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terça-feira, 12 de novembro de 2019

Lisboa Triunfante...


...numa montra do Chiado.
Onze anos depois perdura o sentimento de ter-se sintonizado durante a escrita a psique da própria cidade.

 

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Dez anos de "Lisboa Triunfante"


 
Fez ontem dez anos que foi lançado, no fórum da loja FNAC do centro comercial Colombo, o meu romance Lisboa Triunfante (Saída de Emergência). Passado esse período, penso que o tema principal do livro, em vez de ser a cidade de Lisboa, como sempre considerei, é, na verdade, o tempo — o que é, como nos relacionamos com ele, de que modo somos transformados pela sua acção. Lisboa é a caixa de Petri dessa análise à nossa relação com o tempo; uma análise que, como é sabido por quem leu, se assume com a maior duração temporal possível. Só a Raposa e o Lagarto não vêem o tempo a passar por eles: quem vive nas alturas percebe o tempo com maior velocidade, diz a Física — vivendo num andar superior da existência, ambos vêem o tempo tão depressa, que é como se estivessem eternamente na mesma coordenada. É por isso que tanto gostam de imiscuir-se nos nossos assuntos: o ser humano oferece-lhes realidade.

terça-feira, 26 de abril de 2016

Redescobrindo a Rua Nova dos Mercadores


No ano passado foi editado um excelente livro sobre a quinhentista Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa, intitulado The Global City. On the Streets of Renaissance Lisbon, editado por Annemarie J. Gschwend e Kate J. P. Lowe (Paul Holberton Publishing). Nesse actualizado e apurado volume pode ver-se, no capítulo "Reconstructing the Rua Nova: The Life of a Global Street in Renaissance Lisbon", de Annemarie J. Gschwend (pp. 101-119), diversas primorosas reconstruções digitais da Rua Nova, feitas por Laura Fernández-González e Harry Kirkham, das quais mostro aqui dois exemplos. Escolhi essas imagens, porque me deixaram emocionado: em primeiro lugar, por consistirem em perclaras janelas para o passado de Lisboa, cidade a cujo estudo tenho devotado tanto labor e amor; em segundo, porque são instantâneos perfeitos da cidade que imaginei quando escrevi os meus romances Lisboa Triunfante e O Evangelho do Enforcado. Baseei as minhas descrições da Rua Nova em iconografia e relatos de época, mas observar como estas recentes reconstruções digitais da Rua Nova se aproximam muitíssimo do que escrevi é comovedor. Assim, para recordação ou descoberta de leitores e amigos, deixo aqui umas transcrições dos meus romances, ilustradas pelas reconstruções digitais da Rua Nova.

«Apesar da abundância de gente que enchera a arena do Terreiro do Paço para ver o combate dos colossos, a Rua Nova dos Mercadores estava pejada de pessoas aquela hora. O mercado da hortaliça e da fruta, mais o do pão, enchiam-se de citadinos que queriam comprar o maior número possível de alimentos antes que os preços voltassem a subir; os novos-ricos saíam e entravam nas joalharias e das ourivesarias, ora para comprar, ora para penhorar. A vozearia de comerciantes e clientes ecoava pelas arcadas harmoniosas que serviam de lojas e sustinham os edifícios de três andares; nas paredes coloridas podia ver-se palavrões e caricaturas garatujadas a carvão e giz. A estrada de terra batida estava atulhada de detritos e emporcalhada pela água suja que as escravas despejavam para o chão, mas em nenhum lado o pivete era pior que na praça e no açougue – era impossível não passar pelas bancadas do peixe e da carne sem ficar sujo de sangue e escamas. Vendilhões ambulantes furavam caminho entre os indivíduos, incluindo os magríssimos mestiços do Norte de África que deambulavam com um pequeno forno de ferro à cabeça e assavam línguas de borrego por três reais e meio; traziam-nas dentro de um saco que levavam as costas, mas também cozinhavam a carne e o peixe que os clientes compravam no mercado. Quando o elefante invadiu a rua ninguém deu por ele até se ouvirem os gritos das primeiras pessoas a serem empurradas.»
(In SOARES, David, Lisboa Triunfante, Parede, Saída de Emergência, 2008, pp. 268-269.)

