Várias vezes defendi a adaptação cinematográfica do livro The Hobbit,
de J. R. R. Tolkien, realizada em três filmes pelo cineasta neozelandês
Peter Jackson, e ao ver a versão "estendida" de The Battle of the Five
Armies (escrevi "estendida" entre aspas, porque as versões alargadas,
editadas em DVD, são, na verdade, as originais, que serviram de matriz às
mais curtas, exibidas nos cinemas) compreendo que estes filmes não
poderiam, de facto, ter sido feitos de outra forma, pois compõem uma
sequência perfeita que completa, em estilo, tonalidade e lógica
narrativa, a trilogia anterior (The Lord of the Rings). Deste ponto de
vista, penso que os problemas de percepção que The Hobbit cultivou,
desde a estreia da sua primeira parte, relacionam-se com uma certa
deslocação de expectativas: sob o espectáculo deslumbrante dos
superlativos efeitos especiais (à la Ray Harryhausen do século XXI),
existem apontamentos e ideias de uma fina subtileza que são
continuamente interpretados de maneira oblíqua por um público cuja
definição de "fantástico" presente na sua constelação cultural é
paupérrima. Essa palavra ("fantástico") é dinâmica, evidentemente:
tem-se transfigurado no desenrolar das décadas, assim como outros
conceitos mais estruturantes (o princípio setecentista de "mal" difere
em quase tudo da sua acepção contemporânea, assim como o modo como se
vivia a morte no início do século XX é dissemelhante daquele que caldeia
o início deste).
No fundo, prefiro designar o imaginário tolkiano por "mitologia fundacional", posto que aquilo que a maioria do público entende por "fantástico" somente se relaciona com ele por via de algum mimetismo estético: essa pseudoliteratura feita por colagens sincréticas e apressadas dos arquétipos tolkianos, pontuada por uma intrínseca imaturidade, que em nada tem contribuído para a credibilização dos universos da imaginação junto de um público e de uma crítica mais sofisticados. Com efeito, o dito "fantástico" é incomensuravelmente maior que o nicho criado por Tolkien e seus imitadores, mas é, precisamente, esse nicho que chega mais vezes e mais depressa ao grande público - ora, talvez seja atempado e útil remir Tolkien desse nicho, com o qual ele apenas se aparenta superficialmente. Talvez seja atempado e útil deixar de ler Tolkien à luz de alguns anacronismos e preconceitos que têm obstaculizado a sua interpretação e cotejá-lo com os textos das cosmogonias das sociedades pré-clássicas, por exemplo, com os quais, em bom rigor, patenteia muita paridade. Existe um lirismo em Tolkien que nada tem a ver com o receituário patético que a sua obra, infelizmente, criou, mas que se une, profundamente, aos grandes mitos fundacionais.
Para além disso, sob as vestes diáfanas da fantasia, Tolkien cria retratos autênticos da natureza humana. A esse título, observe-se o cenário plasmado em The Hobbit: um tirano ocupa ilegalmente um território rico em recursos, expulsando os seus habitantes que, anos mais tarde, intentam recuperar essa terra prometida; uma vez eliminado esse tirano, assiste-se a uma vera pulverização de poderes, com diversos grupos locais, cada qual à sua maneira e com diferentes motivos, tentando agarrar o controlo desse território. Em paralelo, nas fímbrias do palco, um novo candidato a tirano arrebanha radicais tropas de elite que, sob bandeiras negras, só tem como objectivo a hegemonia global sobre todos os restantes grupos que, note-se, parecem mais interessados em digladiar-se por miríficas riquezas do que em unir-se para combater a ameaça comum.
Sim, Tolkien não tem, de maneira nenhuma, nada a ver com a realidade e a experiência humanas.