segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Entrevista com David Soares sobre "Batalha"

No passado dia 17, a convite da Livraria Bertrand, estive no Castrum Bar, em Castelo Branco, para apresentar o meu novo romance Batalha (Saída de Emergência, 2011). Nessa altura, fui entrevistado pelo jornalista Tiago Carvalho para o jornal regional Povo da Beira. Essa conversa, publicada no passado dia 23, pode ser lida na transcrição que se segue.


«O fenómeno religioso observado pelos animais

Um dos mais conceituados autores portugueses de literatura fantástica, David Soares, esteve em Castelo Branco, no passado dia 17 de Agosto, para apresentar o seu quarto romance, Batalha. O escritor, que soma distinções da crítica nacional e internacional, conversou com o "Povo da Beira", à margem da sessão de autógrafos promovida pela livraria Bertrand e pelo Castrum Bar, nas Docas.


Povo da Beira (PB) - Comecemos pelo novo livro. De que fala o “Batalha”?

David Soares (DS) – É um romance de literatura fantástica que fala sobre o fenómeno religioso, observado do ponto de vista dos animais. Na essência, é uma história alegórica que parte desse ponto de vista, não só para tentar perceber como nós funcionamos perante o sentimento do transcendente, do divino, como também para explorar as relações que existem entre vários sistemas de crenças, o modo como as sociedades se erguem e desaparecem. É também um romance que se preocupa muito com a linguagem.

PB - Prossegue os seus temas de eleição?

DS - Todos os meus romances fazem parte de um mesmo universo autoral, cujos temas basilares são o fantástico, o oculto, a história. O romance “Batalha” inscreve-se nesse universo, mas, por ter animais como personagens principais, foge um pouco à linha dos romances anteriores. Há uma grande alegoria que vai buscar material às mitologias maçónicas e alquímicas, e também à tradição mágica portuguesa e às nossas lendas populares.

PB - Porquê animais? Possibilita ir-se mais longe?

DS - Falar pela voz dos animais é uma boa forma de falar sobre os nossos próprios assuntos e as nossas próprias preocupações. Garante um distanciamento que nos faz observar as coisas de um modo muito mais isento. E isso é importante para se chegar a conclusões pertinentes e importantes. Neste caso em particular, o distanciamento resultante de falar do fenómeno religioso a partir da voz dos animais permitiu introduzir a minha própria voz, que, no que diz respeito à crença, está bastante distante destes assuntos do fenómeno religioso. Foi uma forma que encontrei de reunir essas duas vozes.

PB - Como funcionam as duas vozes?

DS - Apesar de escrever sobre estes temas, em que o fantástico se entrosa com o oculto, o hermetismo, o mitológico, não tenho crenças no sobrenatural, nem no religioso, nem na vida após a morte. Enquanto indivíduo, sou ateu. Mas a minha voz autoral dirige-se para estes assuntos, gosto de falar deles. O ponto de vista dos animais no livro “Batalha” é um ponto de vista distante, um pouco como se fosse o meu.

PB - Criar deuses e religiões é algo muito humano…

DS - Do ponto de vista científico será legítimo questionarmos se os animais têm religião? Bom, o certo é que está provado pela neurociência que os animais têm superstições, criam rotinas e vícios. Nesse sentido estão em sintonia connosco. Agora, para darem o passo além e acreditarem numa religião, seria preciso que os animais tivessem consciência da sua própria mortalidade, coisa que poderão não ter. Aquilo que separa uma religião de outra crença partilhada é que uma religião promete a salvação após a morte.

PB - O entrosamento da ficção com a história obriga a uma grande pesquisa?

DS - Sim. A pesquisa é feita toda no início. Proponho-me a escrever sobre determinado assunto, tento ler tudo o que encontrar sobre ele e depois começo a organizar a história. É delineada em esqueleto, num organigrama rigoroso, que é seguido à risca na fase da escrita. É raro desviar-me desse esqueleto, embora haja sempre espaço para o improviso.

PB - O género fantástico nem sempre é bem visto. Os prémios que o David ganha tornam-no um representante desta literatura?

DS – Antes de mais, infelizmente o mercado do fantástico, nos últimos dez anos, tem sido abanado por alguns fenómenos de mediatismo, cá e lá fora, em áreas que não passam pela literatura. E esse mediatismo cria algumas modas. As modas têm um lado bom, que é introduzir algumas pessoas a géneros que não conhecem, mas têm o reverso que é fazer com que todos os produtos desse género tenham de ser iguais, o que rouba diversidade e espontaneidade. No entanto, não olho para mim como sendo representante de nada. Faço o meu trabalho o melhor que consigo e tento fazer obras que não me envergonhem quando as for revisitar. O género fantástico tem uma vantagem: se as coisas forem bem feitas, os livros dificilmente se deixam datar. Para mim é muito importante criar um livro que perdure no tempo, que conserve a frescura.

PB - Além do romance, tem outras áreas literárias em que investe, não é?

DS - Na essência, sou um escritor e trabalho com linguagens literárias. O romance, o conto, o ensaio e a escrita de banda desenhada são linguagens que pertencem ao espectro das linguagens narrativas. Mesmo a banda desenhada, que é narrativa antes de ser visual. Nesse sentido, o trabalho que desenvolvo em cada linguagem é enriquecedor porque vai alimentar formas de fazer coisas noutras áreas.»