segunda-feira, 20 de maio de 2013

«Os Anormais»: «O Plutão da Pena» integral


Muitas vezes, recebo por email pedidos de leitores que me perguntam se lhes posso enviar ou disponibilizar os textos de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012), spoken word escrito e interpretado por mim e musicado por Charles Sangnoir: um ensaio sobre a monstruosidade e a marginalidade, erguido sobre as vidas dos indivíduos excêntricos e deformados que viveram em Lisboa, ao longo de séculos. Sem excepções, a minha resposta tem sido sempre "não", porque este trabalho foi concebido para ser ouvido e não para ser lido; contudo, porque, de facto, recebo muitos pedidos, decidi publicar os quatro textos, aqui nos Cadernos de Daath.
Acompanhado do texto integral, segue-se o segundo capítulo, intitulado «O Plutão da Pena», cujo protagonista - ou tóteme - é o Anão dos Assobios: figura típica lisboeta, que morreu nos inícios do século XIX.

O Plutão da Pena

A plúmbea antemanhã assemelha-se ao fundo encardido de um crisol abandonado por um alquimista inepto; a chuvarada dos seus nimbos enodoa que nem anitmonium os telhados e abstrai-se pelas áleas azafamadas como uma lavagem que separa as partes heterogéneas da matéria-prima que é a própria cidade. Metade da gente é “setembrista”, metade é “cartista”, mas tanto uma como a outra levam muito a sério o início do século: ligas arsenalistas, lojas maçónicas e modernos tributários do Antigo Regime – todos se vêem como poetas da política, como sonetistas da sedição; e a pobre Lisboa, ensombrada por anticirros que, em jeito de contracédulas, se sucedem uns aos outros numa simetrização sinistra, é presa por ter cão – e por não ter.

Enquanto o aguaceiro matinal metamorfoseia em lama o solo do terrádego do Rossio e alguns galegos cobrem com tábuas essa papa terrenta para que as damas não sujem as solas quando forem buscar bric-à-brac às barracas dos negociantes, tremem os topetes dos cavalos ao som de aguçados trinados, vindos da boca de uma criança. Depois de uma noitada de pândega, e gingando as ancas como uma vespilheira, o garotelho atravessa a praça em direcção a casa, soltando assobios gasólitos que embatem nas vidraças como em címbalos. É um miúdo desassossegado, de gestos quasi-garrettianos, porém uma observação atenta desvenda que ele não é miúdo nenhum, mas uma criatura saída do solo ensopado: um diabrete olhando de esguelha para as gotas de chuva que lhe alfinetam o rosto inchado por um maxilar prognático.

Entre o labirinto formado pela multidão que, àquela hora, já compressa a cota mais abatida de Lisboa, esta entidade diminuta, enfarpelada com uma sobrecasaca de saragoça e um chapéu comprido de feltro, mais parece um hectograma impresso pela precipitação na mole superfície da terra. Alguns moradores da freguesia da Pena, onde ele reside, riem alto ao vê-lo regressar e fingem querer deitar-lhe o chapeirão ao chão: sem perder a compostura, o leviano liliputiano devolve-lhes o troco das truculências na forma de assobios estridentes que dá com dois dedos metidos (como burneiros) na boca. Assobios fortes o suficiente para deitar abaixo casas. Ou reis…

Cinquenta e cinco anos antes do Grande Terramoto servir de antegare à cidade-templo pombalina, morreu em Madrid o burlesco Carlos II de Espanha: último soberano da linhagem espanhola da Casa de Habsburgo e padecente do mesmo prognatismo que faz os homens parecerem cachorros. Tão acromegálico quanto o Anão dos Assobios é hipotónico, este impotente imperador, sucessor de Filipe III de Portugal, mandava exumar os antecessores para procurar padrões haruscópicos – as únicas perguntas que era capaz de fazer, dado que a deficiência antropométrica não o deixava falar: este rei enfeitiçado, como veio a ser cognominado, só conseguia assobiar.

