Lembro que amanhã, às 21H30, eu e Charles Sangnoir seremos os convidados especiais da tertúlia literária Poesia e Arte, que se reúne todas as terças-feiras no espaço cultural e de convívio Buédalouco Pharmácia da Cultura (Rua do Norte, 60), no Bairro Alto, em Lisboa. Iremos reinterpretar a peça Bairro Alto: Uma Cirurgia (escrita e declamada por mim e musicada por Sangnoir), composta originalmente para as comemorações do quinto centenário do Bairro Alto e apresentada ao público no Palácio Quintela, em Dezembro de 2013. Também se irá ler poesia e prosa de Fernando Pessoa (figura sobre a qual já escrevi no meu romance A Conspiração dos Antepassados). Apareçam.
Deixo-vos com um excerto de Bairro Alto: Uma Cirurgia:
«O Bairro Alto podia muito bem ter
definhado ao grito primevo de partida e não passar de uma espécie de zingamocho
na corola lisboeta – uncial e rebocado como um quadro falsificado. Quantos bairros
e freguesias não se extinguem, em tétrica tanatocenose, no côncavo leito da
história? Toda a matéria possui uma peculiar pecabilidade que empolga o estrago
e nem a xilolatria, nem a litolatria podem remir da ruína esses restos. Os bairros
desaparecem, como se coordenadas geográficas e temporais estiolassem ao Sol que
nem fotos expostas numa vitrina. As linhas do território afunilam, absorvem-se
até ao ponto e, finalmente, atravessada a fronteira da unidimensionalidade,
remetem ao vácuo para nunca mais serem vistas. Existem lugares assim, à nossa
volta: não-lugares, carregados de nada – ao passarmos por eles, sentimo-nos
pesados no corpo e na alma, porque levamos um pouco de morte connosco.
Envenenamo-nos. O Bairro Alto, contudo, persiste – com notável imutabilidade;
tão macróbio quanto a concha de uma amêijoa hipermaturescente.
Escalavraduras estendendo-se pelo
estreito eixo que já escorou a muralha fernandina: ferro compunge tijolo,
próteses de edifícios que amparam assombrações de um tempo igualmente fatal,
mas autêntico. Sobre ele, veículos escorregam como fatídicas faluas e
repercutem nos carris defuntos como em cordas de piano – o ruído é estridente, que
nem gritos de guebros carregados com guelritas. Perpendicularmente aos turistas
apressados, cujas vozes cambalhotam no vento como acrobatas de cartão,
espalham-se graffiti nas paredes:
equimoses hipertricósicas, de cores tão lientéricas quanto o lixo e os mortos que
medram fora da vista, mas que se mantêm – como jóias negras – nos nossos peitos.
Há uma energia bizarra, aqui, neste altiplano que se contorce para o Tejo à
guisa de predador infantil que gazofilou uma presa demasiado grande para a
boca. Se as suas noites fossem silenciosas ouvir-se-iam os murmúrios dos três fios
de água que, sob a Rua do Alecrim, a Rua da Bica de Duarte Belo e a Rua do Poço
dos Negros, se entornam eternamente no Tejo, emitindo um pulsar plutónico que
comunica connosco em código.
O Bairro Alto é uma cirurgia.
Mas que cirurgia é esta?
Por que é que somos, irresistivelmente,
atraídos por ela?
Estas ruas centenárias, que resistiram
incólumes a vários terramotos, moradas mórbidas de desesperos e desejos, são os
liçaróis e os liços da urdidura central olisiponense: sem o Bairro Alto como
tear, a manta de retalhos que é a Lisboa contemporânea nunca teria sido
meselada; nunca teria perseguido, sôfrega, o Sol na sua libitina trajectória ocidental.
Sem esse primitivo modelo, o levantamento da Lisboa Pombalina não teria acontecido:
toda a Lisboa imitou o Bairro Alto, olhou para ele e ficou estupefacta com o
futuro que ela própria já encerrava – ficou de queixo caído à margem do Tejo e
nem Cristino da Silva nem França Borges foram fortes o suficiente para o
lacerar. Persistindo incólume às calamidades provocadas por deuses e homens, ele
é o único grande fóssil vivo de Lisboa – tão assombroso e anacrónico quanto um
variegado celacanto. Mas não se pode compreender essa cirurgia sem uma
iniciática diérese territorial.»