«Casas de pedra e madeira erguiam-se voltadas para o rio Tejo, tão tortas quanto as próprias elevações sobre as quais se equilibravam; em direcção à linha da água, a pouquíssima distância das muralhas coroadas de líquenes, as ruas estreitas tornavam-se exíguas e a imundície sedimentava-se em estratos graúdos que encapotavam o chão de terra batida. Algumas artérias de maiores dimensões, como a eritematosa Rua Nova, possuíam pavimentos; mesmo assim, se apresentassem uma cota mais elevada, os caminhos calcetados costumavam ser cobertos com areia para que as ferraduras das bestiúnculas não deslizassem nas lajes de pedra. O barulho era ininterrupto: sinos e chocalhos vascolejantes, guinchos das rodas de carroças e carretas, cerca de quarenta mil pessoas a conversar, a berrar e a rir. Baratas saltavam de frinchas. Cães bebiam os próprios reflexos em poças de água choca. Homens agarravam em copos de vinho.
(…)
'A alma é um mecanismo, sujeita aos fins para os quais foi criada', pensou Nuno, ao caminhar sozinho pelas ruas de Lisboa, pela primeira vez em cinco anos. 'Essa é uma verdade que deve ser levada muito a sério.' O Sol forte magoava-lhe a vista, mas que dor tão doce era essa. Como mel – e tão dourada quanto ele. 'Acho que… que vou passar na Rua Nova.'
Encontrou uma nova Rua Nova, pintada de tons quentes e cheia de casas soberbas, suportadas por arcadas que ainda luziam dos polimentos; o pavimento era o mesmo, contudo – sujo como o fundo de um barril. Observou os rostos dos indivíduos como se fossem criaturas de outro mundo: até eram, pois o mundo dele ruíra com a velha rua e com o regedor.
Aquela Lisboa e aquele tempo não lhe pertenciam.
Pôs-se de frente para o sitio onde ficava o seu armazém e descobriu que fora ocupado por uma nova casa. Passou por baixo do arco e olhou para cima: viu um pombo a dormitar em cima de um capitel; a sombra era fresca e o ar, recheado de ruídos cristalinos, cheirava a fruta fresca.
'Como é que posso voltar a ser um pintor?', pensou Nuno, pousando a mão num pilar e sentindo a pedra fria. 'Estive separado da minha mão durante cinco anos…' Olhou para o fundo da rua apinhada de gente. 'Como é que vou recuperar os jeitos dessa vida?'»
(In SOARES, David, O Evangelho do Enforcado, Parede, Saída de Emergência, 2010, pp. 74-75, 337.)




quinta-feira, 26 de junho de 2014

Sobre a Peçonha Branca - em «Lisboa Triunfante»

 
Um excerto do capítulo «A Lição de Arquitectura», do meu romance Lisboa Triunfante (Saída de Emergência, 2008). Neste trecho, inserido no romance em nota de rodapé, mas parte integrante da narrativa – em Lisboa Triunfante todas as notas de rodapé são falsas e consistem em enredo –, observa-se a obra do filósofo fictício Binmarder da Silba, que, no romance, é um heterónimo fantasmático do verdadeiro poeta e cronista quinhentista português Francisco de Sá de Miranda. Binmarder da Silba cruza, ainda, duas personae literárias: o escritor quinhentista português Bernardim Ribeiro e De Selby, o filósofo fictício inventado pelo escritor irlandês Flann O’Brien no romance The Third Policeman. Nesse livro, De Selby, filósofo preferido da personagem principal, aparece apenas nas profusas notas de rodapé e, às tantas, o leitor descobre que ele sonha em destruir o mundo em nome de Deus com uma substância misteriosa, chamada D.M.P., por ele engendrada. Existe, assim, um paralelo entre De Selby e da Silba, por via da Peçonha Branca: droga com a qual Sá de Miranda, em Lisboa Triunfante, se intoxica para escrever e para se relacionar sexualmente com a prostituta Aurélia. A Peçonha Branca foi uma verdadeira droga muito popular na Lisboa Quinhentista e cujos efeitos Sá de Miranda testemunhou e registou. No trecho que se segue, o fictício da Silba conjectura sobre a origem da Peçonha Branca – droga que, em rigor, ainda não se sabe a origem e a forma:

Um artigo muito raro do filósofo Binmarder, publicado pela primeira vez no raríssimo Novas Horas Douradas (1487); incunábulo mais antigo que o Tratado de Confissom (impresso em Chaves no ano de 1489 e, erroneamente, apontado como sendo o mais antigo livro impresso em língua portuguesa). Num estilo proto-humanista, que rejeita a escolástica e antecipa os melhores trabalhos de André de Resende e Garcia da Horta, o visionário Binmarder ousa trazer para a filosofia a tradição satírica dos trovadores goliardos; o que, de certo modo, é a pedra basilar do estilo humanista, já que a glória das letras não passa de um substituto da antiga nobreza cavaleiresca. Enquanto escritor – e filósofo – Binmarder tece nos seus ensaios uma filigrana vaidosíssima que se preocupa em glorificar Minerva e Mercúrio; ou seja: o Intelecto, na pele dos pensadores, e o Comércio, na pele da nova classe burguesa. Neste ensaio sobre, precisamente, a branqueza da peçonha branca, ele coloca a Razão acima do Sentimento para perceber como os efeitos do estupefaciente mais popular do tempo dele estão relacionados com a propriedade principal que é a cor. Transcrevo de “A Branqueza da Peçonha”, retirado de Novas Horas Douradas de Binmarder Da Silba (Vol. II, pag. 157):

