No final do século XX, em Portugal, estabeleceram-se, definitivamente, ao alcance do grande público, duas tecnologias que, de facto, operaram uma mudança na sociedade: o telemóvel e a internet; dois eixos de modernidade que, hoje, se encontram, até, mais consonados do que alguma vez se pôde pensar, na configuração do smartphone, aparelho que é um verdadeiro canivete suíço digital. A concomitância do advento destas tecnologias com o final do século XX e com o final do segundo milénio da Era Comum (escrevo concomitância, porque, aqui, a palavra simultaneidade comportaria um incorrecto lastro de intencionalidade) emprestou-lhes um determinado nimbo parusístico - como se, a partir daqui, os cenários mais empolgantes e optimistas, teorizados pelos teólogos da religião do Progresso, estivessem, de facto, a dois dedos de distância da singularidade. Hoje, passada a embriaguez da novidade, percebe-se que não é - não será - assim (tão fácil). Contudo, o que interessa reter é que, após o estabelecimento dessas tecnologias, a paisagem humana mantém-se relativamente estável, no que às mudanças estruturais diz respeito.
Ou seja: pode falar-se num antes e num depois, considerando a ruptura provocada pela introdução nas nossas vidas dos telemóveis e da internet, mas reiniciando a contagem a partir daí detecta-se a homogeneidade dos costumes: os chamados nativos-digitais terão uma experiência do mundo muito diferente das gerações que os antecederam, no aspecto em que estas assistiram a algumas sismografias - a saltos na criação, para ser metafísico - que, desde 2001 para cá, ainda não encontraram ocorrências análogas. A cada ano, surgem novas versões de programas digitais, aplicações e equipamentos, mas, na verdade, as tecnologias de finais dos anos noventa do século XX permanecem as mesmas: um telemóvel (misto com computador pessoal - que é um artefacto ainda mais antigo) e a internet. A ser-se obrigado a elencar, precipitadamente, outro item igualmente impactante teria de referenciar-se a rede social.
No entanto, a rede social, enquanto princípio, tem mais semelhanças com os nossos velhos hábitos do que se poderia, à partida, pensar. Já tenho escrito, desde há muito tempo, que estabelecer ligação a uma rede social é muito parecido ao acto de ir a um café conversar com um grupo conhecido de pessoas: entramos, sentamo-nos à mesa com quem lá se encontrava antes de nós, vamos conversando; à medida que uns se vão ausentando outros vão chegando, criando-se conversas paralelas entre indivíduos que estão na mesma mesa, entre pessoas que estão nas mesas do lado e tudo se vai entrecruzando. Observa-se isso no modo como, por exemplo, se vão desenvolvendo os comentários nas publicações de Facebook, nos espaços previstos para o efeito. Até a publicidade que vai aparecendo nas margens e nas molduras das janelas de navegação equivale à televisão ligada no café ou aos jornais e revistas folheados por quem está ao nosso lado e que vão, pontualmente, concorrendo para chamar-nos a atenção. Uma das grandes diferenças entre ambas as experiências - o ir-se a um café para conversar ou aceder a uma rede social para conversar por escrito (ou não) - reside no feitio como se desdobram as consequências e o fenómeno do inesperado.
No mundo físico, as consequências são imediatas - demasiado, até. No mundo digital, as consequências são distantes - demasiado, também. Isto significa que apesar de a rede social transportar com sucesso para uma esfera digital um simulacro de uma experiência física, com todos os equivalentes a que já se aludiu, ela é incapaz de transpor a distância encurtada pelo imediato, no sentido em que este e o imprevisto são apanágio daquilo que é orgânico. O orgânico emite, constantemente, mensagens, sinais, reinterpreta a cada momento o que é emitido e o que é recebido, tudo mescla em diferentes linguagens (oral, corporal, abstracta) e níveis de entendimento (esotérico, exotérico, intrínseco e extrínseco) - e rapidamente, imediatamente. Até em relações mais especiais, inter-espécie - há uma matriz comum que pertence, em exclusivo, ao orgânico. O digital é incapaz de reproduzi-la. Espera-se demasiado do digital, tal como se esperou demasiado do telégrafo, do telefone, da televisão, das torradeiras e dos aspiradores. A comunicação está mais rápida, em certos casos, mas a consequência - ou, para ser ainda mais explícito, a inscrição - está sempre à distância. Uma distância desincorporada, como um segmento de recta a flutuar no éter: uma distância que desconhece pertença.
Desde 2001 que se anda a viver num segmento de recta desse jaez: enquanto ele flutuar num mar de equanimidade, manter-se-á a ilusão de estabilidade em que se está a tentar construir um presente. Um sintoma de que estamos a solidificar - em sublimação, do estado gasoso do incremento tecnológico estrutural de final do milénio e final de século para o actual estado sólido, em que tudo se vai sucedendo, mas em repetição, em versões actualizadas, mas sem autêntica novidade - é o do desaparecimento da especulação científica no discurso do entretenimento popular. Os indivíduos dos anos cinquenta do século passado sabiam que a ameaça nuclear era orgânica - tão orgânica quanto as torradas comidas ao pequeno-almoço. Hoje, as ameaças dos nossos dias continuam a ser orgânicas, mas vive-se, cada vez mais, na transplantação desse orgânico para um incipiente devir digital; logo, elas inscrevem-se cada vez menos: não é tanto apatia generalizada, ou anquilosamento ético, mas muito mais um desencontro entre planos ortogonais de existência que se aproximam sem se cruzar. Que se observam, lá está!, à distância.
O modelo digital é o da compartimentalização: hoje, compartimentalizamos tudo, sem que exista comunicação entre as categorias estanques em que se arrumam diferentes elementos.
(Imagem: Alegoria da Simulação. Lorenzo Lippi, 1640.)