domingo, 11 de novembro de 2012

Entrevista com António de Macedo - 3ª Parte

Com a publicação da terceira parte da longa e pormenorizada entrevista que fiz ao cineasta e escritor António de Macedo cessa o intervalo um pouco mais prolongado do que o previsto desde a publicação da segunda parte da entrevista até este momento. Porém, creiam que valeu a pena esperar - até porque esta parte da conversa que mantive com Macedo adquire um cunho especialíssimo na conjuntura bem desgovernada que, presentemente, atravessamos: a coragem intelectual, artística e cívica de Macedo é uma lição.

Poderão ler (ou reler) as partes anteriores nesta ligação e aqui. Em breve, publicarei a quarta parte desta entrevista que, atrevo-me a dizer, já é um documento imprescindível para os numerosos admiradores da obra de António de Macedo. A ler, portanto, com muita concentração.


(continuação da 2ª parte)

David Soares – Diga-me, na sua óptica, como é ser-se um homem de cultura, sensível, inteligente, à frente do seu tempo, numa conjuntura espácio-temporal absolutamente sufocante e cheia de indivíduos que… olhe, que não percebem nada. Como é que se consegue lutar contra isto?

António de Macedo – Não se consegue, digo-lhe já, honestamente. Não se consegue. De qualquer maneira, a sensação que eu tenho, é a de que nasci no país errado, no planeta errado… no tempo errado, provavelmente… E não digo isto para me vangloriar, não é que eu seja melhor do que os outros: é uma questão de sensibilidade, de maneira de ser. Cada macaco no seu galho… e, se calhar, eu fiquei pendurado no galho errado. Não é que eu seja pior macaco ou melhor macaco do que os outros. Isso não me impede de ir fazendo, porque penso que há outras pessoas que estão numa situação semelhante. É isso que noto, através das reacções de contactos e amizades e tudo isso. O simples facto de estarmos aqui a conversar prova que estamos no mesmo galho, o que é porreiro. Embora possamos ter opiniões diferentes e até divergentes nisto ou naquilo, entendemo-nos porque temos um ideal que nos é comum, o elevado ideal que nos põe no mesmo galho! E não é assim um caso tão raro como isso, obviamente. Embora não seja frequente. Em dez milhões de portugueses, provavelmente, pessoas como nós serão poucas. Mas existem! Se calhar, só por causa dessas, vale a pena continuar a puxar a carroça. A carroça dos dez milhões… Vamos continuando a puxar a carroça, até porque não temos outra coisa a fazer. Isso é que é dramático. Estamos aqui, é aqui que temos de trabalhar, é aqui que temos de construir e que temos de criar a nossa própria realidade que é, no fundo, aquela realidade fantástica – ou não… A tal realidade dos interstícios entre as assimptotas… E se isso ajudar a melhorar, nem que seja um bocadinho, o planeta inteiro… por que não?... Já terá valido a pena termos nascido no sítio em que nascemos e na época em que nascemos. É a única consolação que eu tenho. Vamos continuando.

DS – O certo é que todas as épocas, enfim… Esta época tem, de facto, coisas muito hostis à inteligência e à sensibilidade, mas o certo é que todas as épocas são más. Não existiram épocas ideais.

AdM – Não existiram. Sempre houve gente a queixar-se.

DS – Mas parece que há épocas que vão mais ao encontro de certas ideias e de certas formas de fazer. Vivemos numa época um bocadinho hostil…Há pouco falávamos do som… Eu acho que, hoje em dia, vivemos numa época muito emocional…As pessoas valorizam muito a emoção, mas a emoção fácil…

AdM – Exactamente.

DS – …o sentimentalismo de pechisbeque… As pessoas valorizam muito isso e eu acho que é uma consequência de… Aviso que esta é uma ideia completamente heterodoxa… É uma consequência de, desde umas décadas para agora, vivermos numa sociedade que tem, lá está!, que tem música de fundo por todo o lado.

AdM – É verdade. Isso é verdade.

DS – O António sabe isto muito bem. Num filme, por exemplo, vemos uma cena dramática… Se for uma cena sem música, podemos sentir menor ou maior tristeza, mas se a cena tiver uma banda-sonora adequada ficamos derrotados.

AdM – É a experiência, que eu costumo dizer, de se ver um filme de terror sem som: não mete medo a ninguém.

DS – Hoje em dia, temos banda-sonora em todo o lado: nos elevadores, nos centros comerciais, nos autocarros… Isto condiciona as pessoas a não pensar – e a sentir.

AdM – Exactamente. E a não ver: também condiciona a não ver.

DS – E obras como a do António pedem pensamento. Pedem reflexão da parte de quem as vê…

AdM – E de quem as ouve.

DS – E de quem as ouve. Acho que, cada vez mais, vivemos numa época pouco propícia a que se façam este tipo de obras, que pedem pensamento. O cinema, hoje em dia, é uma coisa muito diferente, por exemplo.

AdM – É muito diferente. Até pelas tecnologias. Hoje em dia existem tecnologias que tomara eu que tivessem existido no meu tempo. Eu tinha ideias, recordo de ter tido ideias para fazer certas coisas nos meus filmes e que não consegui, porque não havia tecnologia e, hoje, quando vejo certas coisas que os programas de computador fazem, penso “se eu já tivesse isto no meu tempo, o que eu teria feito…” Quer dizer… Eram ideias que me vinham à cabeça, coisas mirabolantes, mas a que eu não podia dar concretização. O cinema hoje é muito diferente.

DS – Há cinema esotérico, hoje em dia?

AdM – É uma boa pergunta.

