...numa montra do Chiado.
Onze anos depois perdura o sentimento de ter-se sintonizado durante a escrita a psique da própria cidade.
«Apesar da abundância de gente que enchera a arena do Terreiro do Paço para ver o combate dos colossos, a Rua Nova dos Mercadores estava pejada de pessoas aquela hora. O mercado da hortaliça e da fruta, mais o do pão, enchiam-se de citadinos que queriam comprar o maior número possível de alimentos antes que os preços voltassem a subir; os novos-ricos saíam e entravam nas joalharias e das ourivesarias, ora para comprar, ora para penhorar. A vozearia de comerciantes e clientes ecoava pelas arcadas harmoniosas que serviam de lojas e sustinham os edifícios de três andares; nas paredes coloridas podia ver-se palavrões e caricaturas garatujadas a carvão e giz. A estrada de terra batida estava atulhada de detritos e emporcalhada pela água suja que as escravas despejavam para o chão, mas em nenhum lado o pivete era pior que na praça e no açougue – era impossível não passar pelas bancadas do peixe e da carne sem ficar sujo de sangue e escamas. Vendilhões ambulantes furavam caminho entre os indivíduos, incluindo os magríssimos mestiços do Norte de África que deambulavam com um pequeno forno de ferro à cabeça e assavam línguas de borrego por três reais e meio; traziam-nas dentro de um saco que levavam as costas, mas também cozinhavam a carne e o peixe que os clientes compravam no mercado. Quando o elefante invadiu a rua ninguém deu por ele até se ouvirem os gritos das primeiras pessoas a serem empurradas.»(In SOARES, David, Lisboa Triunfante, Parede, Saída de Emergência, 2008, pp. 268-269.)«Casas de pedra e madeira erguiam-se voltadas para o rio Tejo, tão tortas quanto as próprias elevações sobre as quais se equilibravam; em direcção à linha da água, a pouquíssima distância das muralhas coroadas de líquenes, as ruas estreitas tornavam-se exíguas e a imundície sedimentava-se em estratos graúdos que encapotavam o chão de terra batida. Algumas artérias de maiores dimensões, como a eritematosa Rua Nova, possuíam pavimentos; mesmo assim, se apresentassem uma cota mais elevada, os caminhos calcetados costumavam ser cobertos com areia para que as ferraduras das bestiúnculas não deslizassem nas lajes de pedra. O barulho era ininterrupto: sinos e chocalhos vascolejantes, guinchos das rodas de carroças e carretas, cerca de quarenta mil pessoas a conversar, a berrar e a rir. Baratas saltavam de frinchas. Cães bebiam os próprios reflexos em poças de água choca. Homens agarravam em copos de vinho.(…)'A alma é um mecanismo, sujeita aos fins para os quais foi criada', pensou Nuno, ao caminhar sozinho pelas ruas de Lisboa, pela primeira vez em cinco anos. 'Essa é uma verdade que deve ser levada muito a sério.' O Sol forte magoava-lhe a vista, mas que dor tão doce era essa. Como mel – e tão dourada quanto ele. 'Acho que… que vou passar na Rua Nova.'Encontrou uma nova Rua Nova, pintada de tons quentes e cheia de casas soberbas, suportadas por arcadas que ainda luziam dos polimentos; o pavimento era o mesmo, contudo – sujo como o fundo de um barril. Observou os rostos dos indivíduos como se fossem criaturas de outro mundo: até eram, pois o mundo dele ruíra com a velha rua e com o regedor.Aquela Lisboa e aquele tempo não lhe pertenciam.Pôs-se de frente para o sitio onde ficava o seu armazém e descobriu que fora ocupado por uma nova casa. Passou por baixo do arco e olhou para cima: viu um pombo a dormitar em cima de um capitel; a sombra era fresca e o ar, recheado de ruídos cristalinos, cheirava a fruta fresca.'Como é que posso voltar a ser um pintor?', pensou Nuno, pousando a mão num pilar e sentindo a pedra fria. 'Estive separado da minha mão durante cinco anos…' Olhou para o fundo da rua apinhada de gente. 'Como é que vou recuperar os jeitos dessa vida?'»(In SOARES, David, O Evangelho do Enforcado, Parede, Saída de Emergência, 2010, pp. 74-75, 337.)
