quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Essa voz fala connosco



«A jarreta e repugnante Estanqueira do Loreto, calhandro com voz de sirena das excreções mais abomináveis, é Helena, a belíssima esposa de Menelau, rei de Esparta, prometida por Afrodite ao tíbio Páris e efectiva semeadora do pomo erístico da discórdia que despertou o derribamento da cidade de Tróia. É Helena, a luminosa mãe do imperador romano Constantino, salvadora dos destroços do Santo Lenho que, no século IV, em peregrinação à cidade galileia de Nazaré, encontrou intacto o humilde casebre em que Maria nasceu e mandou edificar uma basílica que o albergasse. Esta barraca inteira dentro do invólucro que é o novo templo, qual pérola dentro de uma ostra, é que é a Santa Casa do Loreto: aquela que, carregada por anjos através do Céu nos desenhos mais delirantes dos dominicanos, se alicerça sempre nos locais mais lastimosos. O estanco de Helena é esta casa de cura: úvula valiosa, envolvida pelo vil véu palatino que são os destroços mariálvicos, assolados pelo sismo e pelo abrasamento – e tal como na lenda da Santa Casa do Loreto a representação de Maria resiste imaculada a abalos e a incêndios, que nem uma gota de espermacete cingida pela corrupção, a estanqueira olisiponense persiste incólume numa imaginal tabacaria: um rosto beatífico, de tão monstruoso que é – carantonha que faz gargalhar os poetas, mas cuja riqueza de voz torna paupérrimos os versos deles.

Essa voz fala connosco.

Diz-nos que há pureza entre a escória e a escumalha; diz-nos que há definição entre a desordem e o desespero – diz-nos que se procurarmos atentamente, se olharmos sem receio à nossa volta, veremos que na mesma valeta onde se abatem os cães também desabrocha aquilo que os homens encerram de mais cintilante, porque no meio do breu refulge a crosta estéril da Lua – e, afinal, o nome da Estanqueira do Loreto, gema soterrada na turfa delinquente, é Helena: palavra que significa Lua. A Lua tripartida em Crescente, Plenilúnio e Minguante nos avatares de Virgem, Mãe e Velha – pintadas com supranaturalismo pelo artista alemão Hans Baldung Grien, em 1510: vaidosas e alheias à proximidade da Morte. Mas será a Lua um astro tão supérfluo quanto a vaidade? Uma moeda falsa com a qual somente se compra a loucura e a licantropia? 

Sem a ascendência gravítica da Lua, torpe satélite que se apresenta eczemático no velo nocturno, nunca se teria agitado as águas primordiais: foi ela o pilão babayaguiano que revolveu a matéria no almofariz que é o globo e que impediu que os ingredientes da vida sedimentassem infecundos no fundo dos oceanos. Sem a Lua, arrancada da própria Terra, há cerca de cinco mil milhões de anos por uma bestial colisão com um corpo astral do tamanho de Marte, nenhum de nós existiria e o mundo seria como a Lua: um infrutífero planeta, magoado por máculas magmáticas. Sem ela, o orbe seria uma árida Aceldama: espaço horripilante de ausência e desolação, eternamente sôfrego por intestinos e cinzas. Mas foi Helena, criadora da Santa Casa do Loreto, quem se lembrou de usar a terra hostil de Aceldama para construir, para dar moradas pacíficas aos mortos… Ela é Helena, claro, como já vimos, mas também Selena, irmã do Sol: amante de pastores como Endímio e Elmano, musa de poetas como Bocage e Camões, e cujo nome significa…

               Luz