«O autor anónimo de O Atlas do Mal, livro que considero a primeira análise metafísica sobre a Sátira porque ao escarnecer dos meus ensaios satíricos ele está, enfim, a julgar esse género literário. A melhor constatação que retiro da leitura do texto enfadonho de O Atlas do Mal é que o autor não tem sentido de humor. Em primeiro lugar, ele acusa-me de ser um viciado em peçonha branca (!) e que a substância querida não só é responsável pela minha péssima prosa (aos olhos dele) como, ainda, a causa da minha fealdade (!!) e dos meus problemas de gota (!!!). Gostava de esclarecer que não sou um viciado. Sou um utilizador, porque a dita droga não rouba o ânimo para me dedicar a outro tipo de tarefas que não sejam o consumo (tarefas como escrever). Não é o local indicado para discorrer sobre a origem farmacológica da peçonha branca, misto do Vegetal e do Mineral, nem do intrincado processo através do qual ela se adapta ao dispêndio humano. (Basta dizer que, de acordo com as crónicas apócrifas de João de Barros - A Ásia Oculta –, toda a peçonha branca que se encontra disponível neste momento provém de um lote imenso que foi produzido há mais de trinta anos na Índia. O motivo da quebra de produção poderá ser a extinção das Centopeias Gigantes do Ganges, bizarros animalejos aquáticos que eram usados pelos fabricantes para pisotear as pétalas da flor da peçonha até estas se transformarem num pó fininho. A extinção das criaturas é justificada com uma inesperada intolerância à água conspurcada pelos indígenas que nela se banham amiúde.) O que me interessa é precisar o modo como a branqueza da peçonha é ela mesma um factor decisivo no modo como afecta o peçonhento (aquele que fuma ou ingere por outros meios – conheço, inclusive, um grande senhor do nosso Reino, que toma a peçonha por via anal com clisteres). A cor branca é, em muitas culturas, sinónimo de beleza ou de pureza. Ao transpor esse ideal para a actividade do peçonhento é legítimo afirmar que a cor não só é uma garantia que o material consumido é puro como a própria prática de o consumir é benta: purificada – e espécie de renúncia ascética ao alimento ordinário por outro mais espiritual (porque comunica com o sentido da visão interior). Os deuses não comem senão ambrósia e o peçonhento sabe que a satisfação que o pão oferece ao esfomeado de comida nada é comparada com o sentimento de satisfação que a peçonha presenteia ao esfaimado de sonhos! Então qual é a simbologia que esconde a flor branca e a peçonha magnífica que é seu sucedâneo? Que grande milagre é (ou era…) realizado pelos milhares de pezinhos das Centopeias Gigantes do Ganges? O que é que elas faziam? Pisavam as pétalas, somente? Ou possuíam um segredo mais elevado como o das abelhas laboriosas? Por que motivo desapareceram? Saberiam demais? Qual o segredo máximo da peçonha branca? É essa resposta que o peçonhento almeja conhecer quando se intoxica: a fé que a generosidade imensa da Natureza, expressa sempre nos feitios mais subtis, lhe mostre o real sentido do acto ao qual é – porque não dizê-lo? – misticamente orientado. Não se trata de preencher o tédio desta vida cada vez mais arreigada do pensamento com novas formas de arrumar as ideias: é buscar na comunhão com a substância secreta a raiz de uma essência! Não anda Sua Majestade em busca do Reino do Preste João? Se tomasse peçonha branca iria encontrá-lo mais depressa, de certeza. Ontem dei peçonha branca ao meu gato. Acho que ele gostou, mas terá compreendido a essência? E se ao tomarmos peçonha branca perdemos aquilo que faz de nós homens e começamos a ser mais como as centopeias que devem, sem dúvida, ter deixado algo de seu na mistela? (Pensem que uma delas escorregava e caía. Acham que a produção parava para que a ajudassem a levantar? Claro que não! Seria, isso sim, impiedosamente espezinhada.) Ou a ser mais como a própria flor que constitui o produto? Então que dizer sobre a terra e a água que nutriram a planta? Onde é que paramos? Em DEUS!... Deus é uma centopeia. Ou uma flor. Não há meio-termo. E tomar peçonha branca é uma experiência de comunhão com Ele.»

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Autógrafos na Feira do Livro de Lisboa no próximo Domingo


Os vencedores do desafio relacionado com o meu romance Lisboa Triunfante já foram anunciados. Entretanto, aqui fica, também, uma foto minha, tirada enquanto escrevia esse romance, algures no primeiro semestre de 2008.
É uma boa imagem para lembrar que no próximo Domingo, dia 15, estarei na Feira do Livro de Lisboa, junto ao pavilhão da distribuidora Europress, adjacente à Praça Amarela, entre as 17H30 e as 19H00, para assinar os meus livros, os de prosa e os de BD. Apareçam.

Vencedores do desafio «Lisboa Triunfante»


Os vencedores do desafio que lancei esta semana, relacionado com o meu romance Lisboa Triunfante (Saída de Emergência, 2008), foram os leitores Inês Duarte (Torres Vedras), Marta Mortágua (Alcabideche), Inês Raquel (Agualva) e Humberto Morais (Beja). Parabéns - e, como diz a Raposa, atrevam-se a imaginar.

(Inês Duarte)

(Marta Mortágua)

(Inês Raquel)

(Humberto Morais)

Em breve, receberão pelo correio um exemplar do disco Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012), escrito e interpretado por mim e musicado por Charles Sangnoir (de La Chanson Noire), que, tal como Lisboa Triunfante, consiste numa autópsia psicogeográfica sobre essa cidade.


