quinta-feira, 26 de junho de 2014

Sobre a Peçonha Branca - em «Lisboa Triunfante»

 
Um excerto do capítulo «A Lição de Arquitectura», do meu romance Lisboa Triunfante (Saída de Emergência, 2008). Neste trecho, inserido no romance em nota de rodapé, mas parte integrante da narrativa – em Lisboa Triunfante todas as notas de rodapé são falsas e consistem em enredo –, observa-se a obra do filósofo fictício Binmarder da Silba, que, no romance, é um heterónimo fantasmático do verdadeiro poeta e cronista quinhentista português Francisco de Sá de Miranda. Binmarder da Silba cruza, ainda, duas personae literárias: o escritor quinhentista português Bernardim Ribeiro e De Selby, o filósofo fictício inventado pelo escritor irlandês Flann O’Brien no romance The Third Policeman. Nesse livro, De Selby, filósofo preferido da personagem principal, aparece apenas nas profusas notas de rodapé e, às tantas, o leitor descobre que ele sonha em destruir o mundo em nome de Deus com uma substância misteriosa, chamada D.M.P., por ele engendrada. Existe, assim, um paralelo entre De Selby e da Silba, por via da Peçonha Branca: droga com a qual Sá de Miranda, em Lisboa Triunfante, se intoxica para escrever e para se relacionar sexualmente com a prostituta Aurélia. A Peçonha Branca foi uma verdadeira droga muito popular na Lisboa Quinhentista e cujos efeitos Sá de Miranda testemunhou e registou. No trecho que se segue, o fictício da Silba conjectura sobre a origem da Peçonha Branca – droga que, em rigor, ainda não se sabe a origem e a forma:

Um artigo muito raro do filósofo Binmarder, publicado pela primeira vez no raríssimo Novas Horas Douradas (1487); incunábulo mais antigo que o Tratado de Confissom (impresso em Chaves no ano de 1489 e, erroneamente, apontado como sendo o mais antigo livro impresso em língua portuguesa). Num estilo proto-humanista, que rejeita a escolástica e antecipa os melhores trabalhos de André de Resende e Garcia da Horta, o visionário Binmarder ousa trazer para a filosofia a tradição satírica dos trovadores goliardos; o que, de certo modo, é a pedra basilar do estilo humanista, já que a glória das letras não passa de um substituto da antiga nobreza cavaleiresca. Enquanto escritor – e filósofo – Binmarder tece nos seus ensaios uma filigrana vaidosíssima que se preocupa em glorificar Minerva e Mercúrio; ou seja: o Intelecto, na pele dos pensadores, e o Comércio, na pele da nova classe burguesa. Neste ensaio sobre, precisamente, a branqueza da peçonha branca, ele coloca a Razão acima do Sentimento para perceber como os efeitos do estupefaciente mais popular do tempo dele estão relacionados com a propriedade principal que é a cor. Transcrevo de “A Branqueza da Peçonha”, retirado de Novas Horas Douradas de Binmarder Da Silba (Vol. II, pag. 157):

«O autor anónimo de O Atlas do Mal, livro que considero a primeira análise metafísica sobre a Sátira porque ao escarnecer dos meus ensaios satíricos ele está, enfim, a julgar esse género literário. A melhor constatação que retiro da leitura do texto enfadonho de O Atlas do Mal é que o autor não tem sentido de humor. Em primeiro lugar, ele acusa-me de ser um viciado em peçonha branca (!) e que a substância querida não só é responsável pela minha péssima prosa (aos olhos dele) como, ainda, a causa da minha fealdade (!!) e dos meus problemas de gota (!!!). Gostava de esclarecer que não sou um viciado. Sou um utilizador, porque a dita droga não rouba o ânimo para me dedicar a outro tipo de tarefas que não sejam o consumo (tarefas como escrever). Não é o local indicado para discorrer sobre a origem farmacológica da peçonha branca, misto do Vegetal e do Mineral, nem do intrincado processo através do qual ela se adapta ao dispêndio humano. (Basta dizer que, de acordo com as crónicas apócrifas de João de Barros - A Ásia Oculta –, toda a peçonha branca que se encontra disponível neste momento provém de um lote imenso que foi produzido há mais de trinta anos na Índia. O motivo da quebra de produção poderá ser a extinção das Centopeias Gigantes do Ganges, bizarros animalejos aquáticos que eram usados pelos fabricantes para pisotear as pétalas da flor da peçonha até estas se transformarem num pó fininho. A extinção das criaturas é justificada com uma inesperada intolerância à água conspurcada pelos indígenas que nela se banham amiúde.) O que me interessa é precisar o modo como a branqueza da peçonha é ela mesma um factor decisivo no modo como afecta o peçonhento (aquele que fuma ou ingere por outros meios – conheço, inclusive, um grande senhor do nosso Reino, que toma a peçonha por via anal com clisteres). A cor branca é, em muitas culturas, sinónimo de beleza ou de pureza. Ao transpor esse ideal para a actividade do peçonhento é legítimo afirmar que a cor não só é uma garantia que o material consumido é puro como a própria prática de o consumir é benta: purificada – e espécie de renúncia ascética ao alimento ordinário por outro mais espiritual (porque comunica com o sentido da visão interior). Os deuses não comem senão ambrósia e o peçonhento sabe que a satisfação que o pão oferece ao esfomeado de comida nada é comparada com o sentimento de satisfação que a peçonha presenteia ao esfaimado de sonhos! Então qual é a simbologia que esconde a flor branca e a peçonha magnífica que é seu sucedâneo? Que grande milagre é (ou era…) realizado pelos milhares de pezinhos das Centopeias Gigantes do Ganges? O que é que elas faziam? Pisavam as pétalas, somente? Ou possuíam um segredo mais elevado como o das abelhas laboriosas? Por que motivo desapareceram? Saberiam demais? Qual o segredo máximo da peçonha branca? É essa resposta que o peçonhento almeja conhecer quando se intoxica: a fé que a generosidade imensa da Natureza, expressa sempre nos feitios mais subtis, lhe mostre o real sentido do acto ao qual é – porque não dizê-lo? – misticamente orientado. Não se trata de preencher o tédio desta vida cada vez mais arreigada do pensamento com novas formas de arrumar as ideias: é buscar na comunhão com a substância secreta a raiz de uma essência! Não anda Sua Majestade em busca do Reino do Preste João? Se tomasse peçonha branca iria encontrá-lo mais depressa, de certeza. Ontem dei peçonha branca ao meu gato. Acho que ele gostou, mas terá compreendido a essência? E se ao tomarmos peçonha branca perdemos aquilo que faz de nós homens e começamos a ser mais como as centopeias que devem, sem dúvida, ter deixado algo de seu na mistela? (Pensem que uma delas escorregava e caía. Acham que a produção parava para que a ajudassem a levantar? Claro que não! Seria, isso sim, impiedosamente espezinhada.) Ou a ser mais como a própria flor que constitui o produto? Então que dizer sobre a terra e a água que nutriram a planta? Onde é que paramos? Em DEUS!... Deus é uma centopeia. Ou uma flor. Não há meio-termo. E tomar peçonha branca é uma experiência de comunhão com Ele.»