sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Coisas


Adoro a mitologia criada em órbita da entidade extraterrestre chamada, laconicamente, "Coisa": espécie de predador cósmico, sem forma e linguagem definidas, cujo método de reprodução consiste na assimilação trófica de outras formas de vida, invadindo-lhes os corpos e criando novíssimas versões artificiais. Nos filmes de John Carpenter (1982) e Matthijs van Heijningen, Jr. (2011), a Coisa demonstra não possuir conceitos ou preconceitos de taxonomia; simplesmente, agarra no material orgânico disponível e molda corpos híbridos, desconjuntados, em que funções de membros e órgãos são trocadas ou reinventadas -- é, no fundo, a interpretação imediata, ultrapragmática, que o proteico instinto exomórfico faz dos seres vivos que vai entranhando, sem ter conhecimentos mais precisos sobre a verdadeira natureza daquilo que está a predar e, no fundo, sem preocupações a esse respeito. A Coisa é, nesse sentido, a antítese da reflexão, da planificação: é totalmente instintiva, animal, primitiva; nos poucos momentos em que exibe alguma estratégia vestigial de médio-prazo, ela está, em exclusivo, ao serviço da sua brutal sobrevivência. Não obstante, é aqui que se acha uma imperfeição que sempre me provocou alguma perplexidade; embora, uma que nunca me tenha retirado a genuína admiração que tenho pela visão de Carpenter e a fruição do filme de Matthijs van Heijningen, Jr.

O comportamento rudimentar da Coisa (o mais completo avatar cinematográfico do horror literário de estirpe lovecraftiana, híbrido de hemorroíssa com Yog-Sothoth; ou seja, a mescla do medo do contágio pelo elemento estranho à comunidade com a imprevisibilidade irascível do destino) não se compagina com o retrato que, em simultâneo, lhe é feito pelos cineastas, enquanto ser cultural e tecnológico com aptidão de, aparentemente, pilotar um intrincado veículo intergaláctico até à Terra; logo, ser criatura civilizacional, com percurso e projecto históricos (vulgo, que vive no tempo, em vez de viver no momento). Para mim, é uma estranheza análoga à de descobrir-se a existência de uma espécie de ténia capaz de edificar estruturas inorgânicas (ou orgânicas...). Contudo, ao procurar informações adicionais sobre esta prequela do filme de Carpenter, percebi, com agradável surpresa, que uma inquietação mais ou menos parecida passou pela cabeça dos criadores do filme.

É que o final original de The Thing, de 2011, previa que a protagonista Kate Lloyd (paleontóloga interpretada por Mary Elizabeth Winstead) descobrisse no interior da velhíssima nave espacial da Coisa (despenhada há milhares de anos no Antárctico e aí conservada no gelo) que essa espécie, afinal de contas, era apenas uma entre muitos organismos recolhidos através do universo para fins de pesquisa científica por outra espécie, inteligente e civilizada: a prová-lo estariam os corpos mortos dos pilotos, eliminados pela Coisa quando este animal se soltou do invólucro que o mantinha prisioneiro, provocando dessa forma a queda precipitada da nave. Teria sido um final estupendo para um filme que, em geral, consiste numa boa prequela/homenagem ao filme de Carpenter, faltando-lhe, evidentemente, a atmosfera angustiante e o sufocante niilismo lovecraftiano que nesse título estão presentes com uma força imensa. A razão pela qual este final foi rejeitado pelos produtores e encenado outro desfecho menos conseguido ocultar-se-á junto das razões que estiveram na decisão de substituir sem justificação provável a totalidade dos efeitos especiais animatrónicos por efeitos visuais gerados digitalmente, o que rouba muita da autenticidade (e desconforto) que fizeram do filme de Carpenter uma obra visionária.