Entretanto, informo todos os leitores que no site das edições Saída de Emergência está disponível para download gratuito um companion que escrevi sobre Lisboa Triunfante, no qual discorro com profundidade - e sem spoilers - sobre as temáticas e escolhas que nortearam a escrita desse romance: para o efeito, basta que se registem, também gratuitamente, no site da editora para descarregar o ficheiro nesta ligação.


segunda-feira, 9 de junho de 2014

Passatempo «Lisboa Triunfante» com a revista Sábado


Na próxima quinta-feira, dia 12, a revista Sábado irá dar aos seus leitores a oportunidade de levarem para casa o meu romance Lisboa Triunfante (Saída de Emergência, 2008).
Nesse sentido, desafio os meus leitores com o seguinte passatempo:

- os três primeiros leitores que me enviarem no dia 12 uma selfie sua com o livro irão receber um disco original autografado do meu spoken word Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment, 2012).

Para o efeito, basta enviarem as selfies, mais as vossas moradas, assim como uma autorização por escrito em como posso divulgar as imagens aqui no blogue e na minha página de Facebook, para o seguinte endereço de email: cadernosdedaath@gmail.com



sábado, 7 de junho de 2014

«Lisboa Triunfante» com a revista Sábado


A partir da próxima semana, a revista Sábado irá dar aos seus leitores a oportunidade de levarem para casa um romance publicado pelas edições Saída de Emergência. Até ao dia 3 de Julho, a Sábado irá disponibilizar quatro romances diferentes por semana, sendo que no dia 12 de Junho (próxima quinta-feira) um deles será o meu Lisboa Triunfante (2008).

Agora que decorre a Feira do Livro de Lisboa, esta iniciativa é apenas mais outra excelente oportunidade para (também a um preço muito simpático) os leitores que ainda não conhecem Lisboa Triunfante o levarem para casa. A Raposa e o Lagarto agradecem.


sexta-feira, 30 de agosto de 2013

«Lisboa Triunfante» na Noite de Literatura Europeia


No próximo dia 21 de Setembro (sábado), das 18H00 às 23H00, irá ocorrer na cidade polaca de Wroclaw uma edição do evento Noite de Literatura Europeia, na qual o público amante de literatura terá oportunidade de ouvir a leitura de excertos das obras de diversos escritores europeus, entre os quais Philippe Claudel (França), Colm Tóibin (Irlanda) e Zadie Smith (Inglaterra). Portugal estará representado por mim. Um dos mais prestigiados actores polacos, Bartłomiej Topa, lerá um excerto do meu romance Lisboa Triunfante (Saída de Emergência, 2008), que consiste nas primeiras dez páginas do terceiro capítulo "O Reino do Sol".


A Noite de Literatura Europeia de Wroclaw terá lugar no complexo comercial e artístico Passagem Pokoyhof (para quem estiver na vizinhança, a morada é a seguinte: ul. Sw. Antoniego 2-4)
Envio um agradecimento especialíssimo a Milka Jankowska pelo gentil convite e Jakub Jankowski pela excelente tradução para polaco que fez do meu texto: dziękuję.


Os homens de aço (cirúrgico)


O número de Setembro da revista LOUD! (para a qual escrevo a crónica bimestral Consultor Funerário) é, já, uma edição histórica, em virtude da entrevista que publica nas suas páginas centrais, com Jeff Walker (vocalista e baixista) e Bill Steer (guitarrista), da banda inglesa Carcass. Estreados em 1988, com a edição do disco Reek of Putrefaction, os Carcass foram, em conjunção com os Napalm Death (com os quais Steer também tocou), os pioneiros da sonoridade apelidada de Grindcore: aliança de elementos Metal, Punk e Jazz (o característico blast beat que, hoje, se associa, de imediato, aos estilos mais extremos de música, já era executado pelos bateristas de Jazz) que, com rapidez, se tornou um dos estilos metálicos mais plásticos e receptivos à experimentação com influências musicais muito distintas. Esse primeiro disco, prejudicado por uma produção muito fraca, mostrava, contudo, um grupo com uma personalidade incomum e tornou-se um favorito do programa de rádio da BBC Peel Sessions, do mítico apresentador John Peel. Ainda assim, poucos poderiam ter previsto a influência e a importância que o terceiro disco da banda, Necroticism - Descanting the Insalubrious (1991) iria exercer sobre o espectro das sonoridades mais extremas.

Em Fevereiro de 1991, estreou nos cinemas o filme The Silence of the Lambs, obra perturbante que revolucionou, totalmente, a cultura popular: um efeito imediato foi a aceitação pelo mainstream de ideias e personagens muito macabras que, até à data, eram coutada exclusiva da ficção de horror e de suspense, seguindo-se a instauração de uma constante estética umbrosa e sóbria, presente até hoje em produções visuais (desde filmes, séries televisivas e vídeos musicais). Editado em Outubro de 1991, Necroticism - Descanting the Insalubrious foi o The Silence of the Lambs do Metal: em 2000, a revista Terrorizer classificou-o como sendo o disco de Metal mais importante da década de 90. Com efeito, tanto The Silence of the Lambs como Necroticism - Descanting the Insalubrious demonstram o quão a cultura contemporânea, tanto nas artes como no entretenimento, deve às imagens e às harmonias mais extremas, provenientes do universo do horror. O terceiro disco de Carcass é, de facto, uma obra tocada pelo génio, que gerou um sem-número de epígonos e imitadores.

