É provável que a ubiquação de diversos programas televisivos sobre
gastronomia, aliada à inegável popularização e hegemonia da figura
contemporânea do chef de restaurante, criatura híbrida entre o
cozinheiro fino e o empreendedor finório, seja sinal de que existe um
processo de retrocesso a um tempo em que a comida se consistia como um
poderoso indicador classista. Com efeito, aquilo que se come e como se
come ainda distingue, vestigialmente num feitio tradicional, certas heterodoxias
humanas, como preferências de grupos demográficos, étnicos ou emblemas
de filiações ideológicas de múltiplas ordens; no entanto, assiste-se ao
ressuscitar de uma nova-velha era em que a comida volta a ser símbolo
sistemático, basilar, até, do valor e do lugar dos indivíduos na
mesologia social em que estão inseridos.
Assim, mantimentos de primeira necessidade são vendidos nas superfícies comerciais com selos de dita marca branca, de proveniência obscura e manufacturados com matérias-primas de difícil identificação, muitas vezes ao lado de artigos alimentares apresentados com auras luxuosas nas quais os rótulos tranquilizam os consumidores com mais poder de compra com avisos de que esses produtos não se encontram à venda sob outras marcas ou denominações. Tal como a roupa barata se estraga mais depressa que aquela que é vendida a um preço mais elevado, também a comida barata serve para alimentar de farrapos as massas que ginasticam os seus ordenados de sobrevivência. Fora da esfera doméstica, o restaurante -- palavra cuja significação etimológica se relaciona com o restabelecimento da saúde -- apresenta-se cada vez mais como apogeu das mais ambiciosas aspirações do dia-a-dia: interrupção feérica do tempo rotineiro durante a qual é possível, em princípio, degustar não uma refeição, mas uma experiência sensorial transcendente, idealizada pelo 'chef' consagrado à especialidade dessa eucrasia. Há muito que o chef substituiu a figura do médico, já outrora substituído pelo nutricionista, na psique popular. Neste cintilante e espectacular universo gastronómico, a doença não é mais a fome, mas a pobreza, da qual aquela procede, pois a nova roda dos alimentos está fatiada de acordo com a quantidade de moedas que cada bolso contém, como é curial de um tempo neo-romano em que tudo tem de ser etiquetado com um preço e posto à venda.
Se Juvenal fosse transplantado para estes dias, diria que o pão e o circo não desapareceram, mas que ambos pioraram muitíssimo de qualidade.
(Imagem: O País da Cocanha, de Pieter Bruegel, o Velho. 1567.)