quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Fantástico em crescimento: um esclarecimento


Esta semana, numa reportagem televisiva, voltei a ouvir um jornalista a afirmar que o Fantástico está em crescimento.
Escrevi «voltei», porque, com efeito, já não é a primeira vez, nem a segunda, muito menos a terceira, que tropeço com esta afirmação (ou outras semelhantes) na imprensa. Se ela fosse verdadeira, então o Fantástico estaria num contínuo estádio meta-estável de crescimento, sempre à margem de uma transição entre uma maior envergadura ou um abrupto abatimento (mais ou menos como um pão que está dentro do forno e que depende do grau certo de temperatura para se desenvolver), pois há anos, e às vezes em várias ocasiões num ano, que ouço e vejo as notícias atestar que «o Fantástico está em crescimento». Até parece um gag de continuidade: “O Fantástico já cresceu? Não, ainda está em crescimento. E agora, já cresceu? Não, ainda está em crescimento. Ora bolas, então quando é que cresce? Depois digo-te, ainda está em crescimento.”
Em primeiro lugar, o Fantástico não é um campo isotrópico: é apenas uma designação (entre muitas) que é usada para englobar diversos géneros e modos heterogéneos de criação artística, por conseguinte qual é, afinal de contas, o Fantástico que está em crescimento? É o conjunto ou apenas algumas partes? O problema de afirmações como esta é que servem, somente, como anzóis para pescar o público ao qual as notícias se destinam, porque o seu valor informativo é zero.
Vamos assumir que, mesmo assim, a declaração que dá por certo que o Fantástico está em crescimento é verdadeira: onde é que estão os números para que possamos comprová-la? Qual é a estatística basilar? Provavelmente, não é nenhuma, assim como não existem números. É apenas uma afirmação enfiada na notícia, que nem uma cunha debaixo da porta, para mantê-la aberta aos consumidores. Em suma: o Fantástico não está em crescimento (seja lá isso o que for): o que existe, e pode ser comprovado, são fenómenos dilatados de mediatização relacionados com ele; e às vezes apenas marginalmente.
Esses picos de popularidade despertam a atenção de quem, normalmente, não está atento ao Fantástico e criam a ilusão de que este «está em crescimento»: o público (jornalistas incluídos) acham sempre que conhecem tudo e quando algo que ignoravam lhes surge diante dos olhos nunca assumem que a falta de informação de que padeciam é fruto do desconhecimento, mas pensam que só naquele momento é que a matéria em questão avolumou o suficiente para alcançar a esfera em que se movimentam. Logo, só podem estar diante de uma coisa «em crescimento».
No que diz respeito à literatura fantástica, ela é lida, quase em exclusivo, por 1) entusiastas (que conhecem bem as obras canónicas do género e a sua história), depois por 2) leitores médios que compram livros fantásticos esporadicamente (até são capazes de ter dois ou três autores preferidos – principalmente quando estes se aproximam da chamada “literatura erudita”, como Calvino ou Borges) e, finalmente, por 3) leitores de ocasião (que aparecem, de maneira pontual, sempre que algum fenómeno de popularidade traz para o mainstream a literatura fantástica, lá está!).
Os primeiros são leitores especializados, que já leram um número de obras lato o bastante para terem adquirido noções sólidas sobre originalidade, qualidade e pertinência de um trabalho literário. De facto, é preciso ter-se lido muitas obras boas para perceber os mínimos padrões de qualidade que um texto literário deve possuir: entre os quais, se a gramática e a linguagem estão correctas, se as figuras de estilo utilizadas no texto fazem sentido, etc., somente para enumerar alguns dos pontos mais elementares. Infelizmente, a maioria dos leitores médios lê pouquíssimo, fala e escreve com um português imperfeito, não considera que a literatura pode e deve ser mais que um mero entretenimento e cada vez mais apresenta uma menor capacidade de concentração no acto da leitura, consequência da concorrência dos meios audiovisuais que nos rodeiam e incutem os seus modelos nos livros. A prova disto é o número crescente de títulos cada vez mais parecidos com guiões de cinema, cheios de acção, diálogos e pouquíssimo discurso indirecto.
O terceiro tipo de leitores de que falei acima é, pela medida grande, composto por jovens (e muito jovens) que ainda não tiveram tempo de amadurecer e aprender a diferenciar o que é a qualidade e o que é o gosto pessoal. É natural que quem não possua grandes conhecimentos sobre literatura fantástica – e até de literatura, em geral –, e se tenha aproximado do género graças a uma obra em especial, deseje ler mais coisas dentro dessa matriz.
É, pois, neste contexto que surge o fenómeno já enunciado das modas (sejam elas quais forem – fantasias medievais épicas, histórias de vampiros ou outras – que drenam o interesse gerado pelos produtos responsáveis pela mediatização dos temas que se tornam as matérias-primas das próprias modas: os filmes da trilogia Senhor dos Anéis, por exemplo, ou a trilogia literária escrita por Stephenie Meyer) e das ficções escritas por fãs (fan fiction), que apenas almejam a rápida e satisfatória (de um ponto de vista emocional, nunca intelectual) reprodução mimética dos universos encontrados nos seus livros de estimação.
Por isso, pensem bem antes de dizer ou escrever que o Fantástico está em crescimento, porque isso não só não é verdade (o que há são modas, tal como em todas as áreas), como ainda transmite a ideia errónea de que também está a amadurecer.