Mas os Carcass estão de volta (somente Walker e Steer pertencem à formação original), passados dezassete anos desde a edição de Swansong, com um inesperado novo disco, que será editado a 13 de Setembro: Surgical Steel. A sua capa evoca, directamente, a do EP Tools of the Trade (1992), um dos meus registos favoritos da banda (a seguir a Necroticism - Descanting the Insalubrious), e a música Captive Bolt Pistol que, entretanto, foi disponibilizada, é, inequivocamente, um tema fresco que não soa a plágio do passado, nem a homenagem póstuma. É um disco que aguardo com muita expectativa, porque os Carcass sempre foram uma das minhas bandas preferidas (ouvi a cassete original - naquele tempo ainda se compravam cassetes - de Symphonies of Sickness até à exaustão): os meus leitores que são fãs desta banda terão, certamente, dado pela pequena homenagem que lhe fiz na página 195 do meu romance Lisboa Triunfante (Saída de Emergência, 2008), com a escrita do pequeno interlúdio em verso Matéria Médica, Pelo Doutor Jacob de Castro Sarmento (à maneira dos ilustres cirurgiões Jeffrey Walker e William G. Steer de Nottingham).

Convido-vos, pois, a lerem a entrevista destes cirurgiões na LOUD! de Setembro.


 


segunda-feira, 1 de abril de 2013

Tese sobre «Lisboa Triunfante»

(«Como a Morte se Tornou Perpétua», ilustração de Ana Maria Baptista para o capítulo «A Terra das Serpentes» do romance Lisboa Triunfante.) 

O ano passado fui contactado por Ana Maria Baptista, aluna do curso de Ilustração Artística promovido pelo Departamento de Artes Visuais da Universidade de Évora e pelo Departamento de Artes Gráficas do ISEC - Instituto Superior de Educação e Ciências, e por ela entrevistado sobre o meu romance Lisboa Triunfante (Saída de Emergência, 2008), no âmbito da realização da sua tese de mestrado de ilustração artística sobre esse livro. Fiquei muito satisfeito pelo seu interesse em escolher uma obra minha para fazer a tese de mestrado e, evidentemente, respondi às perguntas. Entretanto, a tese, intitulada O Imaginário Gótico na obra literária Lisboa Triunfante de David Soares, foi defendida e a Ana já é mestra: parabéns, Ana, pela conclusão do teu mestrado - que o olhar companheiro da Raposa siga, protector, o teu percurso!

Graças à generosidade da Ana, que me deixou partilhar convosco as perguntas que me fez, aqui fica a entrevista para vossa leitura e apreciação.

Entrevista a David Soares

Ana Maria Baptista - Se te apresentasses a alguém como escritor, mas que não tivesse conhecimento sobre a tua obra, o que dirias?

David Soares - Diria que escrevo romances meticulosamente pesquisados e complexos, que versam sobre temas históricos e ocultismo, cujo universo autoral se inclui no mundo do Fantástico, porque escrevo sobre assuntos que são invisíveis e inacessíveis para a dita realidade que vemos todos os dias. Mas não me encaixilho em nenhuns formatos de género pertencentes ao Fantástico. Eu estou no Fantástico em virtude do meu universo autoral.

AMB - Qual foi a obra que mais gostaste de escrever?

DS - Todos os livros me dão o mesmo gosto a escrever, mas, neste momento, o meu preferido é Batalha, porque encerra com elegância as minhas premissas autorais: uma narrativa complexa, com muitos níveis de leitura; linguagem luxuriante e desafiante; a influência do oculto e do hermetismo; e a busca pela transcendência. Também gosto muito de Lisboa Triunfante, porque ainda mantenho a crença de que ao escrevê-lo contactei mesmo com "algo" misterioso. Aliás, já várias vezes pensei em voltar ao universo de Lisboa Triunfante, porque ainda tenho muito que contar em relação a ele.

AMB - Qual/is o(s) livro(s) que mais gostaste de ler?

DS - O meu livro preferido - e aquele que considero o melhor livro do mundo - é Darconville's Cat de Alexander Theroux. Que um escritor seja capaz de ler Theroux, em especial este título, e ter coragem para continuar a escrever é uma grande prova de coragem e de talento, porque é um romance praticamente inultrapassável. Nos Estados Unidos, em 1981, quando foi editado, vendeu cerca de quinze mil exemplares e foi considerado um fracasso de vendas, embora tenha sido nomeado para o National Book Award. É a diferença entre o mercado norte-americano e o nosso: lá, quinze mil exemplares são um fracasso de vendas, um número residual; cá, seria como ganhar o Euromilhões. Nesse sentido, como é possível um autor português, que, em média, vende cerca de três mil exemplares, usar os seus números para impressionar um editor estrangeiro? 

AMB - Qual o teu método preferido para começares a escrever um livro?