DS – Por exemplo, costuma-se dizer que o David Lynch faz uns filmes meio-esotéricos. Eu acho que não, mas…

AdM – No caso da ficção científica, quem era esotérico, verdadeiramente, era o Philip K. Dick, que era um gnóstico. Assumido. A gente lê o «VALIS» e outros livros dele… Por exemplo, «A Transmigração de Timothy Archer» é um romance profundamente esotérico e, de modo geral, todos os romances dele são altamente esotéricos. Quando nós vemos os filmes feitos a partir desses romances percebemos que as histórias perderam o esoterismo todo. Os filmes sobrevalorizam o aspecto espectacular. Por isso é que a herdeira dele proibiu, a partir de uma certa altura, que os livros fossem adaptados para cinema: porque não estavam a reproduzir o verdadeiro espírito da obra do Philip K. Dick, isto é extremamente interessante. Depois, há um cinema esotérico estranho, que é o caso do «The Matrix», que é altamente esotérico, também.

DS – Além de ser muitíssimo derivativo. É sincrético.

AdM – Pois.

DS – Vai buscar umas coisas aqui, outras ali… E plagia altamente outras obras de ficção que passaram mais abaixo do radar. Mas quando penso nos filmes do António… Acho que o António era o cineasta perfeito para adaptar ao cinema o romance «A Voyage to Arcturus» do David Lindsay. É um fabuloso romance gnóstico, esotérico, apesar de ser uma ficção científica. O crítico de literatura que escreveu o «The Western Canon», o Harold Bloom, tentou armar-se em romancista com uma sequela para esse romance, intitulada «The Flight to Lucifer: A Gnostic Novel». É uma sequela não-oficial de «A Voyage to Arcturus».

AdM – Não conhecia esse livro.

DS«A Voyage to Arcturus» consiste numa história em que duas personagens vão, obviamente, para a estrela Arcturus… Viajam numa espécie de multiverso gnóstico-cabalístico, é muito interessante. E é verdadeiramente esotérico, não usa o esoterismo como uma pátina.

AdM – Ora aí está! Como disse, não conheço esse livro, mas pelo que me diz, isso está certo e faz muito sentido. Por outro lado, em termos de esoterismo… Não é uma coisa muito bem vista. Ou é usado num sentido banal, ou seja, paranormal… até há por aí uma quantidade de filmes e séries de televisão paranormais que nunca mais acabam e que, às duas por três, acabam por ser vagamente esotéricos, mas pela rama, porque só roçam o esoterismo, não são esotéricos no núcleo… Aliás, o verdadeiro esoterismo é indissoluvelmente iniciático, tem de estar ligado à superação de provas e à correlativa iniciação nos Mistérios. Não conheço, assim, nenhum filme cem por cento esotérico. Com os romances é diferente, ainda há alguns… do século XIX e do século XX… Os livros do Thomas Mann têm muito esoterismo, o «Doutor Fausto», por exemplo. «O Eleito», também dele, é um romance altamente esotérico… Tal como, ou mais ainda, o romance «Zanoni», de Bulwer-Lytton, ou os romances cabalístico-iniciáticos de Gustav Meyrink. E até do Bulgakov, que era comunista, temos o «Margarida e o Mestre», a maneira como tudo está composto no livro, a corte diabólica transposta para a modernidade, com as palhaçadas modernas… São romances que de uma forma mais ou menos explícita, ou mais ou menos implícita, incluem sempre uma proposta iniciática… Há, de facto, um certo esoterismo, talvez disfarçado, que anda por aí em algumas obras, mas, curiosamente, ele não é assumido e a crítica literária quando se refere a essas obras não refere o seu lado esotérico, refere outros. O lado fantástico, eventualmente, e o lado… Como é que eu hei-de dizer?... Levam essas fantasias como se fossem críticas a realidades que não estão bem.

DS – É a velha história de que o fantástico só é válido enquanto alegoria de situações sociais.

AdM – Para desmontar coisas que não estão bem e que, então, se levam para o lado do fantástico, de maneira a gozar com elas, para demonstrar que são um disparate. Agora, uma coisa esotérica pelo esoterismo… Ou se cai numas chachadas, como em alguns romances portugueses… Uma pessoa até começa a chorar, porque são de uma esoterice tão imediatista que acabam por ser só pirosos. Não são livros subtis. Quando a editora Hugin funcionava, por exemplo… eu era muito amigo deles… pediram-me para apresentar um romance esotérico de uma autora portuguesa. Fui ler o romance e ia morrendo de susto: era altamente esotérico, mas de um esoterismo bê-á-bá!… Parecia uma novelização daqueles manuais de ocultismo-de-quiosque que se vendem por aí a granel. Era muito mau. E eu pensei: “ninguém vai engolir isto, é uma vergonha completa…” Eu já não podia dizer não e tinha de apresentar o livro. Ora, como é que eu descalcei esta bota? Geralmente, quando se apresenta um livro de que a gente gosta, diz-se que o livro é bom, explica-se porquê e citam-se excertos. Quando a gente não gosta… Aliás, felizmente, foi a única vez que me aconteceu não gostar de um livro que apresentei… Então, como é que fiz? Do que é que eu me lembrei? O tema que a autora abordava era um tema esotérico e por acaso, como tema, até era interessante: então, comecei a falar sobre esse tema e sobre autores que já o tinham abordado e nunca referi o livro dela. Fiz a apresentação toda sem falar no livro apresentado, somente à volta do tema que a autora escolheu e sobre autores, este e aquele, que mais ou menos tinham falado do mesmo tema. Mas romances esotéricos não há muitos. Há é ensaios. Sobre o quinto-império, por exemplo. O Fernando Pessoa também andou nessas áreas e tem uma série de lucubrações sobre isso, algumas muito interessantes, mas quando se entra pela ficção, propriamente dita, seja na literatura ou no cinema… Cinema português esotérico, não conheço nenhum. Fantástico, sim, há umas coisas, não muitas, mas esotéricas, que me lembre, não conheço nenhumas. E mesmo no estrangeiro, no cinema estrangeiro, não me lembro de nada verdadeiramente esotérico, no sentido iniciático do termo, tirando, talvez, como disse, «The Matrix», apesar das reservas, bem observadas, que o David levantou, e, curiosamente, toda a proposta estrutural da série de filmes «Star Wars»…. Mas o facto de eu não me lembrar de outros não quer dizer nada, porque não conheço tudo. Se calhar até há muitas coisas interessantes. Como, aliás, agora o David me apresentou o autor da «A Voyage to Arcturus», que eu não conhecia. É um exemplo.

