Ao
ler neste momento sobre o problema filosófico do Absoluto, lembrei-me,
de modo absoluto (isto é, acabado em si mesmo, não-contingente), de
determinados espaços que vi poucas vezes na minha infância, mas que
sempre considerei fascinantes: a estância e a drogaria. Na minha
geografia mental, eles nunca contêm pessoas (tal como as melhores
pinturas de Hammershoi), somente um florilégio de objectos e
briquebraques, como espelhos, escovas, panos, louças; ali, na estância
de atmosfera seca — tão grande que parecia uma imperfeição para a qual a
ortogonal malha cosmopolita consistia em pérola — estão suspensas sobre
o longo balcão de madeira dezenas de alfaias esqualomórficas,
lemniscatas de ferro e cobre cujo uso nunca determinei: que estranha
física, aquela que elevava o metal ao tecto e agarrava papel, areia e
plástico ao chão, nas formas mais dóceis e perceptíveis de lixas,
serraduras e mangueiras. Porém, na recendente drogaria todos os
artefactos derivavam uns dos outros, em estonteante reprodução assexuada
— amebas de vidro e tecido, de borracha e cortiça, dispostas nas
escadas, nas paredes e nas portas. Infenitesimais parafusos coabitavam
com colossais misturadoras de cimento, cujo antracíticos ventres davam
ares de gigantes caldeirões caligráficos numa lista medieval. Cheira a
cera e a suor e a farinha creme que se desprende de contraplacado
serrado vai misturar-se como cacau em pó com a luz projectada da rua
pela porta. E, no entanto, não existem pessoas nestes espaços
atafulhados. Todos os sons, cores e formas estão lá por si só. E ao lado
da caixa registadora vê-se um calendário cheio de pó e lascas de
ferrugem: sem utilidade num espaço intemporal que é o da mente, é livre
para existir por si mesmo, sem a contingência que o unia à marcação do
tempo. Tóteme do absoluto num interior tão desértico e relevante quanto
uma paisagem marciana.
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terça-feira, 22 de janeiro de 2019
Nota sobre o Absoluto
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domingo, 11 de dezembro de 2011
Portas brancas
As Portas Brancas (1905) do pintor dinamarquês Vilhelm Hammershoi (1864-1916), um dos meus artistas preferidos. Os quadros de Hammershoi são esmagadores. Neles, inversamente ao que possa parecer, não há lugar para a minimidade, nem para elipses: a solidão vocifera e predomina em tudo. Aqui, sim, mais do que em Munch, se grita de modo ensurdecedor.
Aceita-se o truísmo de que vivemos na era da imagem, mas, na verdade, como lhe damos pouca importância. Valorizamos as imagens em movimento de algum cinema e da televisão, mas o poder que operam sobre nós é somente um poder orgásmico, reduzido no tempo e na topografia. A apreensão epifânica de um verdadeiro significado (de natureza variável, conforme cada indivíduo) pertencerá, ainda, ao domínio da imagem parada, como a da pintura e da fotografia. Observar um quadro, como este de Hammershoi -- que é quase toreumatográfico --, é viajar para dentro dele, numa constelação fecundativa. Precisamos, talvez, nesta era das imagens, de redescobrir o valor delas.
sábado, 10 de dezembro de 2011
Novos monstros
Hoje sabemos quais são as formas que os monstros afigurados pela Razão podem assumir, mas ainda não sabemos em que feitios se manifestarão os monstros concebidos pela Emoção.
(Quadro: As Quatro Divisões, Vilhelm Hammershoi. 1914.)
(Quadro: As Quatro Divisões, Vilhelm Hammershoi. 1914.)
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