistas e autores de banda desenhada conheciam esta noção e é por isso que as personagens mais antigas, em particular homúnculos de jaez zoomórfico, como o Rato Mickey ou o Pato Donald, para restringir a amostra a algumas das mais conhecidas, só têm quatro dedos em cada mão. Pelo contrário, homúnculos actuais, como os robôs David 8 e Walter 1 dos recentes filmes de Scott, assumem uma extrema contiguidade com o molde humano – ao ponto de, no caso de Walter 1, serem capazes de digerir alimentos orgânicos sólidos, truque que, dispensado pela ausência de biologia, só se justifica pela função de mimarem, na perfeição, o humano. Na criação paracelsiana, artificial, a função precede e subordina a forma.

À medida que, gradualmente, o elemento robótico (que aqui nem sequer nada tem de orgânico, compondo-se, totalmente, de constituintes sintéticos) vai ocupando o espaço outrora reservado aos antagonistas alienígenas, compreende-se a mudança que efervesce na mente do público, habitante num mundo globalizado por canais virtuais de comunicação: já não é o mundo que é estranho, muito menos o espaço, mas os próprios canais. Estes, virtuais, ariscos, volúveis, é que são, em simultâneo, as rotas recém-descobertas e as áreas em branco povoadas por dragões.
O xenomorfo mete menos medo que o robô. Este é um poderoso sinal dos tempos.


quarta-feira, 11 de maio de 2016

Quinta sessão de Sustos às Sextas


Na próxima sexta-feira treze, a Fundação Marquês de Pombal acolherá a quinta sessão da segunda temporada do ciclo de palestras Sustos às Sextas, dedicado ao terror sobrenatural. Será a última sessão desta temporada, com a palestra O Medo na Tradição Popular Portuguesa, de Fernando Casqueira, como cerne. Destaco, ainda, o Questionário Temático (Quiz) que encerrará a sessão e no qual todo o público é convidado a participar. Não faltem: divulguem e apareçam.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Quarta sessão do segundo ciclo de Sustos às Sextas




Na próxima sexta-feira, dia 15, às 21H30, na sede da Fundação Marquês de Pombal, ocorrerá a quarta sessão deste segundo ciclo de Sustos às Sextas, evento devotado ao horror sobrenatural, nas suas diversas expressões. Do programa destaco a palestra Como Escrever Uma História de Terror em Dez Lições de António Monteiro e a inauguração da exposição de pranchas originais de banda desenhada sobre terror, comissariada por Geraldes Lino e Bruno Caetano. Divulguem e apareçam!

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Sustos às Sextas estão de regresso

A partir de 15 de Janeiro, o ciclo mensal de palestras sobre horror Sustos às Sextas está de volta à sede da Fundação Marquês de Pombal. Até Maio, o Palácio dos Aciprestes andará assombrado por tertúlias, contos e palestras, músicas, dramatizações e muitos espíritos inquietos. Confiram no programa abaixo e vejam o teaser horripilante realizado pela Thinkers, organizadora do evento, juntamente com o professor António Monteiro.




sábado, 19 de dezembro de 2015

Nova temporada do ciclo de palestras Sustos às Sextas


Daqui a menos de um mês, no Palácio dos Aciprestes, sede da Fundação Marquês de Pombal, terá início a nova temporada do ciclo de palestras Sustos às Sextas, organizado por António Monteiro, João Castanheira e Sandra Araújo. O programa desta segunda temporada, como poderão comprovar, é tão eclético quanto o da primeira. Eu lá estarei, no dia 18 de Março, para participar com uma palestra bastante heterodoxa e iconoclasta. Comecem já a estruturar as vossas agendas em órbita deste evento e, claro, divulguem: obrigado.

