terça-feira, 22 de janeiro de 2019

O futuro homérico — e acidentalmente wildeano — de Shyamalan



No remate do ensaio intitulado 'A Strange Faith in Science', uma das faces que poliedram Seven Types of Atheism (Allen Lane, 2018), o filósofo inglês John Gray reflecte sobre a problemática de um futuro pós-humano, avançando com a provocação de que um estádio dessa natureza, em que seres humanos criados artificialmente poderão, eles próprios, criar artificialmente outros seres humanos, se assemelharia mais às composições de Homero, em A Ilíada e A Odisseia, que à utopia transhumanista na qual o Homem Novo, mesclado de sintético e cibernético, assomaria como senhor da história ou auto-proclamada divindade. Escreve Gray: «If it ever comes about, a post-human world will not be one in which the human species has deified itself. More like the polytheistic cosmos imagined by the ancient Greeks, it will be ruled by a warring pantheon of gods. Anyone who wants a glimpse of what a post-human future might be like should read Homer. Like the evolutionary process that produced the human species, post-human evolution will be a process of drift» (p. 69).


O futuro idealizado por Elijah, o Mister Glass (que, a páginas tantas, declara ser um criador de super-heróis), aparenta ser mais próximo de Homero e de Gray que de Ray Kurzweil ou de Yuval Harari (The Singularity is Near: When Humans Transcend Biology e Homo Deus: a Brief History of Tomorrow, respectivamente) na sua tácita aceitação do humano: o mundo de super-heróis de que ambiciona ser, em simultâneo, parteira e profeta radica na aceitação do bestiário das imperfeições, pois cada poder de um super-herói possui num super-vilão uma fraqueza correspondente, num vero caleidoscópio de enantiomorfos. Assim, é uma pena que a personagem mais interessante de Glass (2019) seja remetida ao mutismo e ao imobilismo durante mais de uma hora, nunca se concretizando o denouement que uma relativamente hábil construção de expectativas prometia.


Faz lembrar a patifaria de Nolan em The Dark Knight Rises (2012), filme do Batman com quase três horas de duração e em que essa personagem somente aparece, no limite, durante vinte cinco minutos; com efeito, ainda houve Bruce Wayne suficiente para preencher o resto da fita, e arguir-se-á que o nome Batman não faz parte do título, ganhando, em proporção, maior espessura a patifaria de M. Night Shyamalan que, ainda por cima, pontofinaliza a sua história com um dos desfechos mais deprimentes que vi em ficção nos últimos anos. Será subjectiva esta minha avaliação, certamente, mas o filme transmitiu-me o sentimento que Shyamalan foi um criador injusto para as suas criaturas — leitura reforçada por revelações propínquas desta hora sobre o facto de o final original ter sido outro, reescrito mais ou menos à última instância por receio que caísse mal na actual mundividência politicamente-correcta do público. 


A verdade é que haveria muito para gostar em Glass, porque a premissa é interessante: olhar-se para o fenómeno dos super-heróis com um ponto de vista ontológico ou até semiótico, o que Unbreakable (2000) já conseguira fazer, dentro de uma balaustrada infelizmente bem definida. Nesse sentido, é, ainda, um filme melhor e mais pertinente que Glass.


É sintomático que seja na banda-desenhada que os exames metafísicos à super-heroicidade voem a alturas nunca sequer afloradas pelo cinema, cujo epítome poderia ser o excelente livro do Super-Homem It's a Bird (2004), escrito por Steven T. Seagle e desenhado por Teddy Kristiansen, obra que, na minha opinião, se tem conservado como o mais sensível, astuto e imprescindível testemunho sobre o que significa, afinal, ser-se super-herói. Infelizmente, para o espectador, Shyamalan não é um pensador, digamos assim. É plausível que Glass brilhasse mais em formato de seriado televisivo, prolongado — formato que até se aproxima mais de um romance, em oposição ao da longa-metragem, que vai mais na direcção de um conto. Susan Sontag teorizou sobre sinergias desta estirpe em Against Interpretation (1966); pelo menos pensou no parentesco entre literatura e cinema como linguagens narrativas, desagrilhoando o segundo do campo exclusivo da gramática visual.


Apesar do titulo, parece que Shyamalan se deslumbrou pelo títere interpretado por James McAvoy, oferecendo-lhe longo tapete vermelho para um protagonismo imenso. Se é verdade que o actor escocês desempenha os seus vários papéis em Glass com uma desenvoltura notável, a pirotecnia gestual e vocal não justifica, por si só, o segundo plano dado às personagens trazidas de Unbreakable. Tem graça a sincronicidade de ter estado a falar sobre Oscar Wilde antes de entrar no cinema, pois no final lembrei-me logo da sua famosa frase «each man kills the thing he loves». Infelizmente, é o resumo perfeito deste filme.