Citando Teresa Rita Lopes, autora do livro Pessoa Por Conhecer, é legítimo afirmar que Pessoa continua, ainda, por conhecer - e a dimensão hermética da obra e da vida do poeta será aquela que é desconhecida pela grande parte dos leitores.
Eduardo Lourenço teoriza que a heteronímia pessoana, em particular os registos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, são abordagens que Pessoa fez à obra de Walt Whitman, subordinadas a diferentes perspectivas; da eulogia ao histerismo. Uma leitura atenta não pode deixar de o compreender, mas esse jogo de simetria não desvirtua a dedução que a cronologia do desdobramento da personalidade pessoana influencia. De facto, Pessoa começou a criar seres fictícios desde muito novo: os primeiros pseudónimos são o Chevalier de Pas e o Capitaine Thibeaut, ambos criados quando ele tinha seis anos de idade. Mais tarde, continuou a inventar personagens imaginárias como os irmãos David e Lucas Merrick, Charles Robert Anon e o mais familiar do público Alexander Search, apontado pelos académicos como o primeiro heterónimo de Pessoa e autor do poema O Círculo, no qual surge uma frase que pode servir de mote a toda a heteronímia: «O meu pensamento está condenado ao símbolo e à analogia».
A obra poética de Pessoa espraia-se em três períodos animados por preocupações distintas: uma breve, e formativa, fase filosófico-cristã; uma fase neo-pagã; e, finalmente, uma fase gnóstica que corresponde às últimas duas décadas de vida do poeta. Paralelamente à evolução da obra, pode acompanhar-se a evolução do sentido que Pessoa procurava imprimir na vida, através do estudo do hermetismo e das "ciências" ocultas. A sua obra nunca deixou de ser, em momento algum, mais do que uma ferramenta para ajudá-lo a alcançar o objectivo dessa busca espiritual, um muito nítido espelho do caminho esotérico traçado.
Antes de interessar-se pela Teosofia, pelo Rosicrucismo e pela Franco-Maçonaria, Pessoa revelou ter passado por uma série de experiências mediúnicas, confessadas pela primeira vez numa carta enviada à sua Tia Anica, também espírita, na qual escreveu: «Estou desenvolvendo qualidades não só de médium escrevente, mas também de médium vidente. Começo a ter aquilo a que os ocultistas chamam "a visão astral", e também a chamada "visão etérica"». Os espíritos que falam com Pessoa, como Henry More, Wardour e J. H. Hyslop, fazem-no com vozes mefistofélicas, até, comentando os últimos poemas escritos e oferecendo conselhos sentimentais que traduzem a sexualidade conturbada do seu invocador. Não é de todo estranho este fascínio pelo mundo fantasmático dos espíritos, porque, enquanto poeta – enquanto bardo –, a etimologia suporta essas inclinações: vates, o étimo latino de poeta, significa profeta ou numa tradução mais apurada: “aquele que tem visões”. O próprio Hermes, de onde deriva a palavra hermetismo, era o mensageiro que fazia a comunicação entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos. Antes de assumir-se como criador de mitos, Pessoa procurou ser um emissário dessa estirpe hermética, traduzindo para português títulos como O Compêndio de Teosofia, de Charles Leadbeater, e A Voz do Silêncio, de Helena Blavatsky. Ainda no papel de emissário hermético, criou a tipografia Íbis, aludindo ao deus Thot, o equivalente egípcio do Hermes grego. O Íbis era também uma designação antiga, que o acompanhava desde a infância, e que se resumia a um disfarce teriomórfico vestido pelo poeta em diversas ocasiões: ele fingia ser um íbis em diversos momentos, em brincadeiras com os sobrinhos ou mesmo em passeios com o resto da família.
O interesse de Pessoa pela astrologia remota desde a adolescência e os registos astrológicos de maior complexidade e segurança datam de 1908, ou seja desde os vinte anos de idade. Pessoa planeou escrever um grande tratado de astrologia, sob o nome do heterónimo Raphael Baldaya, obra na qual apresentaria um estudo astrológico do país. Nunca chegou a escrever esse livro, mas deixou-nos um horóscopo de Portugal onde anotou posições ocupadas por Neptuno, planeta regente do signo Peixes, o "signo de Portugal", em momentos particulares da nossa história, como a derrota de Alcácer-Quibir ou a invasão espanhola de Lisboa. Pessoa deixou-nos temas astrológicos dos heterónimos e dele próprio, onde escreveu que a data da sua morte seria em Maio de 1935. Falecido em Novembro, a previsão apenas falhou por seis meses.
O sistema mágico intitulado O Caminho da Serpente, criado e desenvolvido por Pessoa, foi divulgado pela primeira vez no livro Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética, de Yvette Kace Centeno. Trata-se de um sistema mágico que, aparentemente, resgata elementos pitagóricos, rosicrúcios e cabalísticos. Por desvendar encontra-se o significado da nomenclatura, assim como o sentido e o uso. Sabe-se que Pessoa devotou concentração a este tema no seguimento da demanda por iluminação hermética que o levou desde a mediunidade até à astrologia e da teosofia até à maçonaria. Não se revendo em nenhuma das tradições ocultistas que, por breves períodos, adoptou, Pessoa decidiu criar o seu próprio sistema mágico, já perto da data da morte.
Na minha opinião, o que é surpreendente n’O Caminho da Serpente é a depuração: não há nada de acessório nos escritos que Pessoa deixou sobre o sistema, assim como a simbologia geométrica que o compõe, a fazer lembrar as estruturas ocultas empregues nas telas de Almada Negreiros (seu companheiro tardio da boémia lisboeta e ocultista), está em sintonia com toda a tradição geomágica ocidental, desde os teoremas de Abellio até aos modernos sigilos de Austin Osman Spare.
Intui-se que O Caminho da Serpente é essencialmente simbólico (a fazer lembrar, lá está, o vaticínio expresso no poema O Círculo de Alexander Search), e a sê-lo remete-me para a simbologia do próprio caduceu hermético: o bastão erecto onde se enrolam duas serpentes, trepando em direcção à coroa alada. Ora Pessoa, designou por Fogo a parte superior da Bexiga de Peixe na qual inscreveu esse sistema mágico e designou por Terra o vértice inferior. Essa elevação da serpente, que assim se ergue da Terra – do lodo primordial – em direcção ao Fogo – à Imaginação – é o sentido oculto do bastão de Hermes; e, hoje em dia, encontra uma simetria tremenda com a estrutura em dupla espiral da molécula de ADN, descoberta dezoito anos depois da morte do poeta. Mas já no baralho de Tarot criado por Aleister Crowley e desenhado por Lady Frieda Harris se pode ver no Arcano Maior, O Universo, uma profecia dessa descoberta, caracterizada pela mulher que dança com a serpente, rodeada pelos quatro elementos e vigiada pela presença ocular da Mónade da qual tudo emana.
Uma representação artística que encerra na perfeição essas premissas é o painel de azulejos que o Mestre Lima de Freitas pintou para a plataforma da gare ferroviária do Rossio.
David Soares, Lisboa 2007