quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Um retrato do nosso tempo


Como uma espínula rasgando a vestimenta episcopal que deveria preguear, a prancha com o homem em cima espinoteia em sentido descendente na água alvoroçada, atraída pelo magnetismo das expectativas de quem na praia a sente como a chegada de um presente de Natal. O momento é tão orgânico que é quase artificial: não estamos habituados a tanta elementariedade; não hoje, nem no futuro. Empurrado pelo casco aquático, garranchado como os das bestas, o surfista é uma figura fanerogâmica; limnófobo, certamente, heróico, até, mas, a uma observação mais concentrada - mendeleevianamente concentrada -, algo não faz sentido nesta imagem. Algo mais, além do surfista, é ímpar - insubmersível, impolarizável. De repente, como uma ânfora de talassita, recuperada do abismo por secretas erupções subaquáticas, a resposta apresenta-se frágil e transparente - vidrina.

Esta imagem é o retrato perfeito dos nossos tempos.
Idolatramos malabaristas molificativos que, muloscóides, são pouco menos que água suja sem as suas conchas coloridas, sem os instrumentos da sua falsídia. Fingem lutar contra forças ciclópicas, mas, na verdade, catamênicos, ondulam no mesmo sentido - e nós, perdidos na aleuromancia que o esfarinhar da espuma na areia nos influencia, somos tomados por parvos. Não há nada de útil em deixarmo-nos ir com a corrente. Sobretudo, nada de heróico. Não existe luta, aqui, não existe luta em nós: apenas paracêntese, apenas o desejo de ser dejectado - vulgocracia. Não queremos vencer: queremos perder, mas perder com o gáudio dos tolos, como se vencer fosse imoral. Queremos ir com a corrente.

Atrás, temos a onda do mundo - e ela será sempre maior do que nós. Uma decisão impõe-se: mostramos-lhe as costas ou o rosto?