quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

"O Evangelho do Enforcado"

«Lisboa, século XV: Nuno Gonçalves, nascido com um dom quase sobrenatural para a pintura, desvia-se dos melhores ensinamentos do mestre flamengo Jan Van Eyck, à medida que perigosas obsessões vão tomando conta dele. Ao mesmo tempo, na sequência de uma cruzada falhada contra a cidade africana de Tânger, o Infante D. Henrique deixa para trás o seu irmão D. Fernando, um acto polémico que dividirá a nobreza e inspirará o regente D. Pedro a conceber uma obra única. E que melhor artista para a pintar que Nuno Gonçalves, estrela emergente no círculo artístico da corte? Mas o pintor louco tem intenções negras, que nada têm a ver com os bons desejos do regente, e o quadro que sairá das suas mãos manchadas de sangue irá, sem sombra de dúvida, mudar o Reino.
Entretecendo História e fantasia, O Evangelho do Enforcado é um romance fantástico sobre a mais enigmática obra de arte portuguesa: os Painéis ditos de São Vicente. É, também, um retrato pungente da cobiça pelo poder e da vida de todos os dias na capital portuguesa do período final da Idade Média. Pleno de descrições tão vívidas quanto pinturas, é uma viagem poderosa ao luminoso mundo da arte e aos tenebrosos abismos da alienação, servida por uma riquíssima galeria de personagens.
Entre num mundo misterioso de arte, loucura e crime.»

O meu novo romance, O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência) vai para as livrarias no dia 12 de Fevereiro. Trata-se de uma história fantástica sobre os Painéis ditos de São Vicente e a vida de Nuno Gonçalves, creditado como sendo o pintor dessa obra.
Acompanhando esse tema encontram-se outros de carácter hermético, tal como as obscuras origens do baralho de Tarot: algo que, neste livro, se corresponde intensamente com a vida e obra de Nuno Gonçalves.

Estou felicíssimo com O Evangelho do Enforcado, que é, para já, o meu trabalho favorito. Deixo-vos com um excerto.
Fiquem atentos, porque em poucos dias realizarei um passatempo para oferecer um exemplar autografado.

«Quando Nuno saiu da oficina, ao cair da noite, sentiu o cheiro a chouriço assado e a água-pé que permeava o Largo da Sé. Tivera um dia de trabalho intenso; só comera um pão roxo ao jantar e estava cheio de fome. Contudo, conseguira um avanço significativo na pintura dos painéis. Os dias como aquele, em que não recebia os modelos, corriam-lhe melhor.
Puxando as mangas para baixo, ocultando as manchas de tinta nos braços, subiu a Rua das Canastras e virou à direita para o Largo da Sé onde viu uma fogueira enorme no centro: as silhuetas das labaredas chicoteavam as lajes da catedral, criando sombras negríssimas que, à guisa de vergastões nas costas de um mártir, lhe ofereciam uma imaculável dignidade divina. A plebe dançava; um grupo de homens, que assava um porco, oferecia pedaços de toucinho a outro porco que por ali passava. Viam-se pessoas sentadas a tocar guitarra nos degraus da igreja, entre elas alguns clérigos, e um grupo de jograis cantava em cima de um palanque improvisado, junto à fogueira. Casais procuravam as sombras para se beijar. Crianças atiravam fezes de cão umas às outras. Pelo rabo do olho, Nuno viu dois fulanos a descarregar um barril de vinho de um carrinho de mão; contemplou o barril e viu que estava marcado com uma sigla que não lhe era estranha.
‘Que festa é esta?’, perguntou, intrigado, a um homem que batia palmas aos dançarinos.
‘São os anos de D. Pedro’, respondeu ele, sem tirar os olhos da dança.
Nuno acenou com a cabeça. Era o selo real que estava marcado no barril.
Afastou-se, coçando os braços: passara o dia todo com comichão, mas o prurido piorara.
Subiu pelo largo e virou à esquerda, nas traseiras dos Paços do Concelho, para a Rua de Trás de Santa Ana. Mal entrou na rua, caíram-lhe pingos de água na cabeça: olhando para cima, descobriu que alguém acabara de pendurar roupa molhada; desviou-se, passando na vizinhança de um beco. Nesse instante, ouviu um ruído. Um gemido.
Virou-se para a viela sem saída e viu um velhote sujo a vir ao seu encontro: o andrajoso andava apoiado em dois bordões e sangrava da boca. Quando se aproximou, a luz fraca que provinha do Largo da Sé foi suficiente para lhe desvendar o rosto. Com efeito, o homem sangrava da boca, mas o sangue não lhe pertencia: era de um cachorro recém-nascido que ele trazia nos dentes.
Com um gesto selvático, o velho ameaçou Nuno com um bordão e, nesse instante, o pintor apercebeu-se que ele trazia uma caixa às costas, suportada por duas correias a tiracolo. Não. Não era uma caixa, mas uma gaiola cheia de animais moribundos. Nuno viu uma amálgama de pêlos e penas – talvez fosse um único animal, um monstro. Talvez fossem as vitualhas daquele velhote. Vitualhas que ganiam.
‘Mmmpff!…’, vocalizou o velho, abocanhando o animal morto. ‘Pfff! Pfff!’
Enojado, mas, em simultâneo, fascinado por aquela imagem infernal, Nuno correu rua abaixo, passando pelas traseiras da Igreja da Madalena, onde um bando de pedintes ressonava, encostado à parede. As ruas de trás são como a parte inferior das pedras, pensou. É onde os vermes se escondem. Descendo por um troço da Rua da Fancaria, ouviu música e gargalhadas; virou à direita, na direcção da Rua Nova.»