Que idioma sibilino é este, que evoca El Sibo, dialecto de silvos inventado pelos indígenas Guanches da ilha vulcânica de La Gomera no arquipélago canarino? Este linguajar é a gramática de Guayota, senhor infernal do vulcão Echeyde, o intróito sulfúrico de um mundo inferior feito de tórridas torrentes de lava onde habitam os Tibicenas: diabólicos anões cinocéfalos com corpos cobertos de lanugem negra. Outras culturas partilharam visões heterogéneas de anões de cabelos fulvos que, como os Guanches de La Gomera, assobiavam com aspereza: na selva amazónica, tanto os nativos como os colonos temiam o pruriginoso Curupira, de cabeleira ruiva – às vezes de fogo –, cujos assobios agudos provocavam psicolepsia. A linguagem trinada é hipocáustica – lausperénica: autêntico pleroma do qual emanam os entes elementares deste plutónico meristema. Enroupado de lã preta, o Anão dos Assobios da paróquia da Pena é um hodierno e cinocefálico Tibicena que sopra arcanos por Lisboa naquilo a que os comerciantes ingleses chamam de “assobios-de-lobo”: estrídulas gaitadas produzidas com os dedos enfiados na boca.

Quem são estes anões cuspidos pelo ventre da terra?

Para que participações plexiformes foram projectados?

Amoldados na forja de Hefesto, vejam-nos emergir desse estrato plutoniano em períodos de pestilência e guerra. Os assobios deles mimam os esguichos gasosos solfejados por extrusivas salpinges vulcânicas: comunicações de silfos do submundo de buchos cheios de ferrugem – a língua de animais com ferro na alma, pois estas criaturas fenocristalóides assenhoreiam a arte de extrair metais dos minérios: o magistério metalogénico.

Na mitologia norte-europeia, os anões, seres sapudos que povoam as partes privadas das serranias, apresentam-se como mestres metalúrgicos; tropo transmitido até aos nossos dias pelo mago suíço Paracelsus que, no século XVI, criou a – até aí inédita – figura do gnomo: elemental imaginário que reside nas cavidades intestinas e é capaz de passar por paredes de pedra. Segundo Paracelsus, os gnomos, cuja etimologia por ele inventada significa habitantes da terra, evitavam a companhia dos homens, mas nas Eddas, escritas pelo historiador islandês Snorri Sturlson, os homens são criados, justamente, pelos anões: o homem e a mulher originais – Ask e Embla –, feitos de terra e casca de árvore. Os gnomos paracelsianos são os ínfimos humanóides que, nas histórias infantis, se encovam no mundo quotidiano. Há magia velha por trás dos rodapés, por baixo dos tapetes e entre as ervas mais altas dos jardins – existem espíritos milenares entre as nossas almas bebés: e quando finalmente perecem, cansados de carregarem tanta sabedoria, convertem-se em árvores; como aquela em que foram talhados Ask e Embla.

De acordo com a dendrolatria pré-diluviana, já tivemos corpos vegetais: existem ecos da jornada de preguiçosa vida vegetal para impetuosa vida animal no espantoso livro Hypnerotomachia Poliphili do dominicano italiano Francesco Collona; existem ecos desta ligação dendrológica nas mitocôndrias que residem nas nossas células e na hemoglobina que, pasme-se!, pode encontrar-se nos caules mais carnudos das plantas. Existe ferro nos veios das montanhas e nas nossas veias… Não é a toa que, nas lendas de outrora, os anões fruam já formados das fragas: eles e nós somos descendentes da prole goblinesca dos Telamones: titãs condenados a serem cariátides das estruturas mais densas do planeta e que, com o inexorável avançar do tempo, se integraram em definitivo na própria rocha. De pedra a planta e de planta a bicho. De Pedra Bruta a Pedra Cúbica. Os ritmos da selecção natural e os da matéria amalgamada no fundo do crisol são sempre os mesmos: inícios morosos que dão lugar a cadências cada vez mais aceleradas. Caminhando pelas bulhentas ruas da freguesia da Pena com a ajuda de uma bengala – tirso recheado de fogo prometeico –, o desfigurado e fedentino Anão dos Assobios é um mercurial mensageiro metassomático: é um anão que nos lembra uma idade em que andavam gigantes sobre a terra.

