À
aproximação de outra transição temporal para um novo ano,
encontramo-nos, mais uma vez, na fatal encruzilhada que nos coage à
dilucidação de tudo o que se testemunhou nos meses que passaram.
Está-se, pois, na catróptica câmara de reflexão que aumenta todos os detalhes, todas as circunstâncias; nebulosa neuróglia que comunica com todos os instantes em simultâneo, à guisa de acetatos sobrepostos num projector, compondo uma incompreensível e opaca silhueta feita de tudo o que fomos e de tudo o que somos. A cor desapareceu nesta antracítica configuração; emblema ambíguo de um exame a fazer, somente perceptível pelo contorno como os ocos perfis de vítimas traçados a giz ou tinta num pavimento — aí todas as estações do ano estiolam em engelhada decrepitude na forma de um infantil Quantos-Queres em que cada face proto-cristalóide é assinalada não por uma pinta colorida, mas por cheiros, sons e vagas sugestões. Desembrulhe-se esse incipiente origami e descubra-se a verdade sobre nós mesmos.
Somos prisioneiros da percepção linear do tempo, segundo a qual este teve um início e, a ser assim, terá, necessariamente, de ter um fim: esta teleologia é a nossa maldição. Cresce-se num determinado ambiente, alimentado por um determinado discurso, e quando essas coordenadas culturais mudam acha-se sempre que chegou o Fim da História, mas a história não tem fim ou finalidade. A doença da Utopia e da escatologia salvífica tem servido de forragem às mais disparatadas e daninhas ideologias, políticas e cultos, mas, feitos o somatório e a prova, tudo o que os números mostram são indivíduos saponificados em bolhas inter-pessoais de relacionamento. Nada termina, nada se conclui, não existe nenhum desígnio metafísico para o qual flui o rio do tempo.
Somos uma sociedade esquizóide que tão depressa acha que vive no Fim da História como no melhor período possível da história: existem vendilhões e públicos para ambas as sensibilidades. Todos são mestres nas artes do “já ouvi falar”, na bisonha papagueação de chavões repetidos por gente unidimensional que somente lê e ouve outra gente unidimensional, na especulação de conteúdos de livros que se diz ainda pretender ler. A verdade é que somos ignorantes, arrogantes, vaidosos, fúteis e maldosos. Nesse sentido, somos como sempre fomos, desde a pré-história: a natureza humana é exactamente a mesma.
Os meus votos de Ano Novo são os de que se extirpe o pensamento utópico, de que se retorne à realidade e de que se ouça com mais atenção a voz simbólica da imaginação. Foi assim que se inventou a roda, o pão, o livro e a máquina a vapor. O pensamento utópico, escatológico e salvífico só inventou a guilhotina, a câmara de gás e o gulag.
Assim, nesta fatal encruzilhada que nos coage à dilucidação de tudo o que se testemunhou nos meses que passaram, convém perceber que tipo de sociedade se quer ser em 2020: a que constrói o pão e o livro ou a que constrói executórios para quem não se insere na ortodoxia utópica em vigência.
Está-se, pois, na catróptica câmara de reflexão que aumenta todos os detalhes, todas as circunstâncias; nebulosa neuróglia que comunica com todos os instantes em simultâneo, à guisa de acetatos sobrepostos num projector, compondo uma incompreensível e opaca silhueta feita de tudo o que fomos e de tudo o que somos. A cor desapareceu nesta antracítica configuração; emblema ambíguo de um exame a fazer, somente perceptível pelo contorno como os ocos perfis de vítimas traçados a giz ou tinta num pavimento — aí todas as estações do ano estiolam em engelhada decrepitude na forma de um infantil Quantos-Queres em que cada face proto-cristalóide é assinalada não por uma pinta colorida, mas por cheiros, sons e vagas sugestões. Desembrulhe-se esse incipiente origami e descubra-se a verdade sobre nós mesmos.
Somos prisioneiros da percepção linear do tempo, segundo a qual este teve um início e, a ser assim, terá, necessariamente, de ter um fim: esta teleologia é a nossa maldição. Cresce-se num determinado ambiente, alimentado por um determinado discurso, e quando essas coordenadas culturais mudam acha-se sempre que chegou o Fim da História, mas a história não tem fim ou finalidade. A doença da Utopia e da escatologia salvífica tem servido de forragem às mais disparatadas e daninhas ideologias, políticas e cultos, mas, feitos o somatório e a prova, tudo o que os números mostram são indivíduos saponificados em bolhas inter-pessoais de relacionamento. Nada termina, nada se conclui, não existe nenhum desígnio metafísico para o qual flui o rio do tempo.
Somos uma sociedade esquizóide que tão depressa acha que vive no Fim da História como no melhor período possível da história: existem vendilhões e públicos para ambas as sensibilidades. Todos são mestres nas artes do “já ouvi falar”, na bisonha papagueação de chavões repetidos por gente unidimensional que somente lê e ouve outra gente unidimensional, na especulação de conteúdos de livros que se diz ainda pretender ler. A verdade é que somos ignorantes, arrogantes, vaidosos, fúteis e maldosos. Nesse sentido, somos como sempre fomos, desde a pré-história: a natureza humana é exactamente a mesma.
Os meus votos de Ano Novo são os de que se extirpe o pensamento utópico, de que se retorne à realidade e de que se ouça com mais atenção a voz simbólica da imaginação. Foi assim que se inventou a roda, o pão, o livro e a máquina a vapor. O pensamento utópico, escatológico e salvífico só inventou a guilhotina, a câmara de gás e o gulag.
Assim, nesta fatal encruzilhada que nos coage à dilucidação de tudo o que se testemunhou nos meses que passaram, convém perceber que tipo de sociedade se quer ser em 2020: a que constrói o pão e o livro ou a que constrói executórios para quem não se insere na ortodoxia utópica em vigência.
(Texto escrito a 31 de Dezembro de 2019.)