segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Um encontro significante


Saving Mr. Banks, de John Lee Hancock (argumentista de A Perfect World, de Clint Eastwood - filme que a revista Cahiers du Cinéma elegeu como o melhor de 1993 - e argumentista e realizador de The Blind Side), é uma ficção sobre como a escritora Pamela Lyndon Travers (pseudónimo de Helen Lyndon Goff) e o realizador e produtor de cinema de animação Walt Disney colaboraram na adaptação cinematográfica das histórias de Mary Poppins.

Enquanto escritor senti emoções ambíguas em relação a este filme. Tenho a maior empatia pelo retrato de P. L. Travers, interpretada por Emma Thompson, e pela sua busca - às vezes irracional - para que o filme sobre Mary Poppins seja fiel à sua visão autoral, mas, de igual modo, tenho a maior empatia por Disney, interpretado por Tom Hanks, um visionário que devotou a vida a produzir alguma da melhor animação jamais feita e que, neste caso, está genuinamente interessado em criar um filme memorável. O facto é que Mary Poppins (realizado por Robert Stevenson e estreado em 1964) é espantoso e um triunfo da imaginação: poderá não ser um decalque fidedigno do mundo criado por P. L. Travers, mas não é por isso que deixa de ser maravilhoso. Os livros de Travers são fortemente influenciados por ideias esotéricas, em principal as de George Gurdjieff, que ela conheceu e admirava (algo de que Saving Mr. Banks apenas dá um apontamento muito passageiro), logo é possível que grande parte dos sentimentos negativos que ela nutriu em relação ao filme tivessem florescido por essa via, pelo receio de que a mensagem espiritual dos seus textos se perdesse. Não se sabe de que forma Disney convenceu Travers a ceder os direitos para que a produção avançasse (embora existisse um pré-acordo assinado uns meses antes da visita da escritora aos Estados Unidos) e ainda não está esclarecida a relação de amor-ódio que ela manteve com o filme: aparentemente, rejeitou-o (na estreia terá falado com Disney, à saída da sala de cinema, exigindo-lhe que cortasse a sequência animada, entre outros pormenores), mas foi vê-lo diversas vezes e acabou por concordar que, somente enquanto filme e não enquanto adaptação dos seus livros, era um trabalho bem feito.

Acho que Saving Mr. Banks deveria ser visto por escritores e cineastas, porque suscita algumas interrogações interessantes - e importantes - sobre matérias muito sérias, como integridade artística, visão autoral e como conceber uma digna adaptação cinematográfica de um livro. Saving Mr. Banks é um grande filme, realizado com muito coração. Não tem absolutamente nada de postiço, de cínico ou de oportunista: pelo contrário, é desarmante, franco e emocionante. Para mim, a cena que encerra tudo aquilo que há para dizer sobre ele é a seguinte: à chegada à estreia de Mary Poppins, o motorista de P. L. Travers (interpretado por Paul Giamatti) percebe o desconforto que a escritora sente naquele ambiente que lhe é tão estranho e diz-lhe que foi ela que tornou aquele acontecimento possível, que nada daquilo existiria sem ela; em seguida, ainda sozinha na passadeira vermelha, P. L. Travers é abordada pelo Rato Mickey (por um figurante vestido de Rato Mickey), que lhe oferece o braço e entra com ela no cinema. Ou seja: mais do que ser sobre o choque de personalidades entre Travers e Disney, o filme é, sobretudo, sobre o encontro das suas imaginações - nesse sentido, é particularmente simbólico que seja Mickey a entrar com Travers no cinema. E é tão bom sentir que também nós entramos com eles.
Não percam este filme: vejam enquanto ainda está em cartaz.