quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Sherlock castrado, não


Sabemos que o nível de atenção do público está atingindo o nádir quando a maioria das críticas publicadas pela Internet a «The Abominable Bride», novo episódio da intermitente série Sherlock (do canal inglês BBC One), possui como aglutinador a acusação de que o enredo foi demasiado confuso. A minha opinião é que não foi demasiado confuso, nem demasiado simplista: manteve um nível razoável de complexidade; mas o problema desta séria - que existe um problema com ela - não passa por graus de intrincacia, mas por uma abrupta e intensa vontade dos produtores em dar ao público aquilo que ele mais aprecia: telenovela.

A temporada mais recente (a terceira) é uma lúcida demonstração de como o investimento telenovelesco em relações informais (à falta de palavra melhor) entre personagens, quase sempre pautadas pelo humor, ainda por cima, deslocando para segundo plano (ou para terceiro plano) aquilo que foi o cerne da primeira e da segunda temporadas - o mistério policial - e que fez, com toda a justiça, a fama e a fortuna da série e dos seus actores principais, está a transformar Sherlock num produto que corre o risco de alienar todos os espectadores que, enfim, gostam verdadeiramente do conceito de Sherlock Holmes: ou seja, aqueles que querem, de facto, ver Sherlock e Watson a resolver mistérios complexos, de laivos exóticos, que é o apanágio do cânone, e se estão nas tintas para os ditos problemas de inteligência emocional ou da vida amorosa das personagens. Aliás, aquilo que torna fundamental a série produzida nos anos oitenta e noventa pelo canal inglês ITV Granada, interpretada por Jeremy Brett (ainda o Sherlock perfeito) e David Burke e Edward Hardwicke (ambos o Dr. Watson, com Hardwicke a compor, sem esforço, a caracterização definitiva), é a formalidade cúmplice entre os protagonistas - formalidade, essa, que serve de absoluta "fourth wall" para o público: quebrada essa fina barreira em Sherlock, a série está a banalizar-se vertiginosamente, com o titular Sherlock apenas a passear-se com um ar de "I-do-my-little-turn-on-the-catwalk" e a desgastar muito depressa uma imagem conquistada com grande credibilidade. Já se esperava isto, quando Watson, às tantas, lhe diz no segundo episódio da terceira temporada: "-You are not a puzzle solver; you never have been. You're a drama queen." É o Sherlock que o público quer ver, está tudo dito. Quem prefere outro estilo, que reveja os episódios com Jeremy Brett (eu revi-os todos para tirar o gosto a telenovela que a terceira temporada de Sherlock me deixou na boca, na altura em que foi transmitida, e recomendo).

E no que diz respeito à suposta inovação cénica de Sherlock, em cruzar no mesmo palco personagens de diferentes linhas narrativas ou de tempos afastados uns dos outros, vale a pena recordar (que esta coisa da memória anda, também, pela sarjeta) a saudosa série The Storyteller de Jim Henson que foi a primeira - e a única até agora, que eu tenha ideia - a fazer a mesma coisa e de um modo ainda mais hibridizado. Sherlock precisa urgentemente de recuperar a fortitude testicular que assinalou as duas primeiras temporadas.