DS – Quando o António chegou à altura funesta de não conseguir filmar, pode dizer-se que continuou a explorar os seus temas na escrita ou ela já o acompanhava?

AdM – Já acompanhava.

DS – Mas, de certa forma, o que é que o António encontra na escrita que não encontra no cinema? Ou as mesmas linguagens conseguem servir o mesmo propósito? Conseguem transmitir a mesma mensagem?

AdM – Não. São veículos diferentes. Eu comecei pela escrita, como costumo dizer, quando tinha oito anos, nove anos de idade. Escrevia histórias aos quadradinhos. Portanto, a imagem e a escrita acompanhavam-se. Mais tarde, quando comecei a fazer cinema, a escrita acompanhou-me sempre. Eu sempre escrevi os meus próprios guiões. Nunca fiz um filme com um guião escrito por outra pessoa, como é muito corrente… Alguém escreve o guião e depois vem o realizador e filma-o… Isso nunca aconteceu comigo. Eu era escritor. Mesmo que as ideias de raiz não fossem minhas, como em alguns casos em que filmei adaptações, como o «Domingo à Tarde», que se baseia num romance, ou «A Promessa», que se inspira numa peça de teatro, eu sempre escrevi os guiões: para mim, escrever, sentir a plástica da escrita, a plástica da palavra, é muito importante. E eu transmiti isso para os guiões. Digamos que sempre fui romancista – ou ficcionista literário. A parte literária é muito importante para mim. A dimensão audiovisual do cinema era um certo tipo de extensão que ajudava a transmitir de outra maneira o que eu dizia em literatura. Em teatro dizem-se as coisas de uma maneira, numa certa forma de expressão, no cinema dizem-se de outra e em literatura em outra. Há certas coisas que digo literariamente que não consigo dizer em cinema. E inversamente: há coisas que faço e transmito em cinema que não consigo transmitir literariamente. São meios diferentes, artes diferentes, têm lógicas comunicacionais diferentes, e é por isso que certas adaptações de romances para cinema desagradam a muitas pessoas. Porque quando leram os romances visualizaram as coisas de uma maneira que não corresponde àquilo que vêem, depois, nos filmes… os actores não se parecem com as figuras que imaginaram, por exemplo… E, depois, não gostam dos filmes, que até podem ser muito bons, enquanto cinema. Trabalhar no cinema foi uma experiência muito importante para mim, porque me permitiu criar um tipo de formas de expressão, para transmitir determinadas coisas, que foram fascinantes de descobrir. Não consigo exprimir literariamente certos sentimentos que consigo colocar em filme com um actor, se ele for bom e eu souber dirigi-lo bem. O actor, com um simples piscar de olhos, uma expressão, uma contracção no rosto ou outro movimento, transmite sentimentos que dificilmente seriam descritos ou dificilmente ficariam tão bem num romance, ou então exigiriam páginas e páginas de descrição literária. O cinema teve essa importância, mas, ao mesmo tempo, fui sempre escrevendo: nunca deixei de escrever ficção. Não publicava, porque, fazendo cinema, tinha de viver dele. E muitas das coisas que filmei nem sequer foram coisas que me interessaram muito: era o chamado “cinema alimentar”, era um cinema que me permitia pagar a renda da casa e alimentar a família, documentários promocionais ou cinema publicitário…. Pronto, lá realizava, de vez em quando, uns filmes de longa-metragem que tinha interesse em fazer, mas nunca deixei de escrever. Contudo, nunca me preocupei em publicar. Tinha muita coisa escrita, novelas, contos, até um romance começado, mas não tinha tempo de procurar editor. Quando o cinema começou a abrandar… Porque não foi cortado de repente… o corte aconteceu a pouco e pouco. Foi, praticamente, desde que fiz «Os Abismos da Meia-Noite» que começou a haver uma relutância da parte dos júris do Instituto de Cinema em financiar aquele tipo de cinema “esquisito”. Aliás, com «Os Abismos da Meia-Noite» já tive dificuldade, porque o próprio Ministério da Cultura da altura… Imagine!, houve uma directora-geral que se meteu com o argumento do filme, contestando-o: “mas isto sai muito caro, estes cenários, esta fantasia toda”… E eu lá tive de argumentar com uma senhora, uma funcionária que eu nem sabia quem era – e já não estava no tempo da censura, que, nesse tempo, eu tinha mesmo de argumentar, senão os gajos cortavam tudo. Entre esse filme e «Os Emissários de Khalôm»«Os Abismos da Meia-Noite» estreou em 1984, mas é de dois anos antes, por aí, e «Os Emissários de Khalôm» é de 1987, por isso está a ver que têm cinco anos de diferença, cinco anos que passei sem filmar. Quer dizer, sem filmar, não, porque filmei que nem um desesperado, para sobreviver. Fiz programas para a televisão, documentários, fiz trinta-por-uma-linha, mas não fiz o cinema que eu queria. Depois, lá consegui fazer «Os Emissários de Khalôm», com muita dificuldade, porque o júri estava muito relutante. A seguir, se não me engano, fiz «A Maldição de Marialva», que foi uma encomenda da RTP, curiosamente. Tive sorte, porque não tive de passar pela aprovação de nenhum júri do Instituto de Cinema… Eu prefiro chamar-lhe Instituto de Cinema, genericamente, porque aquilo foi mudando de nome: era IPC, depois passou a ser IPACA, depois foi o ICAM, agora é o ICA… Eu chamo-lhe apenas Instituto de Cinema. O filme «A Maldição de Marialva» foi uma encomenda da RTP, feita no tempo em que o Fernando Lopes era director da