Entretanto, vale a pena recordar a palestra que dei no evento do ano passado: À Mercê da Medicina: Farmacologia Canibal Europeia e Portuguesa na Prática e na Cultura. O vídeo que se segue é, somente, um excerto dessa palestra, que teve cerca de duas horas de duração.




domingo, 29 de março de 2015

4ª Sessão de Sustos às Sextas (17 de Abril) com Medicina Canibal


No próximo dia 17 de Abril, às 21H30, ocorrerá a quarta sessão do ciclo de palestras sobre horror Sustos às Sextas (no Palácio dos Aciprestes, sede da Fundação Marquês de Pombal).
Charles Sangnoir, de La Chanson Noire, irá interpretar duas canções negras do seu sedutor repertório e convido-vos a assistir à minha palestra À Mercê da Medicina: Farmacologia Canibal Europeia e Portuguesa na Prática e na Cultura.
Marquem presença na página de Facebook do evento e divulguem. Obrigado: https://www.facebook.com/events/369185049933802/


segunda-feira, 9 de março de 2015

Sustos às Sextas: terceira sessão


Na próxima sexta-feira, dia 13, às 21H30, ocorrerá a terceira sessão do ciclo de palestras sobre horror Sustos às Sextas, igualmente no Palácio dos Aciprestes, sede da Fundação Marquês de Pombal (em Linda-a-Velha). O programa será composto por uma palestra do escritor português de ficção científica João Barreiros, pela inauguração de uma exposição de ilustração de diversos autores portugueses comissariada por Bruno Caetano (Easy Lab/Take it Easy) e, ainda, pela dramatização do conto de terror The Monkey's Paw do escritor inglês William Wymark Jacobs. Passem a palavra e apareçam: atrever-se-ão a desapontar os espíritos?


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Coisas


Adoro a mitologia criada em órbita da entidade extraterrestre chamada, laconicamente, "Coisa": espécie de predador cósmico, sem forma e linguagem definidas, cujo método de reprodução consiste na assimilação trófica de outras formas de vida, invadindo-lhes os corpos e criando novíssimas versões artificiais. Nos filmes de John Carpenter (1982) e Matthijs van Heijningen, Jr. (2011), a Coisa demonstra não possuir conceitos ou preconceitos de taxonomia; simplesmente, agarra no material orgânico disponível e molda corpos híbridos, desconjuntados, em que funções de membros e órgãos são trocadas ou reinventadas -- é, no fundo, a interpretação imediata, ultrapragmática, que o proteico instinto exomórfico faz dos seres vivos que vai entranhando, sem ter conhecimentos mais precisos sobre a verdadeira natureza daquilo que está a predar e, no fundo, sem preocupações a esse respeito. A Coisa é, nesse sentido, a antítese da reflexão, da planificação: é totalmente instintiva, animal, primitiva; nos poucos momentos em que exibe alguma estratégia vestigial de médio-prazo, ela está, em exclusivo, ao serviço da sua brutal sobrevivência. Não obstante, é aqui que se acha uma imperfeição que sempre me provocou alguma perplexidade; embora, uma que nunca me tenha retirado a genuína admiração que tenho pela visão de Carpenter e a fruição do filme de Matthijs van Heijningen, Jr.

O comportamento rudimentar da Coisa (o mais completo avatar cinematográfico do horror literário de estirpe lovecraftiana, híbrido de hemorroíssa com Yog-Sothoth; ou seja, a mescla do medo do contágio pelo elemento estranho à comunidade com a imprevisibilidade irascível do destino) não se compagina com o retrato que, em simultâneo, lhe é feito pelos cineastas, enquanto ser cultural e tecnológico com aptidão de, aparentemente, pilotar um intrincado veículo intergaláctico até à Terra; logo, ser criatura civilizacional, com percurso e projecto históricos (vulgo, que vive no tempo, em vez de viver no momento). Para mim, é uma estranheza análoga à de descobrir-se a existência de uma espécie de ténia capaz de edificar estruturas inorgânicas (ou orgânicas...). Contudo, ao procurar informações adicionais sobre esta prequela do filme de Carpenter, percebi, com agradável surpresa, que uma inquietação mais ou menos parecida passou pela cabeça dos criadores do filme.