Mais por pseudomorfose que por pseudonímia, o Anão dos Assobios foi perfilhado como apelido pelo perverso padre José Agostinho de Macedo nos panfletos anónimos que publicava contra todos aqueles que iam em sentido contrário ao seu maníaco miguelismo anti-maçónico: a cada investida viperina chamava-lhe gaitada, em referência aos famigerados assobios do proverbial anão. Uma das mais famosas gazetilhas acusatórias, que este rival do respício poeta Bocage escreveu, intitula-se Ritornello do Pardal; impressa em 1825, quando o Anão dos Assobios tinha trinta e três anos. Mas até a este polemista setecentista, até a este vicioso “desiniciado”, o mito não foi mudo, porque o que é um ritornello senão um pequeno retorno e o que é um pardal senão uma águia anã? Este “pequeno retorno” e esta “pequena águia” evocam a alegoria desenhada por Leonardo Da Vinci, na qual pode observar-se um boi indo num barco ao retorno de uma águia coroada que tem um orbe como poleiro – e, surpreendentemente, o mastro da embarcação é uma árvore de copado prolixo. Consiste numa alegoria do princípio ctónico – o boi – transformado pelo elemento fogo – a águia – em substância humana – a coroa. Esta é que é a verdadeira riqueza guardada pelos míticos anões mineralomórficos nas furnas mais fundas da terra – tesouro tão precioso que até um anão pseudonímico tem o dever de tutelar: o talento de transmutar a pedra em carne e a carne em imaginação.

Quantos tolos perderam a razão e a vida em vã obsessão pelo ouro, em traiçoeiros enleios de territórios subterrâneos, sem encontrarem uma única pepita? Porém, o raro e valiosíssimo ouro, metal tão notável que só pode ser dissolvido pela nobre água-régia, é, afinal de contas, alienígena: não é proveniente deste planeta e só foi aqui derramado há cerca de 4 mil milhões de anos por desapiedadas tempestades de meteoritos. Nessa altura, o caroço de ferro e fogo já cá estava: ele é que é a águia bicéfila do mundo – o ouro extraterreno é apenas a auréola dourada que a circula.

Mas existe ouro dentro de nós.

Existe ouro nas estátuas que esculpimos, nos quadros que pintamos e nos livros que escrevemos – e a arte, como o ouro, é impossível de falsificar. Aquilo que produzimos de mais precioso é, como o ouro, raríssimo. Sim, há minério dentro de nós: fundações de ferro e pedra, vigas de faia e pinheiro, mas sem o nimbo refulgente que nos coroa nada disso faria sentido, por mais bem arquitectado que fosse, por mais belíssimo que se apresentasse ou por mais perdurável que provasse ser. Existe ouro dentro de nós: não somos derrelictos. Não fomos lançados no mundo sem outra perspectiva além da morte, porque através da arte – do ouro – podemos transcendê-la. Todos somos, bem vistas as coisas, Anões dos Assobios: mestres metalurgistas daquele que é o metal mais magnífico que temos, o metal mais brilhante de todos – mas quantas vezes escolhemos abandonar ou destruir os nossos melhores quilates? Quantas vezes desistimos de extrair o ouro da nossa alma, porque faz demasiado calor nessa mina profunda e a aragem aparente nos arenga com sacarinas promessas de pirite?

