segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Diário plutónico #1

Há catorze dias que sou dono de um gato preto e branco, com (mais ou menos) três meses de idade, a que chamei Plutão. Embora tenha alguma experiência a lidar com gatos, este é o primeiro que possuo e o mais novo com que contactei até hoje: foi-me oferecido por uns amigos, que o recolheram da rua.

No que concerne aos feitios, existem dois tipos de gatos: os tímidos e os curiosos. Plutão é muitíssimo curioso, o que é óptimo, porque, em regra, os gatos curiosos são os mais amistosos. Escrevi «mais amistosos», porque um certo grau de indocilidade será sempre de esperar. Os gatos não são como os cães: não fazem nada para agradar aos donos e é inútil castigá-los quando se portam mal. Estas idiossincrasias relacionam-se com um facto muito simples: os gatos comuns ainda não foram totalmente domesticados e retêm todos os comportamentos do gato selvagem africano, do qual descendem.
Qualquer domesticador de grandes felinos (leões, tigres, leopardos) sabe que castigar esses animais durante os treinos é uma perigosa perda de tempo, porque eles não entendem o conceito e apenas se tornam mais violentos. Os animais selvagens (incluindo os semi-selvagens gatos comuns) só reagem bem diante de reforços positivos: comida e carícias (preferem comida, todavia).
Os cães, por exemplo, foram domesticados muitíssimo antes dos gatos serem adoptados como animais de companhia e o apuramento de diversas raças domésticas de gatos é uma prática que remonta há, apenas, cento e cinquenta anos - é por essa razão que os gatos comuns e os gatos selvagens africanos são, praticamente, idênticos (inversamente aos cães e aos lobos).
Os cães foram seleccionados artificialmente para serem bons soldados, para terem um elevado sentido de obediência e tolerância total para com os caprichos dos donos que, hierarquicamente, lhes são superiores. Evoluíram para criar relações verdadeiramente simbióticas com as pessoas, ao ponto de algumas raças caninas terem desenvolvido sobrancelhas proeminentes de modo a serem capazes de comunicarem com mais eficácia: estes animais sabem interpretar expressões faciais humanas e como agir em conformidade com elas, mesmo que nenhum comando verbal ou gestual lhes seja dado pelos donos. Por outro lado, os gatos têm rostos inexpressivos e também não distinguem os rostos humanos uns dos outros, por isso é inútil avaliar o comportamento ou o estado emocional de um gato através do seu rosto ou tentar que ele nos entenda por via das nossas expressões faciais.
Os gatos comunicam connosco, quase em exclusivo, através de linguagem corporal: temos de aprender a interpretar os gestos que fazem com as orelhas e com as caudas. Alguns são idênticos aos da linguagem corporal canina, mas os significados são muito diferentes; por exemplo, os cães abanam horizontalmente as caudas para demonstrar contentamento, mas quando os gatos fazem o mesmo gesto estão a demonstrar irritabilidade ou ansiedade. Ao contrário dos cães, os gatos não entendem o gesto humano de apontar-se com um dedo certos objectos ou locais: apenas fitam o dedo, como se seguissem uma presa (e, às vezes, atiram-se a ele). Quando se quer chamar a atenção de um gato para alguma coisa é preciso olhar directamente para ela ou atraí-lo nessa direcção com um brinquedo para gatos.
É verdade que são muito teimosos, porque os lobos frontais dos seus cérebros são pequenos, o que significa que quando se fixam num determinado comportamento demoram muito tempo para esquecê-lo, porque não são capazes de pensar em mais nada - o multitasking não é para eles. Um gato assustado ou furioso é capaz de permanecer nesses estados durante um dia inteiro. 

Porém, os gatos são criaturas sociais, embora de uma ordem diferente da dos cães. O gato selvagem africano evoluiu para caçar presas pequenas, como insectos, pássaros e ratos, e é por essa razão que os gatos, ao contrário dos leões - ou dos lobos - não caçam em grupo: não faz sentido caçar-se um rato em grupo, porque ele é uma presa que, por culpa do seu tamanho, somente alimentará um predador. Ora, quando não existe a necessidade de caçar em grupo, deixa de existir a necessidade de organizar o bando numa hierarquia rígida (como uma tropa) e é por essa razão que as colónias de gatos selvagens e as de gatos ferais (gatos outrora domésticos que reverteram para o estado selvagem) possuem estruturas sociais muito mais plásticas que as alcateias. Ainda assim, os gatos comuns são animais territoriais e hierárquicos e os donos que tenham cautela ao ignorar essas naturezas.
Ainda não se sabe como é que gatos e pessoas se aproximaram, mas é possível que tenham sido úteis para manter pragas à margem dos núcleos habitacionais. Esta explicação é satisfatória, porque esclarece a razão pela qual os gatos ainda hoje se mantém semi-selvagens: em essência, foram adoptados para fazerem por nós aquilo que já faziam por eles próprios; logo, nunca existiu pressão para tornarem-se mais sociais. Adoptámos os gatos para serem caçadores, o que tem funcionado bem, porque os gatos vivem para matar pequenas presas - sempre. É a alegria deles. Se não têm presas pequenas à disposição, irão inventá-las. Para caçá-las, têm garras muito afiadas.
Os gatos não têm unhas: têm garras - tal como os leões e os tigres. Elas são como anzóis, evoluíram para a predação e irão ser usadas, dê por onde der. Extrair cirurgicamente as garras de um gato é um acto bárbaro que implica a amputação das falanges e cria animais mutilados e miseráveis que nem sequer são capazes de usar uma caixa de areia para eliminarem os seus dejectos: quem não quiser ter um gato com garras é melhor não ter um gato.

Os gatos bebés (até um ano de idade) são muito rebeldes, mas, ao crescerem, criam laços emocionais intensos com os donos, principalmente com os indivíduos que os alimentam. (É o reforço positivo de que falei há umas linhas.) São criaturas sensíveis que somente dão o que recebem: nesse aspecto, um animal inesperado com o qual podem ser comparados é o camelo. De todos os animais semidomesticados, os camelos são extremamente intolerantes a maus tratos e vingam-se sem hesitações de quem se esquece de abordá-los com delicadeza. (Talvez ferver em pouca água seja uma prerrogativa de animais que evoluíram em climas quentes.)

Seja como for, ter um gato é como ter em casa um pedacinho de um mundo ainda selvagem: um mundo onde felinos intrépidos subjugam répteis lendários.