O companion para o meu novo romance, Lisboa Triunfante, está disponível para download gratuito através do site das edições Saída de Emergência.
Trata-se de um trabalho que colige apontamentos que apresentam os diversos temas e personagens do livro, sem conter elementos que possam revelar pormenores sobre o enredo: ou seja, tanto pode ser lido por quem já conhece o romance, como por quem ainda o vai descobrir.
«Desembarcando com um nó na garganta como se fosse Santa Úrsula trespassada na goela por uma seta, Antónia pensou que talvez pudesse cantar se o gorgomilo apertado não a deixasse falar; afinal, as visões surgiam-lhe na mente legendadas em verso. A trilha musical seria a algazarra que tanto confundia os estrangeiros acabados de chegar à cidade: o ruído contínuo dos carrilhões das capelas; das campanas das cabras; dos guizalhos dos burros; dos martelos nas quilhas nos barcos em reparação; do ranger das rodas das carretas pelos pavimentos de terra batida; dos cinzéis dos canteiros; dos vaticínios das peixeiras na Pampulha e dos vendedores de hortaliça no Mercado da Ribeira. Olhando de esguelha para o céu, os sapateiros batiam solas debaixo dos fórnices das igrejas, sob a protecção de santos deteriorados.
Empurrada pelo clérigo que continuava a enxugar o pus com o paninho, ela desceu da prancha de desembarque e passou por um bloco de pedra bruta em que alguns marinheiros estendiam roupa molhada – todo o cais fazia lembrar um acampamento. Um tocador de realejo com o mono ao ombro passou perto da linha da água e cuspiu para o mar. Um preto velho estava a ser arrastado pelos pulsos por dois soldados que o queriam embarcar à força; o homem chorava e berrava “Como vou sustentar a minha família se me puserem fora da cidade? Duas refeições por dia e um tecto é tudo o que peço.” Impressionada pela violência, a mulher não se apercebeu da presença de um mendigo que se aproximara de Leal para lhe pedir uma esmola. O prior deu-lhe cinco réis, mas exigiu troco: o pobre agradeceu com uma vénia e apressou-se a devolver-lhe a diferença.»
Trata-se de um trabalho que colige apontamentos que apresentam os diversos temas e personagens do livro, sem conter elementos que possam revelar pormenores sobre o enredo: ou seja, tanto pode ser lido por quem já conhece o romance, como por quem ainda o vai descobrir.
«Desembarcando com um nó na garganta como se fosse Santa Úrsula trespassada na goela por uma seta, Antónia pensou que talvez pudesse cantar se o gorgomilo apertado não a deixasse falar; afinal, as visões surgiam-lhe na mente legendadas em verso. A trilha musical seria a algazarra que tanto confundia os estrangeiros acabados de chegar à cidade: o ruído contínuo dos carrilhões das capelas; das campanas das cabras; dos guizalhos dos burros; dos martelos nas quilhas nos barcos em reparação; do ranger das rodas das carretas pelos pavimentos de terra batida; dos cinzéis dos canteiros; dos vaticínios das peixeiras na Pampulha e dos vendedores de hortaliça no Mercado da Ribeira. Olhando de esguelha para o céu, os sapateiros batiam solas debaixo dos fórnices das igrejas, sob a protecção de santos deteriorados.
Empurrada pelo clérigo que continuava a enxugar o pus com o paninho, ela desceu da prancha de desembarque e passou por um bloco de pedra bruta em que alguns marinheiros estendiam roupa molhada – todo o cais fazia lembrar um acampamento. Um tocador de realejo com o mono ao ombro passou perto da linha da água e cuspiu para o mar. Um preto velho estava a ser arrastado pelos pulsos por dois soldados que o queriam embarcar à força; o homem chorava e berrava “Como vou sustentar a minha família se me puserem fora da cidade? Duas refeições por dia e um tecto é tudo o que peço.” Impressionada pela violência, a mulher não se apercebeu da presença de um mendigo que se aproximara de Leal para lhe pedir uma esmola. O prior deu-lhe cinco réis, mas exigiu troco: o pobre agradeceu com uma vénia e apressou-se a devolver-lhe a diferença.»
(Em Lisboa Triunfante. Capítulo Três: "O Reino do Sol".)