Quasi-ressumbrante, como se fosse feito de gelo, o esqueleto do Anão dos Assobios foi apresentado no acabado Museu de Anatomia do Hospital de São José, onde faleceu em meados do século XIX, condizentemente ao período em que a Companhia Lisbonense de Iluminação a Gás instalou os primeiros vinte e oito candeeiros públicos em Lisboa – luzes que a gente intimidada logo intintulou de “luciferinas”, sem compreender o quanto essa alcunha, de facto, era adequada do ponto de vista etimológico. Diminuto, o esqueleto do Anão dos Assobios foi o Plutão do acervo de anormais ossaturas humanas, do qual fez parte a da tenebrosa Estanqueira do Loreto.

Plutão, possuidor da chave que todos os protagonistas procuram, mas que pouquíssimos são capazes de usar, é a caliginosa divindade da profundez que benzeu com o seu nome aquele que já foi o mais pequeno planeta do sistema solar, entretanto destituído dessa categoria por culpa da falta de volume: somente seis pontos decimais do da Terra – ainda mais pequeno que a Lua. Que maravilhoso magnetismo afluíu na Cintura de Kuiper, a mais de oito mil milhões de quilómetros de distância do Sol, para desovar tão grandiosa miudeza? Que sigilos guarda a crosta gelada de Plutão, a não ser gaitadas feitas de metano, nitrogénio e monóxido de carbono – atmosfera tão hadesiana quanto a do mitológico podredouro vigiado por Cérbero?

Existe ferro, aqui, no negro calcinatório do cosmos; e existe ouro, também, mais perto de nós, para lá de Mercúrio – e entre estes dois ventos, entre o fervescente Siroco solar e a glacial Nortada plutónica, estamos nós, milagrosa matéria viva: o único verdadeiro grande milagre do universo, pois que outro nome se poderá dar ao acidente em que proteínas anarquizadas deram origem a genes civilizados? Ou será que foram os genes a dar origem às proteínas? A verdade é que uns não podem existir sem os outros, por isso… Quem nasceu primeiro? O caos ou a ordem? O ovo ou a galinha? Esta cósmica diprosopia, este universal desespero é que é o verdadeiro Inferno: aquele em que o poeta florentino Dante pôs Plutão a roer as unhas; aquele em que Carlos II de Espanha babuja para cima das tripas mumificadas dos seus antepassados, arrancando os cabelos com astral pavor do porvir e assobiando ininterruptamente como se fosse uma chaleira ao lume; aquele em que, à morte do Anão dos Assobios, “setembristas” e “cartistas” se estoqueiam, esfaqueiam e espingardam uns aos outros na pequena guerra civil que ficará conhecida como a Patuleia. Tudo isto são paráfises da História; tão filamentosas e indiferentes quanto caudas de cometas.

Na paróquia da Pena perderam-se os restos mortais de Camões, a uma pedrada de distância do local onde se perderam os do Anão dos Assobios e os da Estanqueira do Loreto. Este sorvedouro de mártires da pátria é a Cintura de Kuiper de Lisboa. Aqui, a gravidade é tão rarefacta que nada persiste, nada tem hipótese de perdurar. Nem sequer o matadouro que aí fizeram no século XVI, nem sequer o manicómio oitocentista de Rilhafoles, mais tarde Hospital Miguel Bombarda, com o seu panóptico também em forma de sorvedouro. Aqui, nesta terra negra onde apenas corpúsculos são capazes de desforrar-se, de medrar, todas as hipóteses são fúteis fosforescências: luzidias e pontiagudas num imprevisto instante, mas repentinamente esvaecidas.

Faíscam em lentíssimas órbitas plutónicas, como serenas moedas no fundo de um poço. Tremeluzem tibiamente, como resíduos no fundo encardido de um crisol abandonado por um alquimista inepto.

Como chuva escorrendo pelos telhados numa manhã sem luz.

            Ruínas tornadas invisíveis pela corrosão da fantasia.

(Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense. Copyright © David Soares, Charles Sangnoir, 2012.)