programação da RTP2, se não me engano, quando o canal entrou num convénio com seis televisões europeias para se fazer uma série, a tal série «Sabbath», em que cada uma… a francesa, a italiana, a espanhola, a alemã… produzia um filme sobre um tema fantástico do seu próprio lendário tradicional, de referência. Depois, que faziam? Cada televisão oferecia uma cópia do seu filme às outras: ou seja, cada televisão produzia um único filme e recebia seis! É um esquema inteligente. Por acaso, é interessante. A RTP alinhou nisso e calhou-me «A Dama Pé-de-Cabra». Foi o João Palma Ferreira que escreveu uma espécie de sinopse que eu depois desenvolvi num guião, mais uma vez todo escrito por mim, diálogos e tudo, mas essa ideia básica, essa tal sinopse, foi do João Palma Ferreira. Mas o Instituto do Cinema não teve nada a ver com este filme, portanto não houve júri, foi uma escolha directa. Ou seja, quando a RTP teve essa ideia para essa encomenda perguntou-se “bom, então qual vai ser o tema português?” e o Fernando Lopes, que estava na direcção de programas e era muito amigo do João Palma Ferreira, como eu, veio dizer-me que ele tinha uma ideia, tinha uma sinopse para uma nova versão de «A Dama Pé-de-Cabra». Uma versão popular que o Palma Ferreira tinha ouvido na Beira Alta. Aliás, na zona de Linhares da Serra, de Trancoso, e da vila de Marialva, na Beira Alta, onde a gente filmou. Essa ideia foi aceite pelo produtor internacional, que estava a tomar conta desse projecto europeu, um espanhol chamado Antonio Cardenal, que até era um gajo porreiro. Contactei com ele muitas vezes, fomos a Madrid várias vezes por causa disto… Ora, ele perguntara “então quem é que vai escrever o guião e realizar o filme, da parte portuguesa?” e o Fernando Lopes respondera-lhe “aqui em Portugal só há um maluco capaz de fazer isto, que é o António de Macedo”. Foi assim que vieram ter comigo, perguntando-me se eu queria fazer um filme sobre aquele tema. Disse-lhes que sim. Já tinha, portanto, a sinopse… escrevi o guião, que foi aprovado internacionalmente pelo tal consórcio, e, pronto, fiz o filme, que ficou a chamar-se «A Maldição de Marialva». A seguir, fiz outro filme, «O Altar dos Holocaustos», que também foi uma encomenda para televisão, para a RTP, que é uma série de três filmes, mas, no fundo, todos somados, dão um filme só. É um tema fantástico, esotérico, passado na véspera de Natal, com todas as implicâncias místico-mágicas que isso tem… E, entretanto, eu continuava a concorrer todos os anos aos financiamentos do Instituto do Cinema. Entre 1987, com «Os Emissários de Khalôm», até 1989 ou 1990, com «A Maldição de Marialva»«O Altar dos Holocaustos» foi em 1992, por aí… Ou seja, todos esses anos fui concorrendo com vários projectos e fui, sempre, levando sopa – já com o argumento de que o meu cinema era um tipo de cinema que não interessava ao cinema português, que era muito esotérico, fantasioso de mais, não interessava a ninguém, etc. Mas, entretanto, como eu tinha recebido aquelas encomendas, «A Maldição de Marialva», «O Altar dos Holocaustos», mantive-me a trabalhar, incluso em publicidade audiovisual. Finalmente, houve um ano em que um dos guiões que eu apresentei, o «Chá Forte Com Limão», foi aprovado. Já tinha sido chumbado nos anos anteriores, mas naquele ano foi aprovado em virtude de uma circunstância inesperada e curiosamente divertida… O júri desse ano… O ano de 1992, se não me engano… era constituído, como de costume, por aqueles “intelectuais” que detestavam o tipo de cinema que eu fazia, mas estava lá um músico, o João Paes, que nessa altura trabalhava como compositor para os filmes do Manoel de Oliveira – ou seja, seria a última pessoa de quem eu poderia esperar que tivesse qualquer interesse nos meus filmes. Mas, é estranho, porque esse João Paes, que até compôs a música de, entre outros filmes, «Os Canibais», aquela cine-ópera do Oliveira, leu esse meu guião – que já tinha sido reprovado nos anos anteriores, mas, enfim, foi naquele ano que o João Paes foi jurado – e lutou sozinho contra os outros quatro ou cinco membros do júri para o impor, porque gostou muito do texto. Ele não me conhecia e eu só o conhecia de nome como sendo o músico das fitas do Oliveira. Ora, como ele se impôs de tal maneira, o que é que aconteceu? Como era o compositor do Senhor Manoel de Oliveira, os outros jurados não tiveram coragem de contrapor e agacharam-se. Assim, o «Chá Forte Com Limão» passou: porque o João Paes gostou do guião e, praticamente, impôs-se!… Quer dizer, ele não precisou de se impor, se calhar nem pensou nisso, mas como era compositor do Senhor Manoel de Oliveira, os outros membros do júri calaram-se e deixaram que o guião fosse aprovado. Eu fiz o filme, mas, a partir daí, já não houve nenhum “João Paes”. Não tive mais essa sorte.

DS – Foi uma angústia enorme.

AdM – Foi, em parte.

DS – Como se sentiu?

AdM – Senti-me irritado – ouça, e irritado de tal maneira que, desde essa altura, entre 1992 até ao ano 2000 ou 2001, estive numa guerra imparável, porque todos os anos concorria e todos os anos levava sopa. Em todos os variados projectos que apresentei. Um deles foi «O Pastor e o Magarefe», sobre o Frei Gil de Santarém, essa extraordinária figura do nosso lendário nacional (que existiu historicamente!), precursor e talvez inspirador do mito do Fausto e do seu pacto com o diabo.

