quinta-feira, 21 de julho de 2011

Notas sobre Aleister Crowley e Fernando Pessoa - Primeira Parte

Aleister Crowley: A Obra ao Vermelho

Crowley acompanhou a morte do século XIX e viveu no período mais violento do século XX, absorvendo horror e glamour para construir uma lenda pessoal. Foi um reconhecido alpinista e liderou as primeiras expedições às montanhas Kangchenjunga, no Nepal, e Chogo Ri (K2), nos Himalaias, antes de encarrilar a toda a velocidade no caminho da Magia. Em 1902, depois de visitar o amigo ocultista Allan Bennett, em Ceilão, Crowley começou a misturar os ritos orientais e o tradicional hermetismo ocidental com o objectivo de criar um novo sistema mágico. Na verdade, unir o sexo à magia não era um conceito inédito e Crowley deveria conhecer, com toda a certeza, os trabalhos de Paschal Beverly Randolph (que sentia um pavor patológico pela masturbação: prática fundamental na disciplina de Crowley) e de Alice Bunker Stockham (que desenvolveu o método Karezza: doutrina mais cúmplice da profilaxia que da magia, mas que, mesmo assim, advogava a sacralização do orgasmo). Nas sociedades iniciáticas criadas ou lideradas por Crowley, como a Argenteum Astrum (fundada após a saída da Hermetic Order of the Golden Dawn) e a Ordo Templi Orientis, o misticismo encontra-se impregnado de ritos de natureza sexual.

É seguro conjecturar que o advento da revolução sexual que rompeu na década de sessenta do século passado foi previamente ensaiado por Crowley e pelos "thelemitas" nos decénios de vinte e trinta. Sem a publicação da revista The Equinox, o conhecimento hermético aí revelado continuaria a ser coutada de exclusivas fraternidades secretas; e, aqui, o trabalho de Crowley na fertilização do imaginário ocidental foi importantíssimo: não enquanto criador de mitos, como Fernando Pessoa, seu amigo, almejava ser, mas como polinizador – aliás, o papel do Mago por excelência; cujo símbolo (a varinha) não deixa de se revestir com sentido alegórico correspondente à sexualidade.

Não creio que Crowley tivesse sido um homem mau, como o epíteto ‘The Wickedest Man in the World’ (apresentado pela primeira vez no jornal inglês John Bull) sugere. Penso que foi, no seu pior, muito egoísta (com péssimas consequências), mas sem cair no diabolismo cinemático que os media patentearam. Excepto na aproximação que faz ao individualismo filosófico (antecipando o Objectivismo cunhado pela escritora Ayn Rand) a doutrina "thelémica" nada tem de satânico ou de satanista. Em primeiro lugar, tal como se encontra descrita por Crowley, trata-se de um sistema iniciático, logo procura transmitir conhecimentos ocultos através de mensagens e rituais que namoriscam com o sobrenatural. Em seguida, o trajecto que o adepto precisa de cumprir nesse caminho iniciático é ferozmente demolidor do ego. E, para terminar, a disciplina de Thelema ainda incita o indivíduo na direcção de uma espécie de consciência social. Para isso concorreram as fontes de inspiração de Crowley: proto-anarquistas como François Rabelais e Jonathan Swift, mas também teóricos anarquistas e socialistas como Gracchus Babeuf, Louis Blanquis e Pierre Proudhon. É preciso lembrar que The Book of the Law foi recebido por diversos leitores como sendo um livro comunista e que Mussolini expulsou Crowley de Itália, alegando que a Abadia de Thelema, em Cefalù, era um órgão comunista. É confuso constatar que Crowley, inglês imperialista, manteve uma relação calorosa com ideias revolucionárias desta estirpe. Não é, pois, sensato ler o trabalho da auto-denominada Besta do Apocalipse, para quem o fin de siécle era todos os dias, sem ter em mente o sentido de humor provocante e escatológico que o atravessa. E sobre um autor cuja vida é impossível dissolver da obra, a exegese biográfica deve efectuar-se sob a mesma iluminação.

Inversamente aos trabalhos de outros ocultistas seus contemporâneos, junto dos quais foi buscar inspiração, a obra literária que deixou inscreve-se sem qualquer dificuldade no cânone ocidental da literatura hermética; e, pela porta grande, por avanço do já citado The Book of the Law, publicado pela primeira vez no décimo número da revista periódica The Equinox. Texto deliberadamente contraditório, The Book of the Law, a base do sistema mágico crowleyano, é, na minha opinião, uma colagem ao sistema dos Três Tempos (ou Eras) como foi plasmado pelo abade cisterciense Joaquim de Fiore. Ignoro se Crowley procurou esse mimetismo de modo consciente, mas é muito possível, pois possuía um conhecimento enciclopédico sobre hermetismo e tradições mágicas. O que interessa reter é que em virtude da aproximação que faz ao modelo de Fiore (os Tempos do Pai, do Filho e do Espírito Santo), Crowley conseguiu imprimir em The Book of the Law uma longevidade nutrida pela ressonância arquetípica: ou seja, o texto prolonga o impacto provocado na recepção, porque comunica connosco de um modo mais profundo que outros mitos mais juvenis.

A encadernação da edição do livro Moonchild, de Aleister Crowley, que a Sphere Books publicou na colecção The Dennis Wheatley Library of the Occult, em 1974, é bastante conveniente, já que um observador atento não pode deixar de ver Ra-Hoor-Khuit, ou Harpócrates, a versão infante de Hórus, sendo presenteado com a herança de Hadit, o embaixador do Tempo do Pai no segundo capítulo de The Book of the Law. Essa responsabilidade, simbolizada pela caveira, à guisa de fóssil de Ano Velho, é a referência da passagem de testemunho para o Tempo do Filho: o Éon de Hórus.

A sincronicidade desta imagem causa-me admiração; e se é verdade que Wheatley, mero anfitrião dessa colecção, à qual apenas emprestou o nome e o prestígio, foi alheio à escolha, é legítimo adivinhar que ela deixaria Crowley muito feliz.


David Soares, Lisboa 2007