É na Praça dos Restauradores, em Lisboa, que se ergue o edifício histórico conhecido como Palácio Foz, embora esta designação, relacionada com o título nobiliárquico do seu segundo proprietário, Tristão Guedes de Queirós Correia Castelo Branco, 2º Conde e 1º Marquês da Foz (na altura administrador da Real Companhia do Caminho-de-Ferro), não seja, provavelmente, a mais conforme à razão, posto que Castelo Branco, que comprou o palácio em 1889 a D. Helena de Vasconcelos e Sousa Ximenes, 6ª Marquesa de Castelo Melhor, pouquíssimo usufruiu dessa residência, vendo-se obrigado pela sua débacle financeira a leiloá-la em Maio de 1901. Por outro ponto de vista, existe a ideia de que talvez seja mais ajustado chamar-lhe Palácio Castelo Melhor: dignidade honorífica da família que mandou construi-lo em finais do século XVIII (entre as datas propostas para o início das obras a mais imparcial é a de 1777, não obstante os trabalhos, interrompidos durante o período das invasões francesas, terem terminado somente em 1858).
Em meados do século XVIII, a área sobre a qual se espraia actualmente a Praça dos Restauradores fundava-se num terreno mais ou menos agricultado, sulcado por ribeiras e apelidado de "hortas" do Valverde (vetusta denominação para o vale do Rossio e seus arrabaldes que já existia, no mínimo, desde o século XIV) ou de "hortas da cera", consistindo numa mancha rural que alastrava para Norte, mais ou menos até ao local onde se encontra a Praça Marquês de Pombal.
Abreviando, uma vez desvirtuado da sua função residencial, o Palácio Foz (ou Castelo Melhor) foi comprado por José Rodrigues de Sucena, 1º Conde de Sucena, em 1910, que de imediato alugou diversos dos seus aposentos para ofícios e serviços tão variados como os de modista, fotógrafo ou ourives; é, pois, desse decénio que datam lojas como a sumptuosa Pastelaria Foz (inaugurada em Abril de 1917), que ocupava múltiplas alas do rés-do-chão e das caves, o mítico Club Maxim's e o Central Cinema - todos albergados em múltiplas dependências do palácio. O filho de Sucena, também chamado José Rodrigues, 2º Conde de Sucena, falhou obrigações contraídas com a Caixa Geral de Depósitos e, mais uma vez, o Palácio Foz foi leiloado, sendo vendido posteriormente à Fazenda Pública, em 1940, e integrado no património nacional. Aí se instalou, sete anos depois, o Secretariado Nacional de Informação (antigo Secretariado de Propaganda Nacional). Actualmente, o Palácio Foz é a sede do Gabinete Para os Meios da Comunicação Social, conservando ainda o seu esplendor oitocentista; em grande parte o legado das renovações imaginadas por Castelo Branco que, para o efeito, reuniu artistas ilustres como o arquitecto José António Gaspar, o pintor Columbano Bordalo Pinheiro, o escultor José Simões de Almeida e o escultor e entalhador Leandro Braga, autor da grandiosa galeria, ao estilo francês, que é rematada por um fabuloso trompe l'oeil da autoria do arquitecto, pintor e cenógrafo italiano Luigi Manini.
Subtérrea ao Palácio Foz encontra-se uma "abadia mistérica" na qual avultam o revivalismo arquitectónico da época, assinalado pelo entrecruzar dos estilos neo-gótico e neo-manuelino, e o maçonismo. Com efeito, pode especular-se com segurança que o Restaurante Abadia, também inaugurado em 1917, desenhado pelo arquitecto Rosendo Garcia de Araújo Carvalheira, com colaboração dos escultores José Neto e Costa Mota, tenha sido um espaço multi-dimensional, apresentando-se como restaurante e local de tertúlias maçónicas, em ocasiões distintas.
A planta do Abadia encontra-se repartida em divisões idiossincráticas: o Coro, com um varandim talhado com grande pormenor em madeira e no qual são profusas as alcachofras enlaçadas por cordas de marinheiro, que apresentam as respectivas roldanas, e onde ainda é possível observar uma estatueta de um dragão com seios que evoca, claramente, a águia com seios que se encontra à varanda do chamado "laboratório" do terceiro andar do Palácio da Quinta da Regaleira, em Sintra; o Claustrum, ou "taberna vínica", decorado com cachos de uvas com folhas de oliveira e chão xadrezado; o Refectorium, levantado ao estilo cisterciense peninsular, no qual se pode ver nos capitéis das colunas uns baixos-relevos alusivos às fábulas do escritor francês seiscentista Jean de La Fontaine (como a da raposa que contempla deliciosos cachos de uvas que é impotente para alcançar e que acaba por desdenhar, convencendo-se a si própria que estão verdes); a Capela, pequena divisão complementar ao refeitório. Pontualmente, nas paredes do Abadia, encontram-se celas ou nichos.
Outros elementos artísticos - e simbólicos - determinam a decoração: rodas de lemes com efígies dos navegadores portugueses Pedro Álvares Cabral e Vasco da Gama; uma fonte de "coral" suspeita de ocultar uma passagem para os subterrâneos de Lisboa; diversas andorinhas e pombas; cabeças de elefantes numa mísula claustrina, suportadas por uma personagem que enverga um barrete frígio; e vinte e quatro bustos de maçons e maçonas nos cachorros das paredes Norte e Sul do Refectorium - alguns com as jóias distintivas dos seus graus.
