terça-feira, 10 de junho de 2014

«Terminal Tower» de André Coelho e Manuel João Neto


O meu cúmplice André Coelho acaba de publicar um novo livro de banda desenhada, em colaboração com Manuel João Neto, intitulado Terminal Tower, uma observação apocalíptica que, certamente, J. G. Ballard ou até Thomas Pynchon gostariam de ter imaginado. Eu li e recomendo. Aliás, já escrevi sobre ele para o catálogo do Festival Internacional de BD de Beja deste ano. Deixo-vos com esse texto, intitulado O Apocalipse é Fácil. Em seguida, leiam Terminal Tower, que é bom que se farta (uma edição Associação Chili Com Carne, 2014).

O Apocalipse é Fácil

A vida é líquida: derrama do corpo quando este fica repleto de memórias e cheio de perguntas. Não haverá dias melhores: apenas ausência. E confusão para quem permanece.

Quando os organismos morrem, ficam mais pequenos. Que lhes falta? Alma? Ou, apenas, informação? Vimos ao mundo somente para largar informação: genes e obras de arte – crianças, livros. Fósseis resgatados pelos corifeus do progressismo como provas de passados gloriosos; no entanto, quem os deixou não manteve nenhuma revivescência como horizonte. Não pode predicar-se o passado – nem o futuro – dessa forma.

Todas as culturas atribuíram um papel ominoso à ameaçativa estrutura que é a torre, símbolo da húbris, da catástrofe – cunha que se intromete nas rachas da cultura de modo a alargar o estrago e acelerar a queda das sociedades. Capciosamente, transformámos essa representação em transmissor de informação. Contrário ao sinal, o ruído é unidimensional. Contrária à vida, a morte é unidimensional. A vida é um esforço para criar relevo. Isto é Babel: relevo na desértica paisagem achatada; alto o suficiente para alcançar o empíreo. Os batimentos cardíacos no ecrã retinto do monitor são pequenas torres, coruscantes sismografias, avisando que ainda se está vivo, que ainda se comunica. E o mais admirável é a nossa inflexível esperança de que ALGUÉM ESTÁ A OUVIR!...

A esfera, o sólido perfeito, o corpúsculo, o ponto, o elemento constituinte da matéria, é, afinal de contas, unidimensional. Todos os mitos recipiendários têm origem no surgimento da esfera – nunca existiu uma tabula rasa, mas uma orbis rasa. A esfera e a torre são a estilização gráfica da iniciática emissão que perdura em nós. Somos ecos. Somos apenas cópias. Imperfeitas, mas algumas são ainda mais defeituosas. Algumas são monstros.

Os monstros habitam as margens dos sistemas e invadem o centro quando este adoece. Ciápodes – ciclopes: o monstruoso representa uma deformação da unicidade, uma visão unária, indeclinável. Autocrática. Não é à toa que os ditadores são monstros, turiferando um discurso monossilábico até que a informação se transforme em ruído. A forma mentis do monstro fá-lo surgir no folclore como arauto do cataclismo, como mordomo do apocalipse, porém, na vida verdadeira, os monstros não irrompem antes, mas depois. Depois da bomba, os estropiados – depois da expilação nuclear, os mutantes. A monstruosidade é uma sátira cruel à diversidade, uma fantochada feita de ruído. Não tem beleza. Não tem significado. A não ser a beleza do aleatório e o significado que decidimos impor. Criar relevo é inventar significados: vivemos numa realidade imaginada, mas as ficções que criamos não são mentiras, são exofenótipos – não se pode ser humano sem uma torre, mas aceitar a torre é aceitar o monstro. Aceitar o apocalipse. Nada é mais fácil.

Nada é mais terminante.