DS - Não tenho método. As ideias, ou melhor, as premissas das ideias, surgem-me já formadas na cabeça; e quando são boas o suficiente para serem desenvolvidas, decido que, muito bem!, tenho livro. Em essência, as ideias têm origem na ruminação e no cruzamento das minhas diversas leituras: livros de história, de divulgação científica, filosofia, ensaio, etc., e, depois, vou rodando-as na cabeça, adicionando-lhes material que pode ou não ser adequado, e, em seguida, quando já tenho uma história sólida em mente, com um enredo definido, dactilografo-a. De maneira geral, a escrita de um romance passa por dois períodos: o da investigação sobre o assunto e a da escrita. A da escrita é mais rápida, porque só começo a escrever quando tenho tudo muito bem estruturado e delineado. Não gosto de improvisar, porque, na maioria das vezes, o improviso é sempre mau. De qualquer das formas, se decidir improvisar, tenho uma rede de segurança muito forte que me impede de fazer asneira. Em síntese, na fase da escrita, escrevo o dia inteiro e só paro para comer e dormir; depois, no dia seguinte, releio o que escrevi e faço cortes e mudo o que me parece mau. Os cortes que faço têm como objectivo manter íntegro o tom da história: o tom da história é muito importante para mim, porque é a alma do livro. Cada livro tem um tom diferente e enquanto se escreve o tom tem de ser constantemente corrigido para garantir que o livro mantém uma identidade própria. O tom do livro relaciona-se com a voz autoral, mas é uma coisa diferente. A voz autoral é aquilo que agarra o leitor: o leitor quer ler uma determinada voz autoral e é por isso que gosta mais de uns autores do que outros, mas o tom é diferente. O tom de Lisboa Triunfante é diferente do tom de Batalha, por exemplo, mas a voz autoral é a mesma, com as mesmas preocupações, as mesmas interrogações.

AMB - Como começou a tua inspiração para a obra Lisboa Triunfante?

DS - Lisboa Triunfante é um livro muito complexo. Tão complexo que, no início, até pensei em dividi-lo em dois volumes, mas depois achei que isso seria um disparate e percebi que a história podia ser contado num livro só. Em primeiro lugar, quis contar um épico sobre Lisboa, desde as suas origens até à contemporaneidade, e, a outro nível, quis explorar universos que se relacionam com sistemas de crença, como a religião, a política, a dicotomia entre os sexos masculino e feminino... Há capítulos mais políticos do que outros, uns mais religiosos do que outros... As figuras da Raposa e do Lagarto reflectem dois pontos de vista civilizacionais diferentes, um mais atávico, outro mais sofisticado. É um romance no qual a história de Lisboa serve de base para eu falar de muitas coisas diferentes.

AMB - Pode dizer-se que Aquilino Ribeiro é um escritor de referência para a tua obra em geral?

DS - Não. Gosto muito dos seus livros, mas não é uma referência para a minha obra. Porém, admiro muito a sua coragem literária. Lembro-me de ouvir falar dele pela primeira vez no ensino básico e da professora dizer na aula que era um escritor muito difícil, "de dicionário", e que não gostava dele; mais tarde, quando conheci a sua obra, percebi que a professora não tinha razão. Aliás, se um livro não servir para nos desafiar a enriquecer o vocabulário... Há quem prefira textos simples, com palavras que já conhece, mas eu prefiro textos complicados com vocabulário desafiante. Aliás, eu leio dicionários como quem lê romances: começo no A e acabo no Z, por isso... Para mim, são livros apaixonantes. E o Aquilino desafia... Quando se tem cerca de dez ou doze anos de idade, estarmos a ler textos com palavras como "apreensor" e "esfondílio", como A Casa Grande de Romarigães ou As Terras do Demo, isso desafia muitíssimo. De maneira que o amor pelas palavras é uma característica em comum que tenho com ele, mas não vejo isso como uma influência.

AMB - Porquê iniciar a narrativa no Hotel Ritz?

DS - As personagens que aparecem no prólogo, a Paula e o Russel, pertencem a uma classe social alta, com muito dinheiro, e achei que o bar do Hotel Ritz seria um local credível para o encontro deles nessa parte da narrativa. Ambos são coleccionadores de objectos que custam quantias muito elevadas. Conheço pessoas como eles, tanto como a Paula e como o Russel, e penso que o retrato que faço desse mundo, embora ao serviço da narrativa, não deixa de assemelhar-se com aquilo que se passa na realidade dos coleccionadores, dos leilões de livros... Conheço pessoas que, sem serem milionários, como a Paula e o Russel, vão à mesma comer e dormir a sítios muito caros e muito requintados, nem que seja uma única tarde ou uma única noite. São o que eu chamo de coleccionadores de momentos e, à conta deles, tenho ouvido falar de sítios estranhíssimos que nem fazia ideia que existiam. O bar também tem, como é evidente, um significado simbólico, mas, de maneira geral, é um local sofisticado para um encontro de personagens sofisticadas.

AMB - Preferes a Raposa ao Lagarto ou vice-versa?

