quinta-feira, 21 de julho de 2011

Notas para uma exegese maçónica e hermética de "Blood Meridian" de Cormac McCarthy

(Esclarecimento: este pequeno ensaio foi escrito em 2005, para O Sonho de Newton, o weblog que eu mantinha nessa altura. Encontrei-o hoje, enquanto procurava outro texto, e achei que seria interessante republicá-lo.)


Horizonte sangrante

Em Blood Meridian, Cormac McCarthy (The Orchard Keeper, All The Pretty Horses, No Country For Old Men, The Road), propõe uma leitura tremenda sobre um grupo de desventureiros que atravessa o deserto norte-americano, em direcção ao México, numa demanda sanguisedenta por escalpes índios e latinos. Quem lidera os doze homens é o juiz Holden, homem de cultura, mas não menos bestial que os seus cães de guerra. Na base da pirâmide do poder encontramos Kid, um puto de catorze anos, engajado na pandilha por Toadvine, um criminoso brutal que já tentara matá-lo.

A linguagem usada por McCarthy é riquíssima; tão ritmada que o romance ganha um novo fôlego quando lido em voz alta. O uso do calão e do linguajar hispânico pontua com excentricidade este notável esforço literário. Com efeito, Blood Meridian concatena de modo perfeito duas fórmulas distintas: a acção violenta do western e o simbolismo hermético.

Blood Meridian é um romance gnóstico, mesclado de maçonaria e alquimia.

Alvenaria Insubstancial

No capítulo XI o juiz Holden narra um episódio que se conjectura auto-biográfico e que evoca – insuspeitamente – o mito de Hiram Abiff, o Filho da Viúva do mito maçónico: suposto arquitecto do Templo de Salomão, assassinado à traição por três obreiros, Jubela, Jubelo e Jubelum, quando pretendiam fazê-lo confessar os sinais secretos do ofício para progredirem na ordem sem diligência.

«As they walked (...) He Killed him with a rock and he took his clothes and bloodied himself with a flint and he told his wife they had been set up by robbers and the young traveler murdered and him only escaped. She began to cry and after a while she made him take her to the place and she took wild primrose which grew in plenty thereabout and she put it on the stones and she came there many times until she was old.

The harnessmaker lived until his son was grown and never did anyone harm again. As he lay dying he called the son to him and told him what he had done. (...) But the boy was not sorry for he was jealous of the dead man and before he went away he visited that place and cast away the rocks and dug up the bones and scattered them in the forest and then he went away. He went away to the west and he himself became a killer of men.

The old woman was still living at the time and she knew none of what had passed and she thought that wild animals had dug the bones and scattered them. Perhaps she did not find all the bones but such as she did she restored to the grave and she covered them up and piled the stones over them and carried flowers to that place as before. When she was an old woman she told people that it was her son buried there and perhaps by that time it was so.»

É possível reconhecer neste trecho o arquétipo do mito osiriano do esquartejamento e difusão dos fragmentos do falecido ancestral, que também pertence a outras culturas, como temos oportunidade de ler, por exemplo, no Kalevala, conjunto de contos do folclore finlandês, compilados por Elias Lönnrot em 1835, no qual os pedaços de Lemminkäinen, o irmão da personagem principal Väinämöinen, são resgatados pela mãe, a deusa Ilmatar, das águas do Tuonela, o mundo inferior.

Em seguida, no capítulo XXII, íntimo da conclusão de Blood Meridian, Kid encontra os cadáveres exenterados de um grupo de confrades, cobertos com o que parece ser uma forma vetusta de vestuário maçónico. Na vizinhança dos despojos sangrentos a personagem descobre uma anciã agachada no chão.

«He made his way among the corpses and stood before her. She was very old and her face was gray and leathery and sand had collected in the folds of her clothing. She did not look up. The shawl that covered her head was much faded of its color yet it bore like a pattern woven into the fabric the figures of stars and quartermoons and other insignia of a provenance unknown to him. (...) He reached into the little cove and touched her arm. She moved slightly, her whole body, light and rigid. She weighed nothing. She was just a dried shell and she had been dead in that place for years.»

Poderá esta personagem descaroçada ser a viúva mencionada no relato de Holden?

A paisagem rochosa do deserto norte-americano é ela própria a Pedra Bruta da Fundação que o iniciado sem avental precisa deslindar. Sob o Sol refulgente, símbolo de vida, força e equilíbrio, o Aprendiz ou Companheiro deve livrar-se das imperfeições que enodam o espírito e corrigir a facie acidentada da sua Obra, transmutando-a em Pedra Cúbica. Os cascos dos cavalos montados pelos 13 companheiros de viagem através do roteiro desse habitat ermo escolhido por Holden levantam sons anteriormente ocultos no solo que soam através das camadas estratigráficas mais fundas, reverberando com significação nas três paredes do Templo de Salomão: a oriente, a sul e a ocidente. A América selvagem é toda ela iniciática na visão de McCarthy: as crostas magmáticas que cobrem a terra e a areia criam nichos que convidam à oração e os violentos peregrinos que se refrigeram à sombra são Cavaleiros do Templo.