DS – Que, depois, deu origem ao seu romance «As Furtivas Pegadas da Serpente».

AdM – Exactamente. Deu origem a esse romance. Isso aconteceu várias vezes: quando eu não conseguia fazer um filme, pegava no respectivo guião e transformava-os num romance. «A Sonata de Cristal» também é um exemplo desses: foi um guião que eu submeti, levando sopa dois ou três anos seguidos, e eu, depois, evidentemente, peguei nele e transformei-o num romance. O que aconteceu na década de noventa, e que, curiosamente, coincidiu em paralelo com a minha actividade de cineasta, é que uma colectânea de contos minha, «O Limite de Rudzky», que eu já tinha escrito anteriormente, ganhou uma espécie de menção honrosa num dos concursos de ficção científica da Editorial Caminho, ao qual concorri. Pensei: “olha, já agora, vou concorrer, para ver o que acontece”. Foi no ano em que o Luís Filipe Silva concorreu com «O Futuro à Janela». E foi assim que conheci o Belmiro Guimarães, que era director da colecção de fantástico e de ficção científica da Caminho. Eu não conhecia o Luís Filipe Silva, nem fazia ideia de quem era o Belmiro Guimarães – que me telefonou a dizer que eu não tinha ganho o prémio por uma unha negra, porque o júri ficara dividido entre dois textos, que, dos quarenta ou cinquenta que tinham sido recebidos naquele ano, eram os melhores. Os jurados ficaram divididos entre um trabalho e outro. Até que lá houve um desempate e optaram pelo livro do Luís, o que eu achei muito bem, porque o livro dele era muito bom e ele era um jovem, enquanto eu já tinha feito cinema, já tinha feito muita coisa. O Luís estava a começar, por isso ainda bem que o prémio foi para ele, mas como o júri também achou que o meu texto era bom… bom, enfim, quer dizer, pelo menos do ponto de vista deles… então decidiram recomendá-lo para publicação. Foi assim que o livro foi publicado, foi recomendado pelo júri. Coincidiu mais ou menos com a preparação do «Chá Forte Com Limão», que foi aprovado graças ao João Paes. Eu fiquei muito contente, porque o meu livro tinha sido editado. Assim, podia trabalhar em dois veículos: por um lado o cinema, por outro a literatura e em cada um deles eu podia transmitir coisas próprias de cada um; ou seja, complementavam-se. Como já tinha outro romance pronto, intitulado «Contos do Androthélys», aconteceu uma coisa que eu nem fazia ideia… Pensei “bom, agora tenho o romance pronto, lá tenho de andar outra vez a bater às portas dos editores”… E, enquanto pensava nisto, falei com a Rita Pais, que nessa altura era a revisora da Caminho… no fundo, era mais do que revisora, era aquilo que no meio editorial anglo-americano se designa por editor, que é um papel raro neste país, mas no qual ela era muito boa e até excelente, porque era compreensiva com os autores. Ela lia os textos dos autores e dava as correcções que tinha de dar, de acordo com aquilo que cada autor, realmente, queria dizer. Não impunha, como fazem os nossos revisores, que impõem as suas próprias manias, que é o pior que pode haver… como de costume, à portuguesa! Ela, não. Ela trabalhava à inglesa: lia o texto dos autores e aquilo que sugeria era aquilo que convinha, realmente, transmitir-se da melhor maneira, transmitir-se de maneira mais eficaz aquilo que os autores queriam dizer mas não tinham sabido lá muito bem. Ela ajudou-me muito nisso. Portanto, eu falei com a Rita Pais e disse-lhe “por acaso, agora, tenho outro romance, não sei o que lhe hei-de fazer”… O que é que eu pensava? Que tinha de andar, outra vez, a bater às portas dos editores. E ela diz-me: “então, mas você já publicou um livro connosco, publicámos «O Limite de Rudzky», você passou a ser um autor da Caminho”. Eu não sabia que eles tinham este esquema, nessa altura. “Passei a ser um autor da Caminho?” “Pois, agora é assim: qualquer original que você tenha, entrega aqui e a gente publica. Nem discutimos.” E eu disse: “Isto é genial.” E assim foi. Foi assim que eu percebi que tinha ali uma porta aberta, que, ainda por cima, tinha o beneplácito do Belmiro Guimarães, que se tornou um grande amigo nosso, quer dizer, da malta da ficção científica dessa época, e passámos todos a editar lá: o Luís Filipe Silva, o João Barreiros, eu, o Daniel Tércio, a Maria de Menezes, o José Manuel Morais, o Luís Sequeira… Editei por eles o romance «Contos do Androthélys», um calhamaço de trezentas e tal páginas… Entretanto, estreou o «Chá Forte Com Limão»: não teve sucesso nenhum. Esteve em exibição durante uma semana inglória no Cinema São Jorge, um bocado às moscas. As pessoas acharam-no detestável. Teve críticas horríveis que diziam que era um disparate pegado, de uma ponta à outra, que não tinha graça nenhuma. Portanto, a coisa morreu por ali… Em termos de cinema, continuei a concorrer ao Instituto de Cinema com guiões para mais filmes, como «O Pastor e o Magarefe», falámos dele há pouco, e outros… «A Pomba», também… e um outro, «Apaga a Lua e vem p’rà Cama»… Vários guiões, todos a levarem sopa, sempre com o mesmo argumento: o de que era um cinema que não interessava ao cinema português, que era um cinema “desligado das realidades”. E isto era feito de uma maneira tão despudorada que dava para ver claramente as manipulações dos júris sucessivos, pelos vários anos. Depois deu-se aquela cena desgraçada de eu reunir uma volumosa documentação para provar as manipulações e as fraudes e as corrupções que iam pelos júris, que eram descaradas, perfeitamente vergonhosas. Reuni essa documentação, entreguei-a toda ao provedor de justiça e fiz queixa, apresentei uma queixa formal. Isto