quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Mais confusões g(l)óticas


De quando em quando, o mercado livreiro lembra-se de inventar rótulos novos para vender coisas novas e outras que não são assim tão novas. Quase sempre esses identificadores acabam por ser de carácter redutor para com o conteúdo daquilo que está a ser promovido sob a nomenclatura e, na maioria das vezes, relacionam-se com o género em que as obras, supostamente, se inserem, de forma a serem compreendidos e aceites com facilidade pelos leitores.
Sobre géneros literários, pode ler-se em Theory of Literature de René Wellek e Austin Warren (Harcourt Brace & Company, 1962): «Genre should be conceived, we think, as a grouping of literary works based, theoretically, upon both outer form (specific metre or structure) and also upon inner form (attitude, tone, purpose - more crudely, subject and audience)» (pág. 231). E ainda: «With the vast widening of the audience (...) there are more genres; and, with the more rapid diffusion through cheap printing, they are short-lived or pass through more rapid transitions. (...) we are conscious of the quick changes in literary fashion - a new literary generation every ten years, rather than every fifty» (pág. 232). É certo que a imutabilidade não é uma característica formativa dos géneros literários, que, enquanto entidades vivas (no mínimo, entidades culturais - ou meméticas) são de natureza proteica. Mesmo assim, o principal agente responsável pelas mutações que se verificam neste campo é o mercado e isso corresponde-se com muitas variáveis de ordem de sobrevivência comercial, nas quais pouco ou nada afloram preocupações de índole artística e intelectual. Além de ser um objecto comerciável, um livro é uma manifestação artística, mas o acto de designar um determinado romance com um género ou sub-género em particular tem tanto de artístico como rotular um frasco de salsichas com o logótipo da fábrica onde são feitas; consiste numa identificação dirigida ao leitor (consumidor) e que lhe transmite uma série de conceitos que ele, à partida, considera positivos. É aqui que deve ser considerado o argumento de Wellek e Warren, do qual se aduz que «Genre should be conceived, we think, as a grouping of literary works based, theoretically, upon (...) subject and audience». Acrescento que também o selo editorial de uma obra serve os mesmos propósitos que o género: é também uma marca (como a das salsichas) que cria um conjunto de expectativas nos leitores que dela se aproxima. Daí que a subvalorização ou sobrevalorização de um título literário pode estar - e muitas vezes está - em directíssima comunicação com a editora que o põe à venda: ou seja, essas apreciações são trajectórias exclusivas entre Editora e Leitor, pois não passam por nenhuns pontos que se encontrem no caminho do próprio livro. É uma questão que se pode considerar como sendo paralela à dos géneros e que prova como o mercado é um campo polimorofo.

Neste momento, está na moda um quinhão de denominações para uma série de supostos géneros literários, entre eles, no espectro da Literatura Fantástica, o dito romance paranormal que, pelo que eu entendo, é utilizado para catalogar histórias que, embora contendo elementos sobrenaturais, têm lugar num espaço e num tempo comuns. A minha primeira pergunta é esta: porque é que se inventou (mais) uma designação para denominar obras que já estavam incluídas, ou que podem perfeitamente ser incluídas, nos géneros fantásticos já existentes? A resposta atende à vibrância do mercado livreiro que precisa, de modo constante, de cunhar os seus produtos com o cariz de novidade, de exclusividade, de maneira a titilar o interesse dos consumidores - basta ler qualquer manual de marketing para percebê-lo. O problema é que quanto mais géneros e sub-géneros se inventam, à medida que as criações publicitárias pretéritas vão ganhando desgaste, mais a identidade dos livros se aliena dos leitores; levados a ignorar certas obras porque elas não lhes são apresentadas de acordo com os seus catálogos de nomes reconhecíveis ou predilectos.
Analisando a proposta de romance paranormal percebe-se, de imediato, como ela não se sustenta, pois a raiz da palavra paranormal (que entra no léxico da língua inglesa algures no segundo decénio do século passado) significa o oposto daquilo que se quer veicular: paranormal tem o sentido de próximo do normal, já que o prefixo para, em grego, significa próximo. É sempre arriscado inventar novas palavras quando não se sabe o que se está a fazer. Provavelmente criada com o sentido de ser um sinónimo de sobrenatural (palavra do glossário eclesiástico do século XVI que só no final do século XVIII passou a ser usada popularmente para designar fenómenos inexplicáveis, relacionados com espíritos e criaturas mágicas), a palavra paranormal traduz o contrário: algo que está ao nível da normalidade (do latim normalis que significa conforme o esquadro - que em latim se diz norma). Em suma: dizer-se que um romance que tem criaturas sobrenaturais como personagens é um romance paranormal não faz sentido nenhum.
Porque é que não se chama, simplesmente, romance gótico? Seria mais acertado, atentando até à possível etimologia da palavra gótico, sobre a qual escrevi em pormenor nesta ligação.
Mas romance gótico (ou de horror, ou até de suspense), apesar de ser correcto, não tem o verniz límpido do efeito de novidade que o mercado livreiro precisa para vender. Entretanto, vai-se contribuindo para o baralhamento das palavras e seus significados.