Com o objectivo de legitimar o chamado Novo Acordo Ortográfico, a volubilidade da língua tem sido nomeada, até à exaustão, pelos pugnadores dessa modificação – nos quais eu não me inscrevo –, para justificar os transtornos que o supramencionado acordo intenta implementar. A partir daqui, em vez de discutir esses desméritos, prefiro desviar a crónica para outro caminho e chamar a atenção para a ideia que tem sido difundida enquanto suplemento de todo o debate: a de que a língua muda de modo orgânico, consoante o seu emprego no dia-a-dia. É errado: o que muda é a oralidade – a maneira como a língua é exposta diariamente, sempre com atalhos, abreviações e conveniências de carácter prático que têm como fito facilitar a comunicação.
A repetição dos vocábulos através dos tempos cria sempre cópias imperfeitas; não no sentido de que são incorrecções, mas no de que, por vezes, se afastam largamente da matriz e até adquirem significados diferentes dos originais. (Um dos exemplos mais comuns da perda de sentido é o da expressão latina ad hoc, por exemplo, que significa para um fim específico e que acabou por revestir-se com a acepção adversa de desordem.) Quando é a língua, em si, a mudar, ela fá-lo pela mão de quem a labora: os escritores.
Todas as línguas são revitalizadas na página pelos seus autores. Existe, literalmente, uma língua inglesa anterior e posterior a Thomas Browne e John Milton; uma língua francesa anterior e posterior a Michel de Montaigne e François-René de Chateubriand; um português anterior e posterior a Luís de Camões e Aquilino Ribeiro. A língua não muda como se fosse um terreno desamparado, mas às mãos de jardineiros inteligentes que combinam as espécies para que frua algo notável.
A língua portuguesa é, em simplificação, uma corruptela popular do latim – um latim “labrego”, tal como o francês e o italiano: dialectos que, quando cotejados com o latim erudito, se chamavam “linguagens”. (O mais antigo documento escrito em “linguagem” portuguesa data de 1175 e é propriedade do acervo do Mosteiro de São Cristóvão da cidade de Rio Tinto, na freguesia de Gondomar, distrito do Porto: consiste numa “notícia” de fiadores que pertenceu a Paio Soares Romeu.) Ao ritmo do avanço da Idade Média, as linguagens europeias foram sendo sistematizadas pelos seus escritores: em maior espessura, pelos escolásticos que coordenaram as gramáticas. Até o latim erudito não foi excepção: existe um latim anterior e posterior a Marco Túlio Cícero, que, no século I a. C., dedicou os últimos anos de vida à construção de uma língua que se superiorizasse ao grego.
Na peugada de Cícero, os monges completaram um trabalho extraordinário de composição da língua latina, engendrando neologismos diversos e até reinventando o verbo “existir”, que no latim clássico significava apenas aparecer, criando ainda o conceito de entitas como sendo o da existencialidade. Sem as inovações destes escritores pioneiros, a interrogação da existência – aquilo que em alemão se designa por seinsfrage – não seria possível e nunca teríamos lido o Hamlet de Shakespeare e o Walden de Thoreau, nem os escritos de Kierkegaard e de Sartre, muito menos os de Heidegger e de Wittgenstein; os romances de Dostoiévski seriam livros muito diferentes – e nunca teria havido um Dom Quixote.
Todas as palavras retocadas e os neologismos burilados pelos escritores nos seus livros é que fabricam a língua: esta não se faz na rua, ao contrário do que anda a ser dito, mas nas escrivaninhas dos escritores.
(Crónica publicada originalmente no número 133 da Revista LOUD!, em Abril de 2012.)