segunda-feira, 25 de abril de 2016

Sobre a origem das tatuagens em Lisboa


Fracção integrante da imagética da cultura musical a que pertencem os diversificados universos sonoros que a revista LOUD! referencia são as tatuagens, plasmadas nas peles de artistas, fãs e jornalistas, produtores, editores e promotores, desde logótipos de bandas e reproduções de capas de discos, até desenhos de variadas estirpes que, uns desde os primórdios, outros de adopção mais recente, se tornaram universalmente identificáveis como incumbentes das estéticas e atitudes relacionadas, de maneira geral, com o Metal. Pese a frequência desanimadora de um punhado de lugares-comuns e ideias pré-fabricadas sobre as tatuagens que, ainda, teimam em criar ruído junto da opinião colectiva, é salutar observar-se que nas passadas décadas evoluiu muitíssimo o discurso antropofilosófico que sobre elas discorre, caminhando em consonância com a vulgarização das próprias tatuagens pelo grande público, consequência da sua popularidade entre as mais espectaculares estrelas de cinema e as do mundo do desporto. De mérito desigual, as lojas e as oficinas de tatuadores amadores e profissionais fixaram-se como parte indelével da contemporânea paisagem cosmopolita, assim como da versão açucarada da realidade que é encenada por dezenas de reality-shows, transmitidos pelos canais televisivos. Porém, a esta distância, impõe-se – ou, pelo menos, imponho eu, por gosto e inclinação pessoais – uma inquietação, que é a de especular sobre quais serão as origens das tatuagens nas nossas vistas urbanas portuguesas: a esse respeito, sou capaz de puxar o lustro aos umbrosos limiares históricos das tatuagens em Lisboa, um tema que, certamente, será tão aliciante quanto obscuro.

Os primeiros tatuadores de Lisboa, artistas anónimos que nasceram e morreram nos tempos anteriores ao grande terramoto de 1 de Novembro de 1755, foram viajantes castelhanos que se dedicaram ao ofício algo ingrato da “picadura” e que se fixaram na vizinhança da Ribeira Velha, ao Terreiro do Paço; para utilizar um pionés mais cirúrgico, é válido desvendar que montaram os seus ateliês ao ar livre no adro da quinhentista – e inexistente – Igreja da Nossa Senhora da Misericórdia: sumptuoso templo de contextura e recorte manuelinos, nessa altura somente secundarizado pelo Mosteiro dos Jerónimos e situado não muito longe do local onde, hoje, na Rua da Alfândega, se pode admirar o soberbo portal da fachada da Igreja da Conceição Velha. (Na verdade, esse trabalho compósito foi montado com porções, arquivoltas e tímpano do portal lateral da Igreja da Nossa Senhora da Misericórdia, destruída quase totalmente pelo magno terramoto.)

Aí, sentados no muro raso que circundava o adro da igreja, os “picadores”, munidos de agulhas com cabos de madeira e pigmentos feitos à base de pólvora moída, tatuaram os lisboetas de seiscentos e início de setecentos. Penduradas em cravos de galeota pregados nas frinchas da silharia da Igreja da Nossa Senhora da Misericórdia, encontrava-se em exposição o catálogo de tabuinhas decoradas, pelas quais os clientes escolhiam os desenhos que desejavam ver tatuados: cruzes ornamentais de diversificados feitios ocidentais e orientais, signos-saimões, rostos crísticos, alegorias religiosas, corações incendiados e motivos relacionados com a cultura do mar. Os aristocráticos adoptaram a prática – chique nesse tempo – de serem “picados” nas costas das mãos, entre as bases do dedo indicador e do polegar. Ontem, como hoje, não faltou quem se arrependesse posteriormente de desenhos escolhidos aleatoriamente ou de maneira apressada e esfregava-se furiosamente com sumo de limão a pele “picada” para tentar apagá-los – popular recurso mezinheiro de ineficácia quase completa.

Versáteis, os adros das igrejas fizeram de fórum, mercado, miradouro da vida diária e cemitério: o da Igreja da Nossa Senhora da Misericórdia parece ter sido especialmente predestinado às profissões ligadas à cromofilia, pois fora, desde o século XVI, o principal mercado lisboeta de venda de flores e, depois dos tatuadores o deixarem, em definitivo, acolheu os ambíguos passarinheiros alemães – que aproveitaram os cravos abandonados pelos tatuadores para pendurar as gaiolas, algumas com aves pintadas com pigmentos garridos para passarem por exóticas. Outro tipo de tatuagem, portanto, mas, até este momento, a vocação histórica dessa geografia mantém-se interrompida: o terramoto de 1755 foi o liquidante epitáfio das energias histológicas.

(Crónica publicada originalmente na revista LOUD!​ de Abril de 2015.)