Um artigo muito raro do filósofo Binmarder, publicado pela primeira vez no raríssimo Novas Horas Douradas (1487); incunábulo mais antigo que o Tratado de Confissom (impresso em Chaves no ano de 1489 e, erroneamente, apontado como sendo o mais antigo livro impresso em língua portuguesa). Num estilo proto-humanista, que rejeita a escolástica e antecipa os melhores trabalhos de André de Resende e Garcia da Horta, o visionário Binmarder ousa trazer para a filosofia a tradição satírica dos trovadores goliardos; o que, de certo modo, é a pedra basilar do estilo humanista, já que a glória das letras não passa de um substituto da antiga nobreza cavaleiresca. Enquanto escritor – e filósofo – Binmarder tece nos seus ensaios uma filigrana vaidosíssima que se preocupa em glorificar Minerva e Mercúrio; ou seja: o Intelecto, na pele dos pensadores, e o Comércio, na pele da nova classe burguesa. Neste ensaio sobre, precisamente, a branqueza da peçonha branca, ele coloca a Razão acima do Sentimento para perceber como os efeitos do estupefaciente mais popular do tempo dele estão relacionados com a propriedade principal que é a cor. Transcrevo de “A Branqueza da Peçonha”, retirado de Novas Horas Douradas de Binmarder Da Silba (Vol. II, pag. 157):«O autor anónimo de O Atlas do Mal, livro que considero a primeira análise metafísica sobre a Sátira porque ao escarnecer dos meus ensaios satíricos ele está, enfim, a julgar esse género literário. A melhor constatação que retiro da leitura do texto enfadonho de O Atlas do Mal é que o autor não tem sentido de humor. Em primeiro lugar, ele acusa-me de ser um viciado em peçonha branca (!) e que a substância querida não só é responsável pela minha péssima prosa (aos olhos dele) como, ainda, a causa da minha fealdade (!!) e dos meus problemas de gota (!!!). Gostava de esclarecer que não sou um viciado. Sou um utilizador, porque a dita droga não rouba o ânimo para me dedicar a outro tipo de tarefas que não sejam o consumo (tarefas como escrever). Não é o local indicado para discorrer sobre a origem farmacológica da peçonha branca, misto do Vegetal e do Mineral, nem do intrincado processo através do qual ela se adapta ao dispêndio humano. (Basta dizer que, de acordo com as crónicas apócrifas de João de Barros - A Ásia Oculta –, toda a peçonha branca que se encontra disponível neste momento provém de um lote imenso que foi produzido há mais de trinta anos na Índia. O motivo da quebra de produção poderá ser a extinção das Centopeias Gigantes do Ganges, bizarros animalejos aquáticos que eram usados pelos fabricantes para pisotear as pétalas da flor da peçonha até estas se transformarem num pó fininho. A extinção das criaturas é justificada com uma inesperada intolerância à água conspurcada pelos indígenas que nela se banham amiúde.) O que me interessa é precisar o modo como a branqueza da peçonha é ela mesma um factor decisivo no modo como afecta o peçonhento (aquele que fuma ou ingere por outros meios – conheço, inclusive, um grande senhor do nosso Reino, que toma a peçonha por via anal com clisteres). A cor branca é, em muitas culturas, sinónimo de beleza ou de pureza. Ao transpor esse ideal para a actividade do peçonhento é legítimo afirmar que a cor não só é uma garantia que o material consumido é puro como a própria prática de o consumir é benta: purificada – e espécie de renúncia ascética ao alimento ordinário por outro mais espiritual (porque comunica com o sentido da visão interior). Os deuses não comem senão ambrósia e o peçonhento sabe que a satisfação que o pão oferece ao esfomeado de comida nada é comparada com o sentimento de satisfação que a peçonha presenteia ao esfaimado de sonhos! Então qual é a simbologia que esconde a flor branca e a peçonha magnífica que é seu sucedâneo? Que grande milagre é (ou era…) realizado pelos milhares de pezinhos das Centopeias Gigantes do Ganges? O que é que elas faziam? Pisavam as pétalas, somente? Ou possuíam um segredo mais elevado como o das abelhas laboriosas? Por que motivo desapareceram? Saberiam demais? Qual o segredo máximo da peçonha branca? É essa resposta que o peçonhento almeja conhecer quando se intoxica: a fé que a generosidade imensa da Natureza, expressa sempre nos feitios mais subtis, lhe mostre o real sentido do acto ao qual é – porque não dizê-lo? – misticamente orientado. Não se trata de preencher o tédio desta vida cada vez mais arreigada do pensamento com novas formas de arrumar as ideias: é buscar na comunhão com a substância secreta a raiz de uma essência! Não anda Sua Majestade em busca do Reino do Preste João? Se tomasse peçonha branca iria encontrá-lo mais depressa, de certeza. Ontem dei peçonha branca ao meu gato. Acho que ele gostou, mas terá compreendido a essência? E se ao tomarmos peçonha branca perdemos aquilo que faz de nós homens e começamos a ser mais como as centopeias que devem, sem dúvida, ter deixado algo de seu na mistela? (Pensem que uma delas escorregava e caía. Acham que a produção parava para que a ajudassem a levantar? Claro que não! Seria, isso sim, impiedosamente espezinhada.) Ou a ser mais como a própria flor que constitui o produto? Então que dizer sobre a terra e a água que nutriram a planta? Onde é que paramos? Em DEUS!... Deus é uma centopeia. Ou uma flor. Não há meio-termo. E tomar peçonha branca é uma experiência de comunhão com Ele.»