O meu cúmplice André Coelho acaba de publicar um novo livro de banda desenhada, em colaboração com Manuel João Neto, intitulado Terminal Tower, uma observação apocalíptica que, certamente, J. G. Ballard ou até Thomas Pynchon gostariam de ter imaginado. Eu li e recomendo. Aliás, já escrevi sobre ele para o catálogo do Festival Internacional de BD de Beja deste ano. Deixo-vos com esse texto, intitulado O Apocalipse é Fácil. Em seguida, leiam Terminal Tower, que é bom que se farta (uma edição Associação Chili Com Carne, 2014).
O Apocalipse é Fácil
A vida é líquida: derrama
do corpo quando este fica repleto de memórias e cheio de perguntas. Não haverá
dias melhores: apenas ausência. E confusão para quem permanece.
Quando os organismos
morrem, ficam mais pequenos. Que lhes falta? Alma? Ou, apenas, informação? Vimos
ao mundo somente para largar informação: genes e obras de arte – crianças, livros.
Fósseis resgatados pelos corifeus do progressismo como provas de passados
gloriosos; no entanto, quem os deixou não manteve nenhuma revivescência como
horizonte. Não pode predicar-se o passado – nem o futuro – dessa forma.
Todas as culturas
atribuíram um papel ominoso à ameaçativa estrutura que é a torre, símbolo da
húbris, da catástrofe – cunha que se intromete nas rachas da cultura de modo a
alargar o estrago e acelerar a queda das sociedades. Capciosamente, transformámos
essa representação em transmissor de informação. Contrário ao sinal, o ruído é
unidimensional. Contrária à vida, a morte é unidimensional. A vida é um esforço
para criar relevo. Isto é Babel: relevo na desértica paisagem achatada; alto o
suficiente para alcançar o empíreo. Os batimentos cardíacos no ecrã retinto do
monitor são pequenas torres, coruscantes sismografias, avisando que ainda se
está vivo, que ainda se comunica. E o mais admirável é a nossa inflexível esperança
de que ALGUÉM ESTÁ A OUVIR!...
A esfera, o sólido
perfeito, o corpúsculo, o ponto, o elemento constituinte da matéria, é, afinal
de contas, unidimensional. Todos os mitos recipiendários têm origem no
surgimento da esfera – nunca existiu uma tabula
rasa, mas uma orbis rasa. A
esfera e a torre são a estilização gráfica da iniciática emissão que perdura em
nós. Somos ecos. Somos apenas cópias. Imperfeitas, mas algumas são ainda mais defeituosas.
Algumas são monstros.
Os monstros habitam as
margens dos sistemas e invadem o centro quando este adoece. Ciápodes – ciclopes:
o monstruoso representa uma deformação da unicidade, uma visão unária,
indeclinável. Autocrática. Não é à toa que os ditadores são monstros,
turiferando um discurso monossilábico até que a informação se transforme em
ruído. A forma mentis do monstro
fá-lo surgir no folclore como arauto do cataclismo, como mordomo do apocalipse,
porém, na vida verdadeira, os monstros não irrompem antes, mas depois. Depois
da bomba, os estropiados – depois da expilação nuclear, os mutantes. A
monstruosidade é uma sátira cruel à diversidade, uma fantochada feita de ruído.
Não tem beleza. Não tem significado. A não ser a beleza do aleatório e o
significado que decidimos impor. Criar relevo é inventar significados: vivemos
numa realidade imaginada, mas as ficções que criamos não são mentiras, são exofenótipos
– não se pode ser humano sem uma torre, mas aceitar a torre é aceitar o
monstro. Aceitar o apocalipse. Nada é mais fácil.