«Their spirit is entombed in the stone. It lies upon the land with the same weight and the same ubiquity. For whoever makes a shelter of reeds and hides has joined his spirit to the common destiny of creatures and he will subside back into the primal mud with scarcely a cry. But who builds in stone seeks to alter the structure of the universe and so it was with these masons however primitive their work may seem to us.»

Holden, descrito a dada altura como se fosse uma espécie de manatim humano, é uma figura alva que personifica Satã: o Cristo da Tradição Gnóstica. Holden, ou Ialdabaoth o Demiurgo, transfere para Blood Meridian outro avatar da literatura de língua inglesa: o leviatã de Herman Melville. Transcrevo de Moby Dick, do capítulo XLII, The Whitness of the Whale:

«This elusive quality it is, which causes the thought of whiteness, when divorced from more kindly associations, and coupled with any object terrible in itself, to heighten that terror to the furthest bounds. Witness the white bear of the poles, and the white shark of the tropics; what but their smooth, flaky whiteness makes them the transcendent horrors they are? That ghastly whiteness it is which imparts such an abhorrent mildness, even more loathsome than terrific, to the dumb gloating of their aspect. (…) What is it that in the Albino man so peculiarly repels and often shocks the eye, as that sometimes he is loathed by his own kith and kin! It is that whiteness which invests him, a thing expressed by the name he bears. The Albino is as well made as other men - has no substantive deformity - and yet this mere aspect of all-pervading whiteness makes him more strangely hideous than the ugliest abortion. Why should this be so?»

Este homicida pederasta de infinita sageza criado por McCarthy compila um bestiário natural num canhenho de bolso, desenhando fauna e flora que encontra no progresso das viagens.

«Toadvine sat watching him as he made his notations in the ledger, holding the book toward the fire for the light, and he asked him what was his purpose in all this. (...) The judge wrote on and then he folded the ledger shut and laid it to one side and pressed his hands together and passed them down over his nose and mouth and placed them palm down on his knees.

Whatever exists, he said. Whatever in creation exists without my knowledge exists without my consent. (...) The freedom of birds is an insult to me. I'd have them all in zoos.»

Esta unidade faz-me recordar uma personagem muito semelhante a Holden: John Steep – do romance Sacrament de Clive Barker; outra viagem iniciática, mas disfarçada de thriller homoerótico. A personagem principal é Will Rabjohns, um fotógrafo de espécies em vias de extinção.

«This is death. This is what you've photographed so many times. (...) All ephemeral things, running out of time.»

Steep, o vilão, cônjuge de Rosa McGee, que o acompanha nas suas incursões centenárias, viaja pelo globo procurando os últimos indivíduos das espécies mais raras para os matar.

«This will not come again... Nor this, nor this…»

Steep e Holden perseguem uma obssesão pelo Todo, mas a sede de sabedoria amedronta-os em vez de os iluminar e a regeneração de ambos cumpre-se pela violência. No final de Sacrament aprendemos que Steep e McGee são um Rebis, uma criatura chamada Nilotic, outrora dividida pela nigromância e reunida na conclusão da história. Ora em Blood Meridian, o juiz Holden, terror das crianças e dos animais, e Kid, arquétipo do neófito, acabam o seu percurso desta forma:

«The Judge was seated upon the closet. He was naked and he rose up smilling and gathered him in his arms against his immense and terrible flesh and shot the wooden bartlach home behind him.»

Mais nenhuma informação nos é dada sobre o destino de Kid e a cena seguinte ao segmento que apresentei é presenciada pelos figurantes, mas sonegada ao leitor. Seguidamente o juiz Holden emerge e junta-se a uma pequena bacchanalia que se organizou espontaneamente no saloon. O romance termina com Holden a dançar.

«Towering over them all is the judge and he is naked dancing, his small feet lively and quick and now in doubletime and bowing to the ladies, huge pale and hairless, like an enormous infant. He never sleeps, he says. He says he'll never die.»

E se Holden e Kid se fundiram, criando uma coisa repetida - um Rebis?

O grau de surpresa nas exclamações de pânico das testemunhas diante da cena escondida do leitor são muitíssimo suspeitas e conduzem a imaginação na direcção de algo, no mínimo, fabuloso.

O ofício de juiz baptiza o Sétimo Grau do Rito Escocês Antigo e Aceite da Maçonaria Especulativa: Juiz, Preboste ou Mestre Irlandês. Número saturnino, o algarismo 7 evoca as Sete Fornalhas da Alma (sublimações) de que falou William Blake: as destilações repetidas que o neófito tem de cumprir no processo de pureza e rectificação.

No início da segunda parte do capítulo XV, podemos ver na fuga de Kid os passos de uma iniciação maçónica; e no capítulo X, na história narrada a Kid por Tobbin, o ex-padre, sabemos que Holden é um engenhoso alquimista que consegue usar enxofre e urina para criar pólvora, num processo que parece corresponder aos estádios que concorrem para a depuração do mercúrio filosofal através da sublimação na Grande Obra.

A figura encalvecida e juvenil do juiz lembra a de um homúnculo: criatura artificial, gerada num atanor. Mas Holden é um homúnculo diferente das representações canónicas referentes à criação desse género de pessoas artificiais, como as que Paracelsus nos deixou; e também não tem nada em comum com Tristram Shandy, outro homúnculo literário.