É que o final original de The Thing, de 2011, previa que a protagonista Kate Lloyd (paleontóloga interpretada por Mary Elizabeth Winstead) descobrisse no interior da velhíssima nave espacial da Coisa (despenhada há milhares de anos no Antárctico e aí conservada no gelo) que essa espécie, afinal de contas, era apenas uma entre muitos organismos recolhidos através do universo para fins de pesquisa científica por outra espécie, inteligente e civilizada: a prová-lo estariam os corpos mortos dos pilotos, eliminados pela Coisa quando este animal se soltou do invólucro que o mantinha prisioneiro, provocando dessa forma a queda precipitada da nave. Teria sido um final estupendo para um filme que, em geral, consiste numa boa prequela/homenagem ao filme de Carpenter, faltando-lhe, evidentemente, a atmosfera angustiante e o sufocante niilismo lovecraftiano que nesse título estão presentes com uma força imensa. A razão pela qual este final foi rejeitado pelos produtores e encenado outro desfecho menos conseguido ocultar-se-á junto das razões que estiveram na decisão de substituir sem justificação provável a totalidade dos efeitos especiais animatrónicos por efeitos visuais gerados digitalmente, o que rouba muita da autenticidade (e desconforto) que fizeram do filme de Carpenter uma obra visionária.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Sustos às Sextas: segunda sessão na próxima sexta-feira 13


Na próxima sexta-feira, dia 13, a Fundação Marquês de Pombal (Palácio dos Aciprestes, em Linda-a-Velha) acolherá às 21H30 a segunda sessão do ciclo de palestras sobre horror Sustos às Sextas, na qual a tónica será colocada sobre o cinema de terror, cortesia dos convidados Rodrigo Guedes de Carvalho, Tiago Guedes e Frederico Serra. Destaco que esta sessão consistirá, ainda, na última oportunidade de verem a exposição de fotografia Da Pedra aos Ossos: Observação do Limiar da Infinitude, de Gisela Monteiro. Passem a palavra e não faltem: os fantasmas esperam, amaldiçoados, por vós.





quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Ciclo Sustos às Sextas + Inauguração da exposição «Da Pedra aos Ossos»



Na próxima sexta-feira, dia 16, às 21H30, inaugurar-se-á a primeira edição do ciclo de cinco palestras sobre horror, intituladas Sustos às Sextas -- sempre às sextas-feiras à noite no Palácio dos Aciprestes (sede da Fundação Marquês de Pombal, em Linda-a-Velha).

Esta primeira edição contará, entre outras interpretações, com uma palestra de Ana Paula Guimarães, intitulada O Terror Sobrenatural e a Literatura Popular em Portugal, e com a inauguração da exposição fotográfica Da Pedra aos Ossos: Observação do Limiar da Infinitude de Gisela Monteiro.
Entre túmulos de mármore, flores sepulcrais e capelas de ossos escondem-se caveiras que nos observam, silenciosas, com órbitas vazias. Em dezanove imagens, a preto-e-branco, Gisela Monteiro convida a olhar com novidade essas caveiras - de pedra e de osso - que nos esperam na Morte e a interrogarmo-nos sobre a efemeridade da Vida Humana.
Agradeço a vossa presença e a vossa divulgação.
 
 
 

sábado, 13 de dezembro de 2014

Programação do ciclo de palestras sobre horror «Sustos às Sextas»




Partilho convosco a programação do ciclo de palestras sobre horror Sustos às Sextas: a primeira sessão é já no próximo dia 16 de Janeiro e, como podem ler na imagem em anexo, será composta por, entre outras actividades, uma palestra de Ana Paula Guimarães, intitulada O Terror Sobrenatural e a Literatura Popular em Portugal e pela inauguração da nova exposição fotográfica de Gisela Monteiro, intitulada Da Pedra aos Ossos: Observação do Limiar da Infinitude.

Excelentes razões para se dirigirem ao Palácio dos Aciprestes (Fundação Marquês de Pombal), na Quinta dos Aciprestes, em Linda-a-Velha, para uma noite que se augura admirável. Agradeço a vossa presença e a divulgação.