sábado, 18 de maio de 2013

«Os Anormais»: «Terra Incógnita» integral


Muitas vezes, recebo por email pedidos de leitores que me perguntam se lhes posso enviar ou disponibilizar os textos de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012), spoken word escrito e interpretado por mim e musicado por Charles Sangnoir: um ensaio sobre a monstruosidade e a marginalidade, erguido sobre as vidas dos indivíduos excêntricos e deformados que viveram em Lisboa, ao longo de séculos. Sem excepções, a minha resposta tem sido sempre "não", porque este trabalho foi concebido para ser ouvido e não para ser lido; contudo, porque, de facto, recebo muitos pedidos, decidi publicar os quatro textos, aqui nos Cadernos de Daath.
Assim, começo com a publicação da faixa «Terra Incógnita», primeiro capítulo do disco - acompanhado do texto integral respectivo. Em breve, seguir-se-ão os restantes.

Terra Incógnita

Quando uma cidade quer nascer, ela escolhe o local – aquilo que os homens desejam não interessa nada. A metrópole molda-se, eternamente, à semelhança de uma divindade – e na sua configuração residem todas as dimensões da vida; inclusive as invisíveis. As laborações que têm lugar dentro dos seus muramentos são momentâneas, contingentes e dialipetálicas, mas o traçado urbícola sobre as quais se extinguem, era após era, encerra persistência cósmica. Na cidade, uma cultura cunha carácter, abre alicerces, alcança esquadria e transporta-nos da selva selvagem para a civilização. O burgo é como um mundo dentro do mundo e este interjeita-se no texto da história de acordo com o protótipo cosmopolita.

Além das casas e das praças, longe da muralha feita de cheiro e ruído, difunde-se um desolado terral desconhecido: a terra ignota, denunciada pela primeira vez no ano 150 por Cláudio Ptolemeu na sua Geografia. Subúrbios umbrícolas – sílabas soltas da urdidura urbanita, habitadas por hipopótamos, elefantes e escorpiões, canibais e outros vira-casacas: «aqui há leões». Os monstros dos mapas são marginais imaginários que vinculam a fronteira entre a terra incógnita e a realidade dos indivíduos que é, em exclusivo, composta pelos territórios dominados pelo seu rei – aquele que governa, graças ao beneplácito sagrado, e cujo título substantiva as regiões conhecidas. 
 
A anatomia da realidade é influenciada por um importante conceito aristotélico, sob o qual uma coisa só existe quando a forma é adicionada à matéria: esta é passiva, prisioneira da potencialidade, e a forma activa liberta-a. Por este ponto de vista, só existem as coisas que possuem formas definidas. Mas as formas aristotélicas não são os fenótipos dos organismos e dos objectos: são os seus tipos essenciais e já contém o desígnio final. Todas procuram constantemente a nobre ideia nelas contida – e quanto mais próximas dela, mais etéreas se tornam, porque a ideia ideal é Deus: ditatorial manancial de movimento que modela o mundo à Sua imagem. Este é o significado da serpente ourobórica e do lema dos alquimistas «o uno é o todo», mas é aqui, também, que se aloja a convicção discriminante de que os deformados monstrengos, avessos às formas ideais, não têm almas, porque, segundo Agostinho de Hipona, elas têm nojo de formas imperfeitas. De formas indefinidas. No extremo, de formas anormais.

A palavra anormal significa, literalmente, sem esquadria e entenda-se que o anormal é marginal, porque não há lugar para ele no centro; daí que se oculte nas fímbrias dos mapas e nos subúrbios, onde se ocupa do papel de estandarte de perigos vários, como um vulgar sinal de trânsito. A força gravítica do centro é o ritual, nos seus mais diversos feitios, mas o anormal é, por natureza, anti-ritual, em virtude da sua essência extraordinária – extraordinária no sentido de fora da rotina. Para desenhar-se o mapa da realidade é, antes de tudo, indispensável depreender o que é a forma e o que é a falta dela. Em suma, o que é ordem e o que é caos – e como aquela pode, com facilidade, transformar-se neste. A presença no centro do anormal, esse monstro diário – trivializado –, cancela o conceito de comunidade como agregador de potência civilizacional – afronta a lei natural que assiste ao nascimento da ordem e mostra-nos um espelho que somente reflecte a balbúrdia da biologia.

No anormal, tudo é orgânico, corpóreo, elementar – grotesco. A doença, por exemplo, é um estado excepcional de anormalidade, mas o enfermo retorna saudável ao centro quando é sanado. Em oposição, a anormalidade é uma genuína irregularidade que, quando irrompe, imediatamente questiona a lei – revê-a. O indivíduo anormal é um híbrido de humano e animal, logo uma monstruosidade. É um ser interstício, como os leões dos mapas, que tanto pode evocar a pena do observador como a sua repugnância, porque nada é mais repulsivo que algo que desafia a norma; algo que se apresenta de um modo inteiramente oposto ao previsto – algo em que tom, textura e temperatura são contrários ao que era esperado.

