Ao
ler neste momento sobre o problema filosófico do Absoluto, lembrei-me,
de modo absoluto (isto é, acabado em si mesmo, não-contingente), de
determinados espaços que vi poucas vezes na minha infância, mas que
sempre considerei fascinantes: a estância e a drogaria. Na minha
geografia mental, eles nunca contêm pessoas (tal como as melhores
pinturas de Hammershoi), somente um florilégio de objectos e
briquebraques, como espelhos, escovas, panos, louças; ali, na estância
de atmosfera seca — tão grande que parecia uma imperfeição para a qual a
ortogonal malha cosmopolita consistia em pérola — estão suspensas sobre
o longo balcão de madeira dezenas de alfaias esqualomórficas,
lemniscatas de ferro e cobre cujo uso nunca determinei: que estranha
física, aquela que elevava o metal ao tecto e agarrava papel, areia e
plástico ao chão, nas formas mais dóceis e perceptíveis de lixas,
serraduras e mangueiras. Porém, na recendente drogaria todos os
artefactos derivavam uns dos outros, em estonteante reprodução assexuada
— amebas de vidro e tecido, de borracha e cortiça, dispostas nas
escadas, nas paredes e nas portas. Infenitesimais parafusos coabitavam
com colossais misturadoras de cimento, cujo antracíticos ventres davam
ares de gigantes caldeirões caligráficos numa lista medieval. Cheira a
cera e a suor e a farinha creme que se desprende de contraplacado
serrado vai misturar-se como cacau em pó com a luz projectada da rua
pela porta. E, no entanto, não existem pessoas nestes espaços
atafulhados. Todos os sons, cores e formas estão lá por si só. E ao lado
da caixa registadora vê-se um calendário cheio de pó e lascas de
ferrugem: sem utilidade num espaço intemporal que é o da mente, é livre
para existir por si mesmo, sem a contingência que o unia à marcação do
tempo. Tóteme do absoluto num interior tão desértico e relevante quanto
uma paisagem marciana.