DS - A Raposa preferiu-me. Desde que escrevi o romance, vejo raposas em todo o lado, todos os dias, quando menos estou à espera. Se fosse crente, diria que despertei a atenção de um arquétipo que me quer fazer seu cronista. Neste momento, escrevo e, na secretária, tenho um pin com uma raposa, que encontrei, por completo acaso, numa barraca de uma feira que visitei este Verão. A Raposa está comigo: não sei se para o bem ou para o mal, mas tive de habituar-me a isso.

AMB - O rapaz que aparece no capítulo «A Terra das Serpentes», e que é tentado pelo mensageiro do Homem Verde a vingar-se da chefe da sua tribo, tem nome?

DS - Não. Às vezes, não gosto de dar nomes às personagens, em principal às dos contos. Torna-as demasiado conspícuas. Existem coisas mais importantes nos livros que os nomes das personagens.

AMB - Quanto aos contos e lendas que introduzes em Lisboa Triunfante, por que o fizeste e onde te inspiraste para contar essas histórias?

DS - Tudo aquilo que está em Lisboa Triunfante está ao serviço da história, todas as alegorias, todos os níveis de sentido. Também há espaço para algum humor: com efeito, o romance tem imensas passagens que considero muito irónicas, como a sessão de solfejo no capítulo «O Reino do Sol». Essa passagem é um exemplo de um episódio que tem algum humor, mas que serve um propósito narrativo: reforça a ideia de loucura total que atravessava aquele período da corte joanina. Foi um período muito estranho, muito formal, muito reservado, mas, ao mesmo tempo, um tempo absolutamente descabelado, cheio de personagens excêntricas e episódios extravagantes. Essa mistura de formalismo e loucura é fascinante. Daí que a inclusão de histórias paralelas tem sempre o propósito de reforçar o tom da narrativa principal e de oferecer níveis de leitura mais complexos: são "hiperligações". Mas existem mais apontamentos humorísticos espalhados ao longo do romance, como a presença de Pokémons no rol de diabos no capítulo «Pythonomorpha Pentadactyla». É o humor vulpino, na verdade, o humor da Raposa. O humor traquinas, de pregar a partida sem que o leitor perceba.

AMB - Consideras que o lagarto pode ser entendido como o Homem e a raposa como a Mulher, num sentido simbólico?

DS - Pode ver-se essa questão por esse prisma, mas na minha cabeça o binómio Raposa/Lagarto não funciona assim. A Raposa e o Lagarto são como os degraus de uma escada: há o degrau, propriamente dito, e a face vertical que nos conduz ao degrau seguinte. Essa face vertical chama-se espelho: o degrau é o nome da superfície horizontal. Por isso, subir, ascender, faz-se de verticalidade e horizontalidade, em simultâneo: estabilidade e mudança, se lhe queremos chamar isso. O Lagarto e a Raposa são como o espelho e o degrau, embora, por vezes, durante o livro, não seja claro qual deles significa o quê. Na verdade, ambos têm agendas ocultas e o progresso e estabilidade que vão criando é, de certa maneira, instrumental a essas agendas. Às vezes é a Raposa a querer mudança, às vezes é o Lagarto. Acho que as diferenças estão no seguinte: a Raposa é mais parecida connosco; o Lagarto é mais parecido com o universo. A Raposa percebe-nos melhor, tem mais simpatia por nós, gosta de brincar connosco, de nos ludibriar. O Lagarto é uma força da natureza, como o vento: afecta-nos, mas não age connosco. A não ser em ocasiões especialíssimas, como as descritas e sugeridas no romance. Aliás, uma das angústias a que a religião tenta dar conforto é a de que o universo não nos compreende, a de que o universo não é humano e não nos liga nenhuma.

AMB - Lisboa com certeza é uma cidade com a qual tens uma grande afinidade, visto ser a tua cidade natal. Em três palavras, como a caracterizarias?

DS - A minha relação com Lisboa foi-se tornando numa relação muito mais museológica do que era. Com efeito, desde há três anos, que tenho vindo a "desapaixonar-me", entre aspas, pela cidade. Ou melhor: pela cidade em que moro, porque a Lisboa histórica, ideal, imaginal, cada vez a amo mais e mais. Dói-me muito ver a cidade a transformar-se em algo que me desagrada muitíssimo e a descaracterizar-se, a perder património. Também perdi uma pessoa que era um fortíssimo elo de ligação que me mantinha agarrado a ela e isso concorreu para que me começasse a distanciar, de imediato. Eu faço a minha vida de todos os dias na mesma Lisboa que tu, mas, de facto, vivo em outra, que construo com elementos históricos, com pedaços das minhas criações, com pedaços dos meus sonhos. Sonho quase todas as noites com uma Lisboa histórica diferente da que existe: e sonho com ela muitas vezes. É como se andasse pelo sonho com uma lanterna e, a cada noite, descobrisse mais um pedaço dela. Essa é a Lisboa que me interessa: esse é que é o meu mundo. Cada vez me sinto mais companheiro do histórico, do sonho e do passado.

AMB - Boytac foi um personagem bastante activo e reactivo no teu romance. Além do que leste em Santa Maria de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos, onde ou em quem te inspiraste para a construção do personagem?