já no ano de 2000 ou 2001, e o provedor de justiça demorou seis meses para responder-me e respondeu que estava tudo de acordo com a lei. Ora, que estava de acordo com a lei sabia eu, o problema era outro, era a lei que estava corrupta e prestava-se às manipulações mais vergonhosas. Porque a lei dizia que a apreciação dos júris é feita segundo tais e tais critérios, “qualidade artística e cultural”, “potencialidades estéticas”, “qualidade de comunicação com o público”, etc. … uma porção de coisas profundamente subjectivas às quais qualquer júri podia dar “pontuação zero” ou dar “pontuação dez” e estar sempre certo. Não sei se está a ver o grave que isto é. É evidente que critérios destes se prestam a ser manipulados, e a favorecer o “clube de amigos”. Portanto, eu fiz queixa formal e o bom do provedor, seis meses depois, responde-me que “não podemos fazer nada, porque está tudo de acordo com a lei”… Eu disse: “oh, senhor provedor, que está de acordo com a lei, sei eu… O senhor é provedor de justiça, não é provedor de leis: já o Platão sabia distinguir entre as leis, que são humanas e falíveis, e a justiça que é divina. Portanto, o senhor é provedor de justiça, quero que o senhor diga ao governo que esta lei está corrupta, que é uma lei que se presta a manipulações e tem de ser mudada.” Não me respondeu. A partir daí, não consegui fazer mais nada. Desisti. Até porque começou a ser caro apresentar um projecto: era preciso apresentar o projecto em oito ou nove exemplares, para os jurados e mais não sei para quem, com o guião completo, orçamento completo, os diálogos, as localizações, o dossiê de produção… Ficavam uns oito ou nove calhamaços que custavam aí uns trinta contos nessa altura e nós, na Cinequanon, não tínhamos dinheiro para estar a investir, constantemente, cerca de trinta contos de cada vez para ir tudo para o cesto. A partir daí, desisti. Pensei: “desisto de fazer cinema, continuo a escrever”. Porque, entretanto, fui publicando vários romances na Caminho. Publiquei o último em 2004, que foi a altura em que eles começaram a entrar no Grupo Leya e, a partir daí, fiquei sem editor: a Caminho enfeudou-se à Leya e o Belmiro Guimarães adoeceu gravemente e reformou-se e ele é que era o nosso sustentáculo lá dentro, era ele que gostava de ficção científica e de fantástico, porque os outros gestores da Caminho detestavam esse tipo de literatura “de género”. De maneira que, mal ele se reformou, os outros venderam-se à Leya e acabaram com a Colecção Caminho Ficção Científica, foi imediato. Sucedeu-se aquela história que já lhe contei, deles deitarem fora todos os livros que tinham nos armazéns, meus e de outros autores: foram todos destruídos. Ainda consegui publicar «A Conspiração dos Abandonados» na Zéfiro e «O Sangue e o Fogo» na Saída de Emergência e, agora, não sei… Agora estou à espera, estou pendurado. Estou assim… Ando a ver… Mas, de qualquer maneira, isto vinha a propósito da pergunta se houve um desgosto muito grande, digamos assim, do facto de não ter continuado a fazer cinema, devo dizer que sim e que não. Porquê? Digo que sim, porque, de certa maneira, foi um dos veículos através dos quais eu podia transmitir um certo tipo de coisas que em literatura talvez não conseguisse, mas, por outro lado, digo que não, isto é… Até senti um certo alívio, porque com o correr do tempo e com as dificuldades progressivas… É assim: este país foi-se afastando. Nos anos trinta e quarenta o cinema português era igual em qualidade técnica ao cinema europeu que se fazia nessa época. Você vê um filme português dos anos trinta e quarenta, como o «Inês de Castro» ou o «Camões», os filmes de grande espectáculo do Leitão de Barros, ou o cinema do António Lopes Ribeiro e do Jorge Brum do Canto, mesmo as comédias musicadas do Cottinelli Telmo, do Chianca de Garcia, do Arthur Duarte, e percebe logo que o preto-e-branco desses filmes tem uma grande qualidade técnica e que a movimentação de câmara e a música, não ficavam abaixo de um filme europeu da mesma época. Mas com o correr do tempo foi-se dando uma divergência cada vez maior entre o cinema português e o estrangeiro – de Badajoz para lá! E eu fui sentindo isso, cada vez mais acentuadamente, à minha própria custa: isto é, os nossos laboratórios e estúdios iam ficando cada vez piores à medida que o tempo avançava. Nos anos sessenta, consegui fazer um certo tipo de efeitos especiais nos laboratórios da Tóbis e da Ulyssea Filme, nos anos setenta, também, e nos anos oitenta, mas já com mais dificuldade… Nos anos noventa com maior dificuldade ainda… Foi preciso vir o apoio de Espanha para fazer certo tipo de efeitos para «A Maldição de Marialva», porque cá já não os conseguiam fazer – e mesmo assim não ficaram bem. A divergência – o sacrifício – de fazer cinema em Portugal foi-se acentuando. A partir do ano 2000 já não me apetecia fazer cinema em Portugal, porque sabia que não iria conseguir fazer aquilo que eu queria transmitir, por falta de substrato tecnológico, para não dizer económico. Ia ficar restringido a fazer umas coisinhas que coubessem numa caixa de sapatos e eu não estava interessado nisso. De maneira que o desgosto foi-se atenuando, porque fui passando para a literatura, que era uma coisa que já vinha de trás. Mas em relação à “censura” das candidaturas, sabe o que ela é? Acho que é uma desculpa estúpida da parte de quem não se quer maçar. Quer dizer, ter ideias dá trabalho, ter ideias é cansativo e gerir ideias novas é um frete do caraças: assim, se tudo não passar de uma espécie de papa de linhaça cinzenta é óptimo.