Os mecanismos de correcção voltados contra os anormais almejam mais a sua ocultação que a sua integração. Ninguém aceita beber o próprio cuspo, vertido antes para dentro de um copo, mesmo sabendo que o fluído é seu e que não contactou, em momento algum, com agentes poluentes: uma vez proscrito – descentrado – o elemento anormal, seja ele qual for, humano ou não-humano, nunca poderá regressar ao local de onde procedeu. A verdade é que quando as cidades são iluminadas pela glória do seu deus, que nem a Jerusalém Celeste – local restrito de bem-aventurança –, nelas não entrará ninguém considerado impuro, mas unicamente quem estiver inscrito no Livro da Vida do Cordeiro.

Só os inscritos poderão entrar – nunca os proscritos.

Sob as resplandecentes muralhas de jaspe da Jerusalém Celeste, incrustadas de berilo, safira, ametista e sardónica, erguem-se as – nada celestes – barracas dos excluídos: bairros da lata do sagrado onde a anormalidade, conspícua, quase se torna normal.

Vamos visitar os volutabros imaginais de Lisboa.

Vamos ver que anormais ela excluiu para a cercania – para os arrabaldes dos anais. Não será tanto etnologia, como reologia, pois falamos de gente deformada que foi repassada e escoada pela memória da história, mas como observar essa memória e essa história? De acordo com os fundamentos da “história total”, propostos por Braudel e, antes dele, por Michelet?

É melhor confiar na diacronia.

É melhor assumir que, tal como astrónomos, estamos a olhar para luzes pré-históricas, emitidas por estrelas extintas.

Estrelas defuntas como o desgraçado setecentista Gracioso das Bexigas que, com as suas patetices e o incessante berro de «arre-burrinho», regalava os transeuntes nos dias de procissões. Estrelas defuntas como o Poeta de Xabregas, obeso frade mariano que, em meados do século XVIII, agarrando um relicário e uma imagem da Virgem, andava de tasca em tasca a reclamar contra as touradas que roubavam público às missas: «está tudo com os cornos e a Casa de Deus sem ninguém», vociferava para gáudio da garotada e dos inebriados. Estrelas defuntas como o infeliz pai que, no século XIX, arrastava todos os dias o filho doente de igreja em igreja para assistirem ao maior número possível de sacramentos: debilóide, o rapazinho anexava o seu riso aos dos múltiplos paroquianos que troçavam do homem, apelidando-o de Papa-Missas, e, virando-se para o pai, gritava repetidas vezes «não é Papa-Missas, é Papa-Merda». Estrelas defuntas como as infelizes irmãs órfãs Carolina e Josefina, as Manas Perliquitetes, que, em meados do século XIX, depois de serem exploradas até à exaustão por um canalha desprezível que lhes deu a ridícula alcunha, tornaram-se injustamente no arquétipo da dondoca, antes de morrerem de fome na maior das misérias. Estrelas defuntas como o inexplicavelmente indigente José das Caixinhas, o Mano das Manas, sujeito magérrimo, escalavrado e esfarrapado, que vendia lindíssimas caixas coloridas feitas com arte em cartão e papel encontrados no lixo. «É para as manas, muita pobreza», apregoava: «comprem que é para as manas». Quem eram as manas? Ninguém sabia – e, a quem lhe perguntava, o Mano das Manas somente respondia: «estão muito doentes… Muito trabalho. Muita miséria». Ninguém acreditava nele e riam-se-lhe na cara, desprezando as fabulosas caixinhas multicolores que ele acarretava penosamente às costas, sem nunca as amarrotar; às vezes, até aos últimos andares dos prédios mais altos, à procura de clientes. E, no entanto, as manas – duas – existiam mesmo: no número 22 da Rua do Carrião, na freguesia de São José. Foram descobertas, já falecidas de fome, pouco tempo depois do Mano ter morrido e deixado de sustentá-las com o artesanato amoroso.

Vergonha, amargura, tristeza. Plangências profundas que envolvem os espíritos.
Que cidade é esta?

Esta não é a Lisboa que nos foi prometida à esplêndida portada, feita de jaspe.

Estas não são as personagens castiças do folclore que ela engendra para gazofilar turistas.

Há angústia autêntica aqui. Mensagens de sofrimento real, escrevinhadas no pó. Dor e raiva verdadeiros – espremendo corações nos peitos.

Quando uma cidade quer nascer, ela escolhe o local – aquilo que os homens desejam não interessa nada. A metrópole molda-se, eternamente, à semelhança de uma divindade – e na sua configuração residem todas as dimensões da vida; inclusive as invisíveis.

E nós estamos no invisível cosmos dos anormais.

Um Inferno inescrutável.

Antes de chegarmos, nada perturbava este espaço morrinhento, mas agora é possível distinguir dois distantes lampejos que nos iluminarão o caminho. Despertámos duas melancólicas presenças do passado que, como dois quasares que o vácuo não teve forças para apagar, possuem luz suficiente, balastro memorativo suficiente, para serem a voz de todos aqueles que já a perderam. Para serem nossos Virgílios.

A escuridão dilui-se à aproximação destas luzes inseguras. Os contornos indistintos dos séculos transactos acentuam-se, como estampas talhadas de fresco. Passando o estável proscénio em que nos achamos, vamos cobrir os narizes e avançar para estes pestíferos panoramas.

            O que é isto? Está?… Está a chover?!...


(Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense. Copyright © David Soares, Charles Sangnoir, 2012.)