Uma sociedade para-maçónica que conviveu amiúde no Restaurante Abadia (além de continuar a frequentar os locais em que já se reunia, como as caves do Teatro Condes, em frente ao Palácio Foz - o jornalista e escritor Raul Brandão refere, a dada altura, nas suas Memórias que as caves do Teatro Condes foram o berço da queda do regime monárquico de D. Manuel II e a implementação da República) foi o excêntrico Clube dos Makavenkos: agremiação "gastronómico-filantrópica" à qual pertenceram, entre outros, o almirante Francisco Joaquim Ferreira do Amaral, o médico Azevedo Neves, o pintor, ceramista e caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro, o poeta e cronista Raimundo Bulhão Pato, o supracitado Rosendo Carvalheira e o empresário Francisco de Almeida Grandela, um dos fundadores do clube (em 1884).
A empresa (ou divisa) do Clube dos Makavenkos foi um punho fechado, acompanhado pelo mote da Ordem da Jarreteira - «honni soit qui mal y pense» -, e o seu patrono foi a personagem veterotestamentária Noé: célebre prior da vinicultura, tendo plantado a primeira videira pós-diluviana. De facto, foram íntimas as ligações de Grandela e de outros Makavenkos, como o vinicultor José Camilo Alves (da famosa marca de vinhos Caves Velhas), a lojas maçónicas das regiões vinículas de Fanhões e Bucelas - alguns elementos das quais proclamaram a república no dia 4 de Outubro de 1910, nos Paços do Concelho de Loures (o proclamador foi Augusto Moreira Feio): um dia antes dela ser proclamada por Eusébio Leão na varanda dos Paços do Concelho de Lisboa. Independentemente de outros significados simbólicos que possuam as videiras que adornam a Abadia, elas também consistem certamente numa evocação dessas ligações enológicas; talvez residindo no facto de Noé, patrono do clube, que no livro bíblico Génesis recebeu de uma pomba um ramo e folha de oliveira como prova de terra seca, a chave para interpretar a razão pela qual os cachos de uvas se apresentam com folhas de oliveira: são uma alegoria de, pelo menos, duas luzes, a das candeias alumiadas por azeite, que afastam a treva, e a proporcionada pelo domínio da natureza hostil através da vinicultura.
Foi Josué dos Santos, amigo de Grandela e cozinheiro (aparentemente, também fora saltimbanco e ilusionista), que "desvendou" na contracapa do livro Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos (publicado em 1919 pela Marginália Editora e escrito pelo próprio Grandela) a misteriosa origem do nome do clube: «"Makavenkos" eram um povo que existia aqui, no nosso país, e províncias vascongadas, vindo do Japão, das Ilhas Curilas, muito antes da civilização grega, antes do desaparecimento da Atlântida, e que tinham uma seita que professava uma espécie de culto pela mulher esbelta, mundana, com quem conviviam e protegiam aproveitando a mesma para fins de utilidade geral». Este resumo é, como é óbvio, satírico, mas seja qual for a sua origem, sabe-se que o nome Makavenkos foi adoptado como verbo pelos elementos do clube: era às sextas-feiras que esta sociedade "secreta" se reunia para as suas «makavenkadas» ou para «makavenkar».
A boémia dessas epícuras reuniões adquiriu contornos de anedotário, com descrições de danças desempenhadas por belas mulheres despidas, ao som de música tocada por instrumentistas de olhos vendados, e um gradiente generalista de libertinagem. Conhecido é o suposto lado revolucionário do clube (ou de alguns dos seus membros), já comunicado por Brandão, mas menos falado é o seu papel filantropo - subsidiado generosamente por Grandela, sob o qual foram realizadas todas as diligências para construir-se um sanatório para raparigas indigentes e tuberculosas em Cabeço de Montachique, com traça de Carvalheira. As obras foram interrompidas abruptamente em 1919, por culpa da crise económica provocada pela Grande Guerra à qual Grandela não foi imune. O imóvel foi então doado à Assistência Nacional aos Tuberculosos que não o desenvolveu.
Os testemunhos iconográfico e arquitectónico do Abadia encerram, ainda, a intenção de cifrarem-se como um florilégio de monumentos míticos portugueses: é impossível não ver nas salas do restaurante excertos dos mosteiros de Santa Maria da Vitória e de Santa Maria de Belém, assim como o Convento de Cristo. Na época medravam os revivalismos, como o apelidado neo-manuelino (o arquitecto Raul Lino, considerado o "pai" da "casa portuguesa", chamava depreciativamente a esta corrente estética o "estilo neo-manuelinho") que marcou a construção da fachada da estação ferroviária do Rossio, desenhada pelos arquitectos José Luís Monteiro e Adães Bermudes e inaugurada em Novembro de 1890. A Estação da Avenida, como foi originalmente chamada, deu que falar, porque foi pioneira na instrumentalização num edifício público de um estilo arquitectónico até aí considerado apanágio de edifícios reais e religiosos. Ora, o Restaurante Abadia relaciona-se com essa ruptura, pois no início do século XX ainda era comum a maioria das casas de Lisboa serem projectadas pelos próprios empreiteiros e não por arquitectos. O interesse de Carvalheira neste projecto foi certamente mais amplo que o mero compromisso profissional, mas o simples facto de tê-lo feito não deixou de assinalar a importância que um desenho de autor poderia ter para benefício de um equipamento comercial ou público, de imediato um efeito da tónica impressa pelo republicanismo na criação e valorização de espaços civis autênticos.
(Fotos de Gisela Monteiro.)