quarta-feira, 15 de maio de 2013

Esquilos e cavalos


Palmas Para o Esquilo, novo livro de banda desenhada escrito por mim e desenhado por Pedro Serpa, será publicado em Outubro pela Kingpin Books.

Estou muitíssimo entusiasmado com este título, que consiste numa história sobre a frágil fronteira entre a criatividade e a loucura; é, também, uma história que contém algo de biográfico, com alguns episódios decalcados directamente da minha infância, mas sem ser, de forma alguma, autobiográfica. O esquilo a que o título alude, remete para esse éon infantil, mas, por curiosidade, outras vidas, em outras latitudes temporais, cruzaram-se com o mesmo tóteme. Há pouco tempo, por feliz acaso, descobri esta referência interessantíssima:
«There were intellectuals in the late nineteenth century who recognized this [disenchanted enchantment] and offered a nuanced understanding of enchantment as a state in which one could be "delighted" without being "deluded". Friedrich Nietzsche, for example, relentlessly punctured enchanting illusions - but he also recognized that such enchantments were necessary for human flourishing. (As a child, he constructed an elaborate imaginary world focusing on "King Squirrel I" (...) Nietzsche maintained that "invented world(s)" were not only necessary for human life, but in fact were fundamental constituents of it.»*
Com efeito:
«His sister recalled, "Everything that my brother made was in honour of King Squirrel; all his musical productions were to glorify His Majesty; on his birthday... poems were recited and plays acted, all of which were written by my brother. King Squirrel was a patron of art; he must have a picture gallery. Fritz painted one hung round with Madonnas, landscapes, etc. etc."»**
Como de água para gelo, a criatividade de Nietzsche transformou-se em loucura quando, aos quarenta anos de idade, na cidade italiana de Turim, em 3 de Janeiro de 1889, ele falhou em salvar, não um esquilo, mas um cavalo que estava a ser brutalmente chicoteado por um cocheiro: aparentemente, abraçou o animal acossado, chorando de compaixão, e desmaiou, antes de ser levado aos seus aposentos por dois polícias. É interessante lembrar que, vinte e três anos antes, o escritor Fiódor Dostoiévski descreveu um episódio muito parecido no romance Crime e Castigo, quando o protagonista Raskolnikov sonha que abraça compassivamente um cavalo morto à pancada - e que o próprio Nietzsche, em 1888, numa carta escrita ao autor Reinhart von Seydlitz, descreveu uma mirabolante cena invernal em que um cocheiro urina para cima do seu cavalo macilento, para conforto e felicidade dessa bestiúncula.*** No episódio que espoletou a crise intelectual do filósofo falsamente apodado de niilista, facto e ficção mesclam-se numa fórmula que tem o sabor da lenda - é o que acontece quando os "mundos inventados" criam cópias das suas histórias no mundo de todos os dias? Certamente é o que acontece quando a criatividade embate no polar muro do quotidiano: quebra-se. Enlouquecer é, afinal de contas, o trauma provocado pela aniquilação do espírito.


(Eu e Pedro Serpa, aniquilando.)
           
* Saler, Michael, As If: Modern Enchantment and the Literary Prehistory of Virtual Reality (Oxford University Press, 2012).
**Young, Julian, Friedrich Nietzsche: A Philosophical Biography (Cambridge University Press, 2010).
*** Nietzsche, Friedrich, Selected letters of Friedrich Nietzsche (Doubleday, 1921).