Adoro
a mitologia criada em órbita da entidade extraterrestre chamada,
laconicamente, "Coisa": espécie de predador cósmico, sem forma e
linguagem definidas, cujo método de reprodução consiste na assimilação
trófica de outras formas de vida, invadindo-lhes os corpos e criando
novíssimas versões artificiais. Nos filmes de John Carpenter (1982) e
Matthijs van Heijningen, Jr. (2011), a Coisa demonstra não possuir
conceitos ou preconceitos de taxonomia; simplesmente, agarra no material
orgânico disponível e molda corpos híbridos, desconjuntados, em que
funções de membros e órgãos são trocadas ou reinventadas -- é, no fundo,
a interpretação imediata, ultrapragmática, que o proteico instinto
exomórfico faz dos seres vivos que vai entranhando, sem ter
conhecimentos mais precisos sobre a verdadeira natureza daquilo que está
a predar e, no fundo, sem preocupações a esse respeito. A Coisa é,
nesse sentido, a antítese da reflexão, da planificação: é totalmente
instintiva, animal, primitiva; nos poucos momentos em que exibe alguma
estratégia vestigial de médio-prazo, ela está, em exclusivo, ao serviço
da sua brutal sobrevivência. Não obstante, é aqui que se acha uma
imperfeição que sempre me provocou alguma perplexidade; embora, uma que
nunca me tenha retirado a genuína admiração que tenho pela visão de
Carpenter e a fruição do filme de Matthijs van Heijningen, Jr.
O
comportamento rudimentar da Coisa (o mais completo avatar
cinematográfico do horror literário de estirpe lovecraftiana, híbrido de
hemorroíssa com Yog-Sothoth; ou seja, a mescla do medo do contágio pelo
elemento estranho à comunidade com a imprevisibilidade irascível do
destino) não se compagina com o retrato que, em simultâneo, lhe é feito
pelos cineastas, enquanto ser cultural e tecnológico com aptidão de,
aparentemente, pilotar um intrincado veículo intergaláctico até à Terra;
logo, ser criatura civilizacional, com percurso e projecto históricos
(vulgo, que vive no tempo, em vez de viver no momento). Para mim, é uma
estranheza análoga à de descobrir-se a existência de uma espécie de
ténia capaz de edificar estruturas inorgânicas (ou orgânicas...).
Contudo, ao procurar informações adicionais sobre esta prequela do filme
de Carpenter, percebi, com agradável surpresa, que uma inquietação mais
ou menos parecida passou pela cabeça dos criadores do filme.
É
que o final original de The Thing, de 2011, previa que a protagonista
Kate Lloyd (paleontóloga interpretada por Mary Elizabeth Winstead)
descobrisse no interior da velhíssima nave espacial da Coisa (despenhada
há milhares de anos no Antárctico e aí conservada no gelo) que essa
espécie, afinal de contas, era apenas uma entre muitos organismos
recolhidos através do universo para fins de pesquisa científica por
outra espécie, inteligente e civilizada: a prová-lo estariam os corpos
mortos dos pilotos, eliminados pela Coisa quando este animal se soltou
do invólucro que o mantinha prisioneiro, provocando dessa forma a queda
precipitada da nave. Teria sido um final estupendo para um filme que, em
geral, consiste numa boa prequela/homenagem ao filme de Carpenter,
faltando-lhe, evidentemente, a atmosfera angustiante e o sufocante
niilismo lovecraftiano que nesse título estão presentes com uma força
imensa. A razão pela qual este final foi rejeitado pelos produtores e
encenado outro desfecho menos conseguido ocultar-se-á junto das razões
que estiveram na decisão de substituir sem justificação provável a
totalidade dos efeitos especiais animatrónicos por efeitos visuais
gerados digitalmente, o que rouba muita da autenticidade (e desconforto)
que fizeram do filme de Carpenter uma obra visionária.