sábado, 1 de dezembro de 2012

O último feriado de 1 de Dezembro: entre o passado e o presente


Hoje é 1 de Dezembro, o dia da chamada Restauração de Portugal, que interrompeu cinquenta e nove anos de jugo espanhol, sob a dinastia filipina. Na verdade, a dita Restauração só se completou vinte e oito anos depois, cessando um período instável em que Portugal e Espanha (o correcto é dizer Portugal e Castela), numa espécie de "guerra fria" traiçoeira em que várias vezes o exército castelhano entrou por território nacional adentro, cristalizaram um antagonismo que ainda perdura nos chavões mais ou menos rancorosos e humorísticos que circulam nos nossos dias sobre aquilo que os espanhóis pensam dos portugueses e sobre aquilo que os portugueses pensam dos espanhóis. Porém, e como em quase tudo o que faz parte da exegese da história, a verdade não é tão simples quanto parece e no que concerne à perda da independência de Portugal para Espanha ela não consistiu numa perda de independência como hoje entendemos esse conceito: para efeito de simplificação, pode dizer-se que Portugal passou a ser governado por um rei que também governava os diferentes três reinos espanhóis (Castela-Leão-Galiza, Navarra e Aragão), mas o nosso país nunca foi integrado na Espanha - que, esclareça-se, nem sequer existia enquanto estado único. Os Filipes de Portugal nunca se intitularam reis de Espanha, por exemplo: a ideia de uma Espanha unificada - um estado uno - foi um conceito que só começou a tomar forma mais à frente, com o reinado de Filipe V de Espanha. Acrescente-se que Filipe II de Espanha, I de Portugal, nem sequer era espanhol: era neto de D. Manuel I, com mãe portuguesa e pai alemão (D. Isabel de Portugal e Carlos de Habsburgo, V imperador do Sacro-Império Romano-Germânico).

Avançando a partir daqui, importa reter que Portugal conservou-se enquanto reino e nunca foi a tal província espanhola que por vezes se ouve dizer: conservámos o aparelho jurídico, a administração das colónias, a moeda - e, quanto à língua, a Península Ibérica sempre foi meio-bilingue, para começar. A língua erudita em Portugal, a dada altura, passou a ser o castelhano: Camões e outros poetas portugueses escreveram em castelhano, por exemplo, muito antes de Filipe I de Portugal subir ao trono.

Somente a partir do reinado de Filipe III de Portugal é que a situação de relativa estabilidade - e até de progresso económico - que o reino de Portugal viveu com Filipe I e II começou a deteriorar-se, com a criação de novos impostos e uma política muito menos simpática para com a nobreza portuguesa que até aí frequentou com distinção e primor os corredores e os salões dos solares e palácios castelhanos. Foi um período turbulento em que na Catalunha, como hoje, sopraram ventos de separação com Castela; e Filipe III de Portugal deu ordens para que o exército português fosse ajudar a pôr os catalães na ordem. Estabeleceu-se, assim, as bases principais para fortalecer-se um enorme sentimento português de revolta, nobre e popular, contra Madrid.

Serviu este prolegómeno para, em seguida, introduzir o relato de um episódio operado pelos "conjurados" que arquitectaram a conspiração política que levou D. João IV ao trono e que eu considero interessantíssimo - sobretudo quanto cotejado com a actual conjuntura.

Em 1640, o secretário de estado português (equivalente ao actual cargo de Primeiro Ministro) era um indivíduo chamado Miguel de Vasconcelos. Era filho de outro burocrata, chamado Pedro Barbosa: homem que, pelo hábito de tanto se curvar diante de Madrid, de modo absolutamente inacreditável, não se salvou de ver a sua casa invadida e apedrejada pelos cidadãos de Lisboa, fartos dos seus abusos de poder (é o tal "povo de brandos costumes"); Barbosa fugiu, confundido e atrapalhado, mas foi descoberto e morto uns dias depois, não se sabe por quem. Sabe-se é que o seu filho, o supramencionado Vasconcelos, não menos subserviente à corte de Madrid (os relatos históricos denunciam que se tratava, de facto, de um indivíduo autoritário e insuportável) também não conheceu melhor destino: na manhã de 1 de Dezembro de 1640, os "conjurados" subiram até ao seu gabinete no Paço Real, no Terreiro do Paço, e debalde o procuraram para eliminá-lo. Diz-se que quando estavam quase a desistir, viram uma resma de papéis a cair de dentro de um armário: foram investigar e descobriram Vasconcelos escondido no interior. Abateram-no a tiro, como planeado, e, para mostrar à população que a revolução tinha começado, atiraram-no de uma janela para o Terreiro do Paço. Mas os "conjurados" tiveram azar, porque não havia quase ninguém no Terreiro do Paço para assistir à façanha: aparentemente, apenas andava por ali meia-dúzia de gatos-pingados, no lado oposto ao do Paço, que até estava com receio de se aproximar e de meter-se onde não era chamada. Então, para atrair gente para perto do corpo, os "conjurados" começaram a atirar pela janela todo o tipo de coisas que foram encontrando nos aposentos do malquisto Vasconcelos: em principal, uma baixela de prata e várias delícias, como doces e até queijos. O engodo funcionou e, de imediato, uma turba entusiasmada - entusiasmada com a revelada revolução e entusiasmada pelas dádivas requintadas - reuniu-se junto do cadáver e, com uma corda, arrastou-o pelas ruas de Lisboa.

Por um lado, temos o corrupto secretário de estado (primeiro-ministro), amiguista e servil aos pedidos de aumentos de impostos exigidos pelo rei estrangeiro, que é defenestrado para dar início a uma revolução política que, sem dúvida, devolveu Portugal a um rumo histórico independente - pois sem essa revolução, Portugal teria sido transformado inexoravelmente numa província espanhola, a partir do reinado de Filipe V de Espanha. Por outro lado, temos o povo medroso, apático, com receio de aproximar-se do cadáver estendido no Terreiro do Paço, e que só se avizinha com o lançamento de bens materiais e de comida pela janela. Eu acho que esta história dá muitíssimo que pensar.
Aproveitem para pensar nela neste dia que, por vontade do governo, será o último dia feriado de 1 de Dezembro.

(Imagem: Cena da Restauração. Gravura da obra «Histoire des Révolutions de Portugal» (1712) de René-Aubert Vertot.)