DS - A personagem Boytac é o arquétipo do misógino. É uma espécie de São Paulo, para quem as mulheres são a criatura mais desprezível que existe. Na minha cabeça, o Boytac é alguém que está, constantemente, a racionalizar tudo e, pior que isso, é alguém para quem os outros são como grãos de areia, porque, bem vistas as coisas, não lhe chegam aos calcanhares no que diz respeito à cultura e ao intelecto. A única pessoa capaz de se elevar à altura dele é D. Leonor, a viúva de D. João II, e ele não é capaz de suportar isso, não é capaz de suportar que a única pessoa no reino com uma cabeça tão boa como a dele seja uma mulher. Mas à parte da misoginia, a personagem Boytac tem muitas características que eu considero grandes qualidades e, de certa forma, acho que faz muita falta existirem pessoas como ele. Falámos em Aquilino: o Aquilino não tinha pudor nenhum em dar uma chapada a alguém que o ofendesse - mesmo a um amigo. Dava e, depois, a coisa esquecia-se. Hoje, sob a égide do politicamente correcto, vivemos numa sociedade inquinada pela aparência, pela tibiez. Fazem falta homens como o Aquilino e como a personagem Boytac: homens autênticos, fortes no carácter e no intelecto. O Boytac é uma relíquia como o seu mosteiro. Já não se fazem pessoas e edifícios assim.

AMB - Consideras a ilustração fantástica, mais propriamente gótica/de horror, uma boa forma de interpretar esta obra literária?

DS - Provavelmente, será. Nunca imaginei ilustrações para os meus romances, excepto no caso do Batalha que, quando nasceu na minha cabeça, já vinha a pedir para ser ilustrado, à maneira das velhas fábulas. Foi uma excepcionalidade, nesse sentido, mas penso que uma ilustração de estilo gótico, como as dos romances do século XIX, ou até à maneira dos estilos de Arthur Rackham ou de Rien Poortvliet, seria muito interessante. Ver a interpretação que outro artista faz da minha obra é sempre uma honra e uma emoção enorme.

AMB - Caso escolhesses uma banda-sonora para esta obra, qual seria?

DS - Não escolheria.

AMB - Caso escolhesses ser um personagem desta obra, qual seria?

DS - Talvez o Boytac, porque sou muito parecido com ele, excepto no que concerne à misoginia. Baseei a personalidade dele na minha e nos registos históricos que descrevem as suas atitudes. Ele é, também, o enantiomorfo do D. Nuno de Ataíde, o inquisidor-mor do capítulo anterior: ambos têm um grande ódio de estimação; no caso do Boytac são as mulheres, no caso do Ataíde são os judeus, mas o Boytac nunca se torna maníaco, porque tudo nele encerra um elevadíssimo sentido do dever. É uma personagem que, para o bem ou para o mal, é incorruptível, é totalmente obcecado pelo seu código moral e intelectual sobre como deve ser um homem. O D. Nuno, não. É um obcecado pelo poder, é um esbirro do poder, e, nesse sentido, não tem espinha, não tem carácter. Para ele, o poder é um fim em si mesmo e não uma ferramenta para chegar a algo. É isso que faz do Boytac um homem superior: ele está-se nas tintas para o poder, porque para ele o poder é apenas uma ferramenta para chegar à obra. A obra é que fica para sempre.

AMB - Que conselho darias a um escritor de fantasia?

DS - Seja de fantasia ou não, o meu conselho é sempre ler muito, porque é a única escola de escrita que existe. Ler muito e aprender bem as regras da gramática, chamemos-lhes isso. Um escritor tem de ser erudito. Se não for assim, não vale a pena escrever, porque só vai escrever obras menores. Como em qualquer arte, a personalidade criadora, a voz, vai de dentro para fora. Quando se é mesmo artista, isso rompe, mostra-se. O resto é polimento, é refinamento, é desenvolvimento. De facto, tem de ser-se, já, artista. Os artistas nunca se fazem: já o são. Um indivíduo pode matar-se a trabalhar, a aprender a ser muito bom, mas se não for, de facto, artista, isso vai notar-se sempre, vai ser sempre uma sombra que ofusca o que ele cria. Hoje, existe uma fronteira muito ténue entre o autor e o público, porque é o público que compra a obra, logo o mercado obriga a essa proximidade, mas isso é muito destrutivo porque os indivíduos acham que a arte tem de estar ao nível deles, quando são eles que têm de pôr-se ao nível da arte. Há poucas dezenas de anos, um tipo entrava numa galeria e até tinha vergonha de admitir que não percebia um fiapo de arte: hoje, pelo contrário, diz-se que a arte é má se não for compreendida à primeira olhadela. Há uma grande tirania do público que está a matar a arte. Não tenho nenhum hábito de citar Nietzsche, mas ele, no Para Além do Bem e do Mal, tem um aforismo certeiro sobre isto: «-Não gosto. - Porquê? -Porque não estou à altura. Alguma vez alguém pensou assim?» Os artistas precisam de recuperar inacessibilidade, ascetismo. Precisam de recuperar mistério, por que não?