sábado, 15 de novembro de 2008

Portas para o Céu e para o Inferno

«Avançaram em silêncio pelo caminho poeirento; esburacada pela escuridão, a nuvem de pó levantada pelos cascos dos burros dispersou-se sobre a erva como um grupo de estrelas desmaiadas. Os viajantes viram meia-dúzia de casebres encostados à muralha e vários ovis com carneiros à frente deles; ao contrário dos porcos, que comiam os restos atirados para as ruas, esses animais eram demasiado preciosos para andar à solta. Os pastores que moravam naquelas casas miseráveis, mais os agricultores que viviam para os lados do Mosteiro de São Vicente de Fora, haviam sido recrutados para reparar um troço da muralha que tinha derrocado, o que não ajudava a dissipar o sentimento de inferioridade que sentiam diante dos habitantes do espaço intramurado; um porta-voz fizera queixa a D. Afonso III sobre a humilhação em que consistia a prestação da anúduva, que, ainda por cima, interrompia os trabalhos dos campos sem os quais a cidade não podia subsistir, mas ninguém sabia se o rei aboliria esse imposto. Valadares e Guterres aproximaram-se do arrabalde contíguo à Porta do Sol, cujas casas formavam uma via chamada pelos cidadãos de Rua da Porta do Sol, e observaram as construções de madeira: só podiam ser sustentadas pela vontade indómita de algum génio doméstico descendente dos lares romanos porque eram tão assimétricas que os dois homens obrigaram os burros a andar mais depressa com medo que elas lhes caíssem em cima. Aproximaram-se da Porta do Sol e Valadares percebeu que o cheiro desagradável derivava da esterqueira para a qual os cidadãos despejavam os detritos; não deveriam estar longe desse local isolado onde os bandidos se escondiam durante o dia, o que significava que era arriscado andar sozinho àquela hora. Esticando o braço, o frade puxou a corda para chamar o porteiro; nas proximidades da porta uma figueira enorme servia de abrigo a três andrajosos que dormiam: a passagem para a cidade custava caro e nem toda a gente que se deslocava a Lisboa conseguia entrar. Instantes depois, o porteiro abriu um postigo e observou os visitantes. Perguntou-lhes ao que iam e o que é que traziam.»

«Descobriu um esqueleto encostado ao altar e aproximou-se dele. Parecia ter pertencido a um homem entroncado e deformado: os ossos, pretos como pedra, estavam desmontados, mas distribuídos com minudência de modo a montar a estrutura óssea como ela deveria ter sido. Valadares sentiu-se confundido pelo crânio volumoso e pelo grossíssimo ressalto sobranceiro às órbitas. Enrolado nas clavículas, encontrava-se um cordel com um boneco de osso. Valadares inclinou-se para o examinar. Parecia… Parecia ser uma raposa!... (...) Nesse instante olhou para a parede e gemeu.
(…)
O rosto horrendo do Cristo Lagarto, encortinado pelo fulgor fulvo daquela pedra oculta no interior da terra, possuía um poder fascinante. Nesse momento, o frade notou um movimento inesperado pelo rabo do olho. Olhou para o lado e viu um lagarto sair de um buraco no chão.»

(Em Lisboa Triunfante. Capítulo Cinco: "Pythonomorpha Pentadactyla".)
Nas livrarias a partir de 17 de Novembro. Uma publicação das edições Saída de Emergência.