quarta-feira, 21 de março de 2012

Poesia de Pedra


Para celebrar o Dia Mundial da Poesia, lembrei-me de publicar um excerto do meu romance Batalha (Saída de Emergência, 2011): neste trecho, pode ler-se um poema maçónico que escrevi sobre os pedreiros e o arquitecto do Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Na narrativa, corresponde ao encontro da personagem principal, a ratazana Batalha, com a enorme catedral ainda a ser construída.

«Uma nevoeirada de poeira de terra e de pedra desbastada cercava o gigantesco edifício, como um miasma oriundo das profundezas e, ao cimo, cobrindo os pináculos oleifoliados, oblíquos às nuvens que pareciam tocar, uma grelha composta por andaimes, cordames e tapumes servia de sustentáculo às operações ruidosas de canteiros e carpinteiros, munidos de martelos e malhetes. À guisa de orelheiras, os altivos botaréus rompiam o solo e elevavam-se ao longo de paredes mais altas que as árvores, para amparar a estrutura mais imponente que a ratazana encontrara.
Às ordens do arquitecto flamengo David Huguet, os obreiros estrangeiros e portugueses cuidavam para que o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, já atrasado pela inesperada queda, há quatro meses, da recém-construída abóbada da Casa do Capítulo, não se transformasse de vez num mortório.
Nessa altura, o rei D. João, impaciente, tinha sido assertivo quanto ao prazo a cumprir para o desentulhamento da casa capitular e reconstrução da abóbada ruída; com efeito, o geriátrico e destituído mestre Afonso Domingues, logo readmitido no cargo de mestre-de-obras para colmatar o fracasso de Huguet, cumprira o juramento de reerguer a cúpula nos quatro meses impostos pelo rei.
Acabado de abalar do mosteiro, com o seu séquito de cavaleiros, D. João prometera voltar daí a três dias: período em que Domingues permaneceria sozinho na Casa do Capítulo, para provar que a nova abóbada era de confiança. Embora desaprovasse a iniciativa, D. João não teve coragem para contrariar o desejo do velhote que, ainda por cima, fora seu companheiro de armas. Dera-lhe os três dias, mas nem um momento a mais. Antes de partir, instruiu Huguet para que não deixasse ninguém incomodar o velho arquitecto e que todos os trabalhadores se concentrassem, preferencialmente, em outras áreas da construção, para não agitar a estrutura da nova abóbada, já extirpada dos simples que a suportaram.
Com essa admoestação em mente, ex-mestre-de-obras e obreiros, porfiavam, enquanto cantavam para animar as almas:

Contentamento eternal
a quem assim edifica,
em firme união fraternal,
a catedral magnífica.

A cada obreiro é oferecido
um trabalho e uma data:
venturoso é o distinguido
com esse ouro e essa prata.

E cada obreiro ergue um templo
com força e habilidade.
São pedras que abarbam o tempo
e estão na imortalidade.

Riem o alvenel e o canteiro,
ao emendarem os enganos.
Das suas mãos, este mosteiro
assombrará olhos profanos.

O cantochão dos obreiros, virgulado por malhetadas, quase que lubrificava com ressonância as lajes da amplíssima catedral — arte na argamassa, canções que cimentavam; e, nessa lógica de miscigenar o espírito e a matéria, de cunhar com a voz aquilo que se erguia, Batalha compreendeu o que Pedranceiro procurava, aquilo que ele próprio também procurava e que, ao fim e ao cabo, todos os bichos procuravam, às vezes sem sabê-lo, sem terem noção. Compreendeu que ali, à sua frente, estava definição.
Sentido.
Significado.
Naquele vale ruidoso e enlameado, polvilhado de poeira e lascas de pedra, tresandando a suor, a lixo e a dejectos de animais, a vida ganhava um objectivo radiante e a morte era enobrecida, porque, como Batalha intuíra, se estava a deixar uma coisa para trás.

Uma coisa boa.

As carroças passavam junto dele, mas Batalha já não se desviava, tão absorto se encontrava na contemplação da catedral.
Na contemplação do segredo lítico que esta encerrava.
Os homens, por piores que fossem, eram bichos construtores: dos casebres às catedrais, tudo o que faziam era no sentido de marcarem presença no tempo; de, através da preparação da pedra perdurável, também persistirem.
Desde a alvorada do mundo, durante a qual, insignificantes, os bichos homens escolhiam os ossos mais belos para decorarem as sepulturas dos seus mortos, que eles já tentavam findar a finitude erguendo pártenones, panteões e pirâmides de pedra e cascas vazias: sinfonias de vitória, mas não cantadas — imaginadas. Sonhadas.
O mesmo sonho que os fizera pôr-se de pé, entre os corpos dos seus antepassados e os cadáveres ainda frescos dos seus descendentes: a vontade de olhar as estrelas de perto, de falar com elas. De, como elas, se firmarem. De luzirem.
Havia rebeldia nesses desmesurados edifícios que eles construíam: havia cultura e simbologias que se tornavam mais brilhantes ainda, quanto mais terrível fosse a implacável calandragem do tempo. Esse é que era, sem dúvida, o único deus que existia — e o único que valia a pena existir —, o único que, de facto, fazia falta.
A imaginação.
Esse deus magnânimo que agarra a matéria muda e a transmuta em verdadeira catedral orgânica, capaz de, nos trifórios, arquivoltas e galerias do seu piso superior, arquitectar um plano para a vida, um plano para transcender a vida.
Sim, matava-se e destruía-se, comia-se e era-se comido, mas, no final, depois da das injustiças e dos merecimentos serem esquecidos, depois da poeira e do ruído assentarem, o que ficava era a Obra.
A Dádiva.
Essa é que é era a verdadeira razão de viver: não era o mundo que tinha que dar sentido à vida, mas era ela que tinha que dar sentido ao mundo. Cada criatura era uma laje dessa sumptuosa catedral e todos os momentos contavam. Nada, nada, nada podia ser desperdiçado. Nada tinha pouca importância. Nada era trivial.
Escutando o zurrar dos burros, mais os mugidos dos bois, os rinchares das rodas das carroças e os raspares dos cinzéis nas pedras por polir, Batalha, a ratazana, sentiu-se transferida para um andar superior da consciência, da existência.
Nunca mais voltaria a ser a mesma criatura e, por isso, estava grata. Estava paralisada pela beleza tremenda daquele momento. Pela felicidade imensurável de sair das trevas para a luz. Então, fez a única coisa que alguém, confrontado com o terrível maravilhoso, é capaz de fazer.
Chorou.»