O meu novo romance intitula-se O Evangelho do Enforcado. Chegará às livrarias a 12 de Fevereiro, numa edição da Saída de Emergência.
É um romance negro de literatura fantástica, cuja história se concentra sobre a realização dos Painéis ditos de São Vicente.
O cenário é, em grande parte, a cidade de Lisboa, em meados do século XV. Para os leitores que esperam encontrar um retrato autêntico da sociedade desse tempo fica a promessa de que O Evangelho do Enforcado é uma cápsula do tempo feita de imagens realistas e que as personagens pensam e agem como, muito provavelmente, pensavam e agiam os indivíduos nos finais da Idade Média. No entanto, é a fantasia negra que dá o tom dominante ao livro.
Espaçadamente, irei desvendar mais pormenores sobre O Evangelho do Enforcado. Para já, deixo-vos com um excerto:
«Os viajantes cheiravam Lisboa, antes de lhe pôr a vista em cima: os quatro ventos sopravam para Sintra e Sacavém os cheiros provenientes dos açougues, oficinas de calafates, baiucas dos curtidores e lixeiras que se espraiavam à sombreada do muramento da cidade; as gentes expulsavam das chaminés e janelas abertas das casas um florilégio de fragrâncias, das melíferas, como os eflúvios das enxercas, refogadas com ervas e mel, às malcheirosas, como os pivetes deitados fora com o conteúdo dos penicos. Não era invulgar o vento bater na cara dos transeuntes e enfiar-lhes o cheiro a vinho e caca de porco pelas narinas acima. Um fabuloso odor de “aqui e agora” que ia buscar essências pretéritas, fixadoras dos aromas do presente, para controlar os pensamentos dos lisboetas: o hipocentro da geologia temporal de Lisboa, impressa nas rochas, tijolos e ossos, reverberava sob a forma de lenga-lengas, cantigas estúpidas e orações de esperança. Ninguém, nem sequer um fungo, se dava ao trabalho de aprender alguma coisa com a presença do passado: e a cidade, de quando em quando, dava coices; deitava umas casas abaixo e reorganizava-se – ninguém me usa, clamava, merismática.
Casas de pedra e madeira erguiam-se voltadas para o rio Tejo, tão tortas quanto as próprias elevações sobre as quais se equilibravam; em direcção à linha da água, a pouquíssima distância das muralhas coroadas de líquenes, as ruas estreitas tornavam-se exíguas e a imundície sedimentava-se em estratos graúdos que encapotavam o chão de terra batida. Algumas artérias de maiores dimensões, como a eritematosa Rua Nova, possuíam pavimentos; mesmo assim, se apresentassem uma cota mais elevada, os caminhos calcetados costumavam ser cobertos com areia para que as ferraduras das bestiúnculas não deslizassem nas lajes de pedra.
O barulho era ininterrupto: sinos e chocalhos vascolejantes, guinchos das rodas de carroças e carretas, cerca de quarenta mil pessoas a conversar, a berrar e a rir. Baratas saltavam de frinchas. Cães bebiam os próprios reflexos em poças de água choca. Homens agarravam em copos de vinho.
Um ogre, de pele tisnada, vendia arroz frito de lagostins na rua e o cheiro das ervas aromáticas e do marisco não era diferente daquele que saía das fracturas do subsolo. Cheiros puros – sons puros. «Libertate carens.» Como lâminas afiadas.
Quando Nuno descera do barco e entrara em Lisboa pela Porta da Ribeira, junto da Pedreira ao bairro de Alfama, não se deixara impressionar pela adarga decorativa que se encontrava suspensa sobre o arco perfeito, como dois enormes rins de pedra; porém, desde essa altura, viera a conhecer melhor a cidade e concluiu que não se tratava de nenhuma aldeia grande como lhe disseram: era muito, mas mesmo muito maior do que alguma vez teria sido capaz de imaginar.»
(Foto de Gisela Monteiro.)
É um romance negro de literatura fantástica, cuja história se concentra sobre a realização dos Painéis ditos de São Vicente.
O cenário é, em grande parte, a cidade de Lisboa, em meados do século XV. Para os leitores que esperam encontrar um retrato autêntico da sociedade desse tempo fica a promessa de que O Evangelho do Enforcado é uma cápsula do tempo feita de imagens realistas e que as personagens pensam e agem como, muito provavelmente, pensavam e agiam os indivíduos nos finais da Idade Média. No entanto, é a fantasia negra que dá o tom dominante ao livro.
Espaçadamente, irei desvendar mais pormenores sobre O Evangelho do Enforcado. Para já, deixo-vos com um excerto:
«Os viajantes cheiravam Lisboa, antes de lhe pôr a vista em cima: os quatro ventos sopravam para Sintra e Sacavém os cheiros provenientes dos açougues, oficinas de calafates, baiucas dos curtidores e lixeiras que se espraiavam à sombreada do muramento da cidade; as gentes expulsavam das chaminés e janelas abertas das casas um florilégio de fragrâncias, das melíferas, como os eflúvios das enxercas, refogadas com ervas e mel, às malcheirosas, como os pivetes deitados fora com o conteúdo dos penicos. Não era invulgar o vento bater na cara dos transeuntes e enfiar-lhes o cheiro a vinho e caca de porco pelas narinas acima. Um fabuloso odor de “aqui e agora” que ia buscar essências pretéritas, fixadoras dos aromas do presente, para controlar os pensamentos dos lisboetas: o hipocentro da geologia temporal de Lisboa, impressa nas rochas, tijolos e ossos, reverberava sob a forma de lenga-lengas, cantigas estúpidas e orações de esperança. Ninguém, nem sequer um fungo, se dava ao trabalho de aprender alguma coisa com a presença do passado: e a cidade, de quando em quando, dava coices; deitava umas casas abaixo e reorganizava-se – ninguém me usa, clamava, merismática.
Casas de pedra e madeira erguiam-se voltadas para o rio Tejo, tão tortas quanto as próprias elevações sobre as quais se equilibravam; em direcção à linha da água, a pouquíssima distância das muralhas coroadas de líquenes, as ruas estreitas tornavam-se exíguas e a imundície sedimentava-se em estratos graúdos que encapotavam o chão de terra batida. Algumas artérias de maiores dimensões, como a eritematosa Rua Nova, possuíam pavimentos; mesmo assim, se apresentassem uma cota mais elevada, os caminhos calcetados costumavam ser cobertos com areia para que as ferraduras das bestiúnculas não deslizassem nas lajes de pedra.
O barulho era ininterrupto: sinos e chocalhos vascolejantes, guinchos das rodas de carroças e carretas, cerca de quarenta mil pessoas a conversar, a berrar e a rir. Baratas saltavam de frinchas. Cães bebiam os próprios reflexos em poças de água choca. Homens agarravam em copos de vinho.
Um ogre, de pele tisnada, vendia arroz frito de lagostins na rua e o cheiro das ervas aromáticas e do marisco não era diferente daquele que saía das fracturas do subsolo. Cheiros puros – sons puros. «Libertate carens.» Como lâminas afiadas.
Quando Nuno descera do barco e entrara em Lisboa pela Porta da Ribeira, junto da Pedreira ao bairro de Alfama, não se deixara impressionar pela adarga decorativa que se encontrava suspensa sobre o arco perfeito, como dois enormes rins de pedra; porém, desde essa altura, viera a conhecer melhor a cidade e concluiu que não se tratava de nenhuma aldeia grande como lhe disseram: era muito, mas mesmo muito maior do que alguma vez teria sido capaz de imaginar.»
(Foto de Gisela Monteiro.)