terça-feira, 18 de novembro de 2008

Chegar a Lisboa

O companion para o meu novo romance, Lisboa Triunfante, está disponível para download gratuito através do site das edições Saída de Emergência.
Trata-se de um trabalho que colige apontamentos que apresentam os diversos temas e personagens do livro, sem conter elementos que possam revelar pormenores sobre o enredo: ou seja, tanto pode ser lido por quem já conhece o romance, como por quem ainda o vai descobrir.

«Desembarcando com um nó na garganta como se fosse Santa Úrsula trespassada na goela por uma seta, Antónia pensou que talvez pudesse cantar se o gorgomilo apertado não a deixasse falar; afinal, as visões surgiam-lhe na mente legendadas em verso. A trilha musical seria a algazarra que tanto confundia os estrangeiros acabados de chegar à cidade: o ruído contínuo dos carrilhões das capelas; das campanas das cabras; dos guizalhos dos burros; dos martelos nas quilhas nos barcos em reparação; do ranger das rodas das carretas pelos pavimentos de terra batida; dos cinzéis dos canteiros; dos vaticínios das peixeiras na Pampulha e dos vendedores de hortaliça no Mercado da Ribeira. Olhando de esguelha para o céu, os sapateiros batiam solas debaixo dos fórnices das igrejas, sob a protecção de santos deteriorados.
Empurrada pelo clérigo que continuava a enxugar o pus com o paninho, ela desceu da prancha de desembarque e passou por um bloco de pedra bruta em que alguns marinheiros estendiam roupa molhada – todo o cais fazia lembrar um acampamento. Um tocador de realejo com o mono ao ombro passou perto da linha da água e cuspiu para o mar. Um preto velho estava a ser arrastado pelos pulsos por dois soldados que o queriam embarcar à força; o homem chorava e berrava “Como vou sustentar a minha família se me puserem fora da cidade? Duas refeições por dia e um tecto é tudo o que peço.” Impressionada pela violência, a mulher não se apercebeu da presença de um mendigo que se aproximara de Leal para lhe pedir uma esmola. O prior deu-lhe cinco réis, mas exigiu troco: o pobre agradeceu com uma vénia e apressou-se a devolver-lhe a diferença.»

(Em Lisboa Triunfante. Capítulo Três: "O Reino do Sol".)

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Lisboa Triunfante: a partir de hoje nas livrarias

O meu novo romance, Lisboa Triunfante, estreia-se hoje nas livrarias.
Se têm acompanhado Os Cadernos de Daath, já sabem que a edição conta com duas capas diferentes, dedicadas às personagens principais: a Raposa e o Lagarto.

Trata-se de um livro que conta a história da rivalidade que existe entre essas duas figuras e o modo como ambas usam a cidade de Lisboa para alcançar os seus objectivos (antagónicos); em tangência, fala-se de outras rivalidades: daquela que existe entre a cultura erudita e a cultura popular; ou entre mulheres e homens; e mesmo entre a religião e a imaginação.

Desde a pré-história até aos nossos dias, o enredo de Lisboa Triunfante contém personagens como Aquilino Ribeiro (escritor e revolucionário), D. João V (o nosso "Imperador do Ocidente"), Frei Gil de Santarém (o nosso "Doutor Fausto") e Mestre Boytac (mestre de obras de D. Manuel I e arquitecto do Mosteiro dos Jerónimos).

É, em essência, um livro sobre escolhas perigosas, lutas secretas e o modo como a História é feita de Horror e Fantasia.
É, também, sobre alguns animais que falam, sobre alguns homens que não pensam e sobre uma cidade que vive para sempre.


sábado, 15 de novembro de 2008

Portas para o Céu e para o Inferno

«Avançaram em silêncio pelo caminho poeirento; esburacada pela escuridão, a nuvem de pó levantada pelos cascos dos burros dispersou-se sobre a erva como um grupo de estrelas desmaiadas. Os viajantes viram meia-dúzia de casebres encostados à muralha e vários ovis com carneiros à frente deles; ao contrário dos porcos, que comiam os restos atirados para as ruas, esses animais eram demasiado preciosos para andar à solta. Os pastores que moravam naquelas casas miseráveis, mais os agricultores que viviam para os lados do Mosteiro de São Vicente de Fora, haviam sido recrutados para reparar um troço da muralha que tinha derrocado, o que não ajudava a dissipar o sentimento de inferioridade que sentiam diante dos habitantes do espaço intramurado; um porta-voz fizera queixa a D. Afonso III sobre a humilhação em que consistia a prestação da anúduva, que, ainda por cima, interrompia os trabalhos dos campos sem os quais a cidade não podia subsistir, mas ninguém sabia se o rei aboliria esse imposto. Valadares e Guterres aproximaram-se do arrabalde contíguo à Porta do Sol, cujas casas formavam uma via chamada pelos cidadãos de Rua da Porta do Sol, e observaram as construções de madeira: só podiam ser sustentadas pela vontade indómita de algum génio doméstico descendente dos lares romanos porque eram tão assimétricas que os dois homens obrigaram os burros a andar mais depressa com medo que elas lhes caíssem em cima. Aproximaram-se da Porta do Sol e Valadares percebeu que o cheiro desagradável derivava da esterqueira para a qual os cidadãos despejavam os detritos; não deveriam estar longe desse local isolado onde os bandidos se escondiam durante o dia, o que significava que era arriscado andar sozinho àquela hora. Esticando o braço, o frade puxou a corda para chamar o porteiro; nas proximidades da porta uma figueira enorme servia de abrigo a três andrajosos que dormiam: a passagem para a cidade custava caro e nem toda a gente que se deslocava a Lisboa conseguia entrar. Instantes depois, o porteiro abriu um postigo e observou os visitantes. Perguntou-lhes ao que iam e o que é que traziam.»