DS – Falando em cinzentismo, como é que o António conseguia fugir à outra censura, a dos cortes?

AdM – Era por subterfúgios, evidentemente, e, em outros casos, era mesmo por guerras. Havia guerras. Em alguns casos, não consegui. Foi o caso do «Nojo aos Cães», de 1970, que foi totalmente proibido. Só depois do 25 de Abril de 1974 é que começou a ser visto. E nem sequer passou nos cinemas: só passou, vagamente, na televisão, na RTP2, a uma hora assim um bocado tardia… Mas, em outros casos, era pela estupidez dos censores, que não viam certas coisas. Como, por exemplo, no caso de «Sete Balas Para Selma», que é de 1967. Há três canções, cantadas pela Florbela Queirós, e uma delas faz uma alusão ao Bertolt Brecht, que era uma figura maldita, e à música que o Kurt Weill compunha para as peças dele. Aliás, os censores tinham listas com os nomes proibidos: eles já nem liam qualquer texto desses autores, eram logo para cortar. E o Brecht estava na lista de autores que eram imediatamente cortados, tal como as canções do Weill. Ora, uma das canções cantadas pela Florbela… o Alexandre O’Neill, que era malandro e até estava, mais ou menos, ligado ao partido comunista que, nessa altura, ainda estava na clandestinidade, disse-me: “tenho aqui uma ideia…” Tinha uma espécie de pequeno poema, que pediu para ser musicado – a música é do Quinteto Académico –, uma espécie de homenagem à «Ópera dos Três Vinténs» do Brecht, a «Die Dreigroschenoper», musicada pelo Kurt Weill. Há uma personagem, o chulo, que é o… como é que ele se chama?... É o Mackie Messer, que na versão em inglês dessa ópera, a «The Threepenny Opera», se chama Mack the Knife. Na versão francesa é Maquereau, que, em francês, quer dizer “carapau”, mas também é o termo que eles utilizam para “chulo”. E o Alexandre O’Neill achou, em colaboração comigo, que íamos pôr a Florbela a cantar uma canção com frases musicais da balada «Mack the Knife» do Kurt Weill. É aquela canção muito conhecida. Portanto, o Quinteto Académico compôs uma música, com indicação minha e do O’Neill, com umas referências musicais à «Die Moritat von Mackie Messer», no original, e a própria letra do O’Neill dizia “O Maque, o Maquereau, que ninguém ama, ninguém amou”“Quando entra na sala, esvazia a sala à bala”… Ora bem, o censor deixou passar tudo.

DS – Porque não conhecia.

AdM – Porque não conhecia. Nem sequer sabia o que queria dizer Maquereau, porque, em português, “maque, maque, maquereau” até é uma coisa que fica gira. Bom… E eu lembro-me que, nessa época, o francês era a língua culta, o inglês não era muito usado, mas o francês sim e toda a gente sabia que Maquereau era o chulo, não é? Mas o censor não sabia, pronto. Isto só para dizer que há certo tipo de subterfúgios que podiam ser utilizados. Como aquilo não falava em Brecht, era só uma referência musical, o censor fez lá ideia!... Quem visse a fita reconhecia, de imediato, o que se estava a passar, mas o censor não reconheceu e deixou passar. Em alguns casos, não passou: no «Domingo à Tarde» queriam cortar-me quatro cenas, tive uma guerra com eles, ficaram duas… É claro, felizmente, eles não cortavam o negativo, portanto as versões que estão agora a ser exibidas no ciclo na Cinemateca são as integrais. Mesmo aquelas que foram cortadas pela censura estão a passar na integral, porque eles cortavam o positivo, que era a cópia de exibição, mas não tocavam no negativo, o que era óptimo! Com «A Promessa» foi muito complicado, porque eles queriam cortar duas cenas grandes ao filme, que são duas cenas muito importantes, a do diálogo dos padres e a final. Isso dava-me cabo do filme. Aquela fita sem aquelas duas cenas ficaria… E, aí, foi uma guerra em que fui eu e o Fernando Lopes, nessa altura presidente do Centro Português de Cinema, que era o produtor do filme, fomos discutir com o Moreira Baptista, que era Ministro do Interior. Depois de uma guerra muito grande, que durou uma tarde inteira a chatearmos a cabeça ao homem, ele por fim, já farto de nos aturar, sobrepôs-se à censura, mas avisou: “se alguém se queixar, eu tiro a fita de cartaz imediatamente”. Felizmente, ninguém se queixou, veio o 25 de Abril logo a seguir, porque a fita estreou em Fevereiro de 1974, e esteve não-sei-quantas semanas em cartaz e não houve problema nenhum.

DS – Apesar disso, o António nunca colocou ou, pelo menos, não imprimiu, uma tónica política muito forte nos seus filmes.

AdM – Não, porque, vamos lá a ver, a política estava implícita, porque naquela situação a política só podia ser uma: era lutar contra o regime. Depois criava-se uma monotonia e isso era visível em certas…

DS – A monotonia da oposição?

AdM – É um bocado isso, porque era sempre o mesmo Salazar.

DS – Ser subversivo já era aderir ao regime?

