Sabemos que o nível de atenção do público está atingindo o nádir
quando a maioria das críticas publicadas pela Internet a «The Abominable
Bride», novo episódio da intermitente série Sherlock (do canal inglês
BBC One), possui como aglutinador a acusação de que o enredo foi
demasiado confuso. A minha opinião é que não foi demasiado confuso, nem
demasiado simplista: manteve um nível razoável de complexidade; mas o
problema desta séria - que existe um problema com ela - não passa por
graus de intrincacia, mas por uma abrupta e intensa vontade dos
produtores em dar ao público aquilo que ele mais aprecia: telenovela.
A temporada mais recente (a terceira) é uma lúcida demonstração de como
o investimento telenovelesco em relações informais (à falta de palavra
melhor) entre personagens, quase sempre pautadas pelo humor, ainda por
cima, deslocando para segundo plano (ou para terceiro plano) aquilo que
foi o cerne da primeira e da segunda temporadas - o mistério policial - e
que fez, com toda a justiça, a fama e a fortuna da série e dos seus
actores principais, está a transformar Sherlock num produto que corre o
risco de alienar todos os espectadores que, enfim, gostam
verdadeiramente do conceito de Sherlock Holmes: ou seja, aqueles que
querem, de facto, ver Sherlock e Watson a resolver mistérios complexos,
de laivos exóticos, que é o apanágio do cânone, e se estão nas tintas
para os ditos problemas de inteligência emocional ou da vida amorosa das
personagens. Aliás, aquilo que torna fundamental a série produzida nos
anos oitenta e noventa pelo canal inglês ITV Granada, interpretada por
Jeremy Brett (ainda o Sherlock perfeito) e David Burke e Edward
Hardwicke (ambos o Dr. Watson, com Hardwicke a compor, sem esforço, a
caracterização definitiva), é a formalidade cúmplice entre os
protagonistas - formalidade, essa, que serve de absoluta "fourth wall"
para o público: quebrada essa fina barreira em Sherlock, a série está a
banalizar-se vertiginosamente, com o titular Sherlock apenas a
passear-se com um ar de "I-do-my-little-turn-on-the-catwalk" e a
desgastar muito depressa uma imagem conquistada com grande
credibilidade. Já se esperava isto, quando Watson, às tantas, lhe diz no
segundo episódio da terceira temporada: "-You are not a puzzle solver;
you never have been. You're a drama queen." É o Sherlock que o público
quer ver, está tudo dito. Quem prefere outro estilo, que reveja os
episódios com Jeremy Brett (eu revi-os todos para tirar o gosto a
telenovela que a terceira temporada de Sherlock me deixou na boca, na
altura em que foi transmitida, e recomendo).
E no que diz
respeito à suposta inovação cénica de Sherlock, em cruzar no mesmo
palco personagens de diferentes linhas narrativas ou de tempos afastados
uns dos outros, vale a pena recordar (que esta coisa da memória anda,
também, pela sarjeta) a saudosa série The Storyteller de Jim Henson
que foi a primeira - e a única até agora, que eu tenha ideia - a fazer a
mesma coisa e de um modo ainda mais hibridizado. Sherlock precisa
urgentemente de recuperar a fortitude testicular que assinalou as duas
primeiras temporadas.