«Descobriu um esqueleto encostado ao altar e aproximou-se dele. Parecia ter pertencido a um homem entroncado e deformado: os ossos, pretos como pedra, estavam desmontados, mas distribuídos com minudência de modo a montar a estrutura óssea como ela deveria ter sido. Valadares sentiu-se confundido pelo crânio volumoso e pelo grossíssimo ressalto sobranceiro às órbitas. Enrolado nas clavículas, encontrava-se um cordel com um boneco de osso. Valadares inclinou-se para o examinar. Parecia… Parecia ser uma raposa!... (...) Nesse instante olhou para a parede e gemeu.
(…)
O rosto horrendo do Cristo Lagarto, encortinado pelo fulgor fulvo daquela pedra oculta no interior da terra, possuía um poder fascinante. Nesse momento, o frade notou um movimento inesperado pelo rabo do olho. Olhou para o lado e viu um lagarto sair de um buraco no chão.»

(Em Lisboa Triunfante. Capítulo Cinco: "Pythonomorpha Pentadactyla".)
Nas livrarias a partir de 17 de Novembro. Uma publicação das edições Saída de Emergência.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Fantasia

«Usando o guarda-chuva como um cajado, Aquilino continuou a subir. A tarde escurecia e ele sentou-se debaixo de uma árvore. Tirou uma sanduíche de chouriço, enrolada num pano verde, do bolso do casaco. O chouriço tinha pouca gordura e o pimentão picava na língua; o pão que já começara a enrijecer estava a deixar-lhe a camisa preta cheia de farinha. Lamentou não ter trazido um livro para ler.
Estava sentado num altinho de onde abarcava um vasto horizonte sobre a cidade. Estreitando a vista podia decifrar os contornos da outra banda; à sua volta o vento rinchante abanava a copa das árvores. Não se descobria vivalma; só os rumores próprios dos bosques: o ramalhar da erva; dois ramos secos a baterem um no outro – tactac – uma bolota que caía.
Então, passo a passo, entre os arbustos, como se deitasse o olho ao chouriço, apareceu uma raposa.
Aquilino não a viu romper da vegetação.
O bicho aproximou-se com orelhas altivas; baixando a cabeça, desconfiado, e farejando com o focinho fino. Assim que a viu, Aquilino matou um soluço de surpresa e deixou-se estar quieto. A raposa ergueu a cabeça e olhou para ele: era um animal pequeno, magrinho, de pêlo arrepiado pelo vento. Devagarinho, Aquilino retirou uma rodela de chouriço de dentro do pão e descaindo a mão com gentileza atirou-a à raposa. Ela seguiu a morcela bamboleante com o olhar, mas não se mexeu, continuando a olhar para Aquilino com a cabeça alta.
‘Olha a minha catita’, disse Aquilino com suavidade. ‘Come, linda, come.’
A raposa girou as orelhas e inclinou a cabeça.
O cheiro da carne tentou-a a dar um passo em frente. Aquilino não se mexeu. Vagarosamente, a raposa lambeu o beiço: o focinho afilado, talhado em malícia pura e sonsice, que a saliva anediava. No afago da sombra, sobre a erva fria, a raposa filou a rodela de chouriço e mordiscou, piscando os olhos de satisfação. Aquilino sorriu e procurou uma rodela menos esburgada para lhe oferecer. Atirou-a e a raposa apanhou o naco no ar com um pinote. Aquilino estava a divertir-se.
‘Raposeta vermelheta’, disse, sorrindo. ‘De onde és tu, santinha?’
Entretido, Aquilino falou com a raposa – e, naquele fim de tarde em Lisboa, a poucas horas do espectáculo de fogo-de-artifício, viu algo extraordinário acontecer: entretida, a raposa sorriu para ele.
Olhos amarelos semicerrados numa careta inteligente – o focinho arregaçado num sorriso: um sorriso humano.
Confundido, Aquilino franziu o sobrolho e olhou-a com mais atenção. A ilusão de óptica desapareceu e a raposa voltou a apresentar uma aparência comum: tinha sido uma fantasia insignificante; um truque produzido pela luz moribunda. A raposa mordeu mais uma rodela de chouriço que Aquilino lhe atirou e foi-se embora engolfando-se nos arbúsculos.»

(Em Lisboa Triunfante. Capítulo Dois: "Fantasia". Edições Saída de Emergência.)

Nas livrarias a 17 de Novembro.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Lançamentos da Canto Escuro (mas às claras)

A editora Canto Escuro, do poeta Vítor Vicente, irá lançar dois novos livros no próximo sábado, dia 15: Grafipoesis de Rui Carlos Souto e Odes de Ana Salomé. As apresentações terão lugar na Livraria Trama, às 17H00 (ao Largo do Rato em Lisboa, na Rua São Filipe Nery, nº25B).
Souto já deu à estampa o livro A Poesia dos Pequenos Insectos (Canto Escuro, 2006) e Salomé publicou o livro Anáfora (Edições Pena Perfeita, 2006).

Mas não é tudo: em conjunto, será lançado o novo livro de Vítor Vicente, intitulado Histórias com Pénis e Cabeça, numa publicação das Edições Mortas. (A capa é da autoria de Ana Biscaia.)
Quem está familiarizado com a poesia e a prosa do Vítor terá mais uma oportunidade para levar para casa um novo trabalho que é, simultaneamente, divertido, sensível e que faz pensar. Para aqueles que ainda não conhecem o registo acutilante do autor de As Noites Contadas ou O Tríptico do Narciso, fica o convite para aparecerem (ouçam a entrevista que o Vítor deu a Gilda Castro da TV Universitária de Uberaba, aquando da publicação no Brasil de As Noites Contadas pela Editora O Clássico, que vale a pena).

Consultem o weblog da Canto Escuro e o site das Edições Mortas para saberem mais pormenores destes lançamentos.
Apareçam!

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Fungágá da bicharada



O booktrailer do novo romance de José Saramago: A Viagem do Elefante. O livro já se encontra nas livrarias, numa publicação da Editorial Caminho.

***

Parece que Novembro será um mês no qual a bicharada vai tomar de assalto as livrarias: começa com um elefante, mas podem crer que, no dia 17, uma certa raposa e um certo lagarto também vão fazer das suas.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Apresentações no FIBDA

É já no próximo sábado, dia 8, que a Kingpin Books vai apresentar, às 16H00 no auditório do Fórum Luís de Camões (local que acolhe a 19ª edição do Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora), o primeiro volume de A Fórmula da Felicidade: história de banda desenhada, escrita por Nuno Duarte e desenhada por Osvaldo Medina. A apresentação contará com as presenças dos autores e do editor Mário Freitas.

«Filho de uma vendedora hippie de marijuana e de um pedaço de vinil de um álbum de Jimmy Hendrix, a vida de Victor, um jovem génio enterrado algures no Baixo Alentejo, ganha um novo alento quando descobre a fórmula matemática da felicidade.»

A Fórmula da Felicidade é um álbum com uma arte fabulosa, cortesia de Medina, e estará disponível em breve.

E no domingo seguinte, às 18H00, no auditório do Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem (CNBDI), Leonardo de Sá, estudioso de banda desenhada, irá apresentar o seu novo livro: uma biografia sobre o autor António Cardoso Lopes Júnior, mais conhecido pela alcunha de Tiotónio; fundador do mítico jornal de BD O Mosquito (1936). O livro faz parte da colecção NonArte, editada pelo CNBDI.

Duas boas razões para visitarem o FIBDA (e o CNBDI) no último fim de semana de exposições.

Michael Crichton morreu

O escritor norte-americano Michael Crichton morreu na passada terça-feira, com sessenta e seis anos, depois de vários anos a lutar contra um cancro.

Só li um livro de Crichton (o famosíssimo Jurassic Park), há muitos anos, mas lembro-me que, nessa altura, fiquei surpreendido com o modo como o autor conseguia criar um ambiente intenso com muita facilidade e, mais que isso, como não se esquivava de descrever cenas violentíssimas naquilo que era um livro mainstream. Também me lembro de ter visto na televisão, quando era miúdo, o filme Westworld, escrito e realizado pelo próprio Crichton, e de o ter achado fantástico.

Nos últimos anos, o escritor viu-se envolvido em algumas controvérsias, em virtude das suas opiniões impopulares sobre temas como o aquecimento global. Deixo-vos com uma entrevista que ele deu a Charlie Rose, aquando da saída do romance Next. Vale a pena.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Vintage? Qual vintage, qual carapuça!

A revista LER deste mês traz uma excelente entrevista (e de muita piada) com Miguel Esteves Cardoso: não percam!

«Outra mentira é dizer: "Ai, o meu próximo livro é que vai ser o melhor". As pessoas têm de manter aquela ficção de que vão melhorando com a idade. Isso é uma ficção terrível. Toda a gente sabe que é quando se é novo que se escrevem os melhores livros.»