AdM – De certa maneira. Isso é muito óbvio num filme do Artur Ramos, uma pessoa de quem eu era muito amigo, o «Pássaros de Asas Cortadas», uma adaptação de uma peça de teatro do Luiz Francisco Rebello, que era um homem oposto ao regime, declaradamente oposicionista, com colaboração no guião do Luís de Sttau Monteiro, outro grande oposicionista ao regime. O próprio Artur Ramos era do partido comunista, na clandestinidade, claro. E o filme, todo ele, trata da luta de classes, chamemos-lhe assim. Tem a criadagem, por um lado, o chauffeur, depois os senhores ricos… Mas tudo isso para poder passar na censura acaba por ficar uma coisa… Bom, há para ali uns criados, há uns senhores… às vezes discutem… O filme é interessante, bem feito… O Artur Ramos fazia os filmes com muito cuidado, com um apurado perfeccionismo, digamos… Depois a censura cortou-lhe uma coisita ou duas, uma cena em que havia um quadro com um antepassado que está com ar de gozo enquanto uma personagem diz uma frase politicamente mais “ousada”, mas não muito… Ficou-se por ali, quase nem se nota que é um filme oposicionista. Outro em que se passou o mesmo foi «O Recado» do José Fonseca e Costa, que tem a ver com a clandestinidade do partido comunista. Há, assim, uns fulanos que desembarcam de noite e são perseguidos pela polícia e tal… Uma pessoa vê esse filme e a intenção, na ideia do Fonseca e Costa, é que aqueles tipos eram uns comunistas que queriam fugir para o lado de lá da fronteira e estavam a ser perseguidos pela Pide. Mas ninguém percebe nada. Dizia até o João César Monteiro, com aquela verrina que lhe era muito própria, que “bem, aquilo, no fundo, vê-se que é uma polícia de fronteira a perseguir o Partido Contrabandista Português”… andam uns contrabandistas por ali e a polícia de fronteira persegue-os. Quer dizer… O problema de fazer um cinema francamente político desembocava nisto: quer a gente quisesse, quer não. Isso não me interessava, era uma banalidade muito grande. Até porque dizer mal do regime era banal, tudo aquilo era obviamente banal, não acrescentava nada. Dizer-se “vivemos num regime de opressão”… Pois vivemos!... Em vez de estar a dizer o óbvio, preferi fazer um filme como «Nojo aos Cães», em que a opressão é dada de outra maneira. Tudo aquilo é subversivo, até os próprios estudantes que são subversivos acabam à porrada uns aos outros, às duas por três, porque não se entendem… Quer dizer, a subversão já está dentro da subversão: os próprios opositores também já não se entendem – o que, aliás, era verdade: a seguir ao 25 de Abril, com a liberdade declarada, as fricções vieram ao de cima, a UDP não se entendia com o PC, o POUS e o PCP-ML não se entendiam com o PC nem com a UDP, o MRPP não se entendia com a UDP nem com o PC nem com ninguém… No fim resultava uma palhaçada que não fazia muito sentido. E o «Nojo aos Cães» é, um bocado, o reflexo disso: tanto é que foi todo completamente proibido pela censura, como é evidente.

DS – Observando toda a sua carreira, o António comprometeu-se com que objectivo? Qual é a mensagem que a sua obra tem? Ou seja, agarrando em todos os filmes, todos tão diferentes, qual é o seu único compromisso?

AdM – O meu único compromisso é a liberdade de expressão. A liberdade do criador. Fundamentalmente, é isso. É o artista ter uma ideia, seja ela qual for: política, esotérica, metafísica, não importa, materialista… O artista tem uma ideia e tem de ser livre para exprimir essa ideia até ao limite da imaginação. O problema é quando não se tem nada para… Há um autor espanhol, não me recordo do nome dele, mas é muito conhecido, que diz “maldito o artista que não tem nada para dizer”. É esta a minha grande mensagem, também. Faço minhas as palavras deste autor anónimo, cujo nome não recordo com muita pena.

DS – Mas quem não tem nada para dizer não é artista.

AdM – Ah, mas aí é que está… Nós vemos muitas obras que estão por aí, obras artísticas, filmes… até bons filmes… Mas espreme-se aquilo e… A “Nouvelle Vague” toda, na minha opinião, é uma cosmética.

DS – Foram experiências.

AdM – Foram experiências, mas cosméticas que, no fundo, estão a disfarçar…

DS – Agora vamos filmar com a câmara aqui, agora assim…

AdM – …estão a disfarçar a falta de ideias. Repare que a gente vê os filmes da “Nouvelle Vague” e vê que eles não têm, rigorosamente, ideias nenhumas. Têm ideias estéticas, sim senhor, experiências, uma maneira fresca e nova de dizer as coisas, como não se dizia antigamente… Falam com muita graça e sensibilidade sobre coisa nenhuma.

DS – É como a experiência do Guericke, do Otto von Guericke, a dos hemisférios de Magdeburgo, agarrados pelo vácuo… O vácuo tem uma força extraordinária.

AdM – Exactamente!

DS – O vazio tem uma força extraordinária!

AdM – Exactamente, lá está! É a força do vazio. É isso mesmo. Há muitos filmes e romances que a gente espreme e diz “espera lá, o que é que este gajo quis dizer com isto?…” Vemos uns filmes muito bonitos, muito bem feitos, bem filmados, à francesa, não é?, com uns diálogos que até têm graça, mas o que é que eles querem dizer? Não querem dizer nada. Zero. Não têm uma única ideia por trás. Isso é que me horroriza. O artista tem de ser livre: que diga o que quiser, desde que tenha coisas para dizer. “Maldito o artista que não tem nada para dizer.” Há artistas que são artistas e não têm nada para dizer, é horrível. Têm só o prazer de mexer na matéria. Ou escrevem muito bem ou pintam muito bem ou filmam muito bem, mas não têm nada para dizer. E o que eu quero transmitir com os meus filmes é o seguinte: é preciso ter ideias! Mesmo que sejam contestáveis, mesmo que não sejam certas, mesmo que sejam grandes disparates. Podem ser, mas desde que dêem discussão, desde que ponham as pessoas a pensar, quer estejam de acordo ou não estejam. Alcança-se um objectivo. É isto que eu quero transmitir, que é muito importante: artistas, sejam livres! Esgotem a imaginação até ao máximo dos limites – para além dos limites, de preferência.

(Continua.)