O medo é um barómetro
social. Por ele são medidas as fronteiras ontológicas de uma determinada
comunidade, situada num tempo em específico.
Do ponto de vista
nosológico, enquanto plasma de patologias e ansiedades, o medo pouco ou nada se
aparenta com aquela emoção bem conhecida, correlacional à sobrevivência, e que
é partilhada por um grande conjunto de seres vivos – incluindo as plantas, que,
pese não possuírem sistemas nervosos, sentem medo e transmitem-no entre si
através de mensagens químicas (o pungente cheiro da relva cortada é enviado
pelas folhas mutiladas, de molde a avisar todo o manto verde que está sob
ameaça). Não obstante, quando se fala em medo no contexto humano, mormente
dirige-se o pensamento a uma peculiar estirpe de construção intelectual, baseada
no simbólico; naquilo que, em suma, não existe exteriormente à sua
representação alegórica ou espiritual. Pois o homem é, provavelmente, a única
criatura capaz de sentir medo de conceitos abstractos; mesmo que na origem
desses receios não se excluam imagens, acções ou objectos materiais. Ora, o futuro
é por mérito próprio uma abstracção.
Ao dealbar do
desenvolvimento da escrita, a concepção do tempo mantida pela civilização
mesopotâmica cifrava-se num cunho diametralmente oposto ao actual; pois se para
nós é inato imaginar o futuro como estando à nossa frente, para os antigos
mesopotâmios ele estava atrás deles. Nessa singular sequenciação temporal, o
passado, por ter sido experienciado, podia ser observado através da
memorização, podia ser examinado em consciência, estava palpável diante dos
olhos; o futuro, invisível porque inconcretizado, situava-se atrás dos olhos. Estava-se
de costas para o futuro. Assim, a civilização próximo-oriental de entre o Tigre
e o Eufrates era profundamente conservadora, pois quem poderia saber que
espécies de perigos e catástrofes traria o futurível que constantemente
espreitava sobre o ombro? O futuro era – e é – desconhecido e o medo do
desconhecido permanece como uma das mais fortes manifestações dessa emoção.
No entanto, é precipitado
encerrar a questão nesse unívoco resultado, pois nesta matéria as fórmulas
deixadas em aberto apontam para cálculos mais complexos. Com efeito, não será
tanto o desconhecido, em si, que provoca medo, mas o potencial perigoso que
trará à guisa de lastro; nesse feitio, o medo do desconhecido amiúde se corporaliza
em órbita de imagos – ou mitagos – já familiares e que se consideram adversos, indesejáveis,
contaminantes. No modo como uma comunidade se relaciona com o tempo e com o
espaço reitera-se um longo movimento de contracção e de dilatação que
constantemente absorve e expulsa conceitos e discursos numa profunda iteração
identitária: no espaço exterior à comunidade estão bem definidos os monstros. Nos
mais perturbantes momentos de ruptura – aqueles em que os monstros vêm de
dentro – a comunidade metamorfoseia-se, vaporiza-se e sublima-se numa nova-velha
comunidade que procura incessantemente recuperar a configuração originária.
Nessa óptica, os contemporâneos romances e filmes de horror são, em simultâneo,
galeria e vacina, pois mostram-nos a uma distância segura – a da inexistência
de uma ameaça – os géneros de medos dos quais nos queremos inocular. É o
barómetro social em funcionamento. Porém, a praxis não é tão contemporânea
quanto isso.
Para não recuar mais que
a Idade Média, observe-se que os exempla
eclesiásticos, os contos morais do hagiológio e as parábolas devocionais
executavam o mesmo efeito no seio de uma cristandade milenarista – e que depois
do ano Mil persistiu em sê-lo. Contudo, a feição desse sentimento mudou
inteiramente ao longo da Modernidade, pois o homem arrogou a tarefa de
construir ele próprio o Milénio. Aliás, o género literário das utopias aparece em
Quinhentos como um estilo reaccionário de literatura: num momento em que a
sociedade europeia construía gradativamente os alicerces do estado moderno, os
utopistas propunham o atávico e rápido retorno a uma medievalidade que, muitas
vezes, era espúria e só existia nas suas cabeças. Não é à toa que as ditas
utopias se situam frequentemente em ilhas inacessíveis ou em recônditas cidades
fortificadas, um gesto de territorialização política de fantasias que se querem
exclusórias e que reflecte, de maneira inversa, a antropomorfização daquilo que
provoca o medo: antropomorfiza-se o agente do terror de molde a aplacá-lo, como
se assim fosse possível chamá-lo à razão. Um exemplo cristalino desta atitude
foi a criação das múltiplas seitas de flagelantes aquando do grande surto
trecentista europeu de Peste Negra: romando por ruas atapetadas de cadáveres,
os flagelantes talhavam a carne e vertiam o sangue para pacificar o praeternatural
elemento morbígero. Não eram diferentes de nós quando hoje usamos a mesma
linguagem antropomorfizante para falar do medo ligado ao clima e ao planeta (“o
planeta está doente”, “a natureza está zangada”, “para salvar o ambiente temos
de nos sacrificar”). A linguagem é performativa e criadora de realidades.
A importância e a sofisticação
de certas obras contemporâneas de literatura e cinema que reflectiram sobre a
problemática do medo do futuro são variáveis, mas dois romances de ficção
científica pontificam na minha opinião como axiomáticos dos medos que têm
dominado nas últimas décadas o Ocidente: The
Drowned World, de J. G. Ballard, publicado em 1962, e The Sheep Look Up, de John Brunner, publicado em 1972. No livro de
Ballard – que iniciou todo um sub-género da ficção científica rebaptizado
recentemente de cli-fi (ficção
climática) –, um evento de aquecimento global alterou o ecossistema do planeta
para condições análogas às do período Triásico. Com personagens que não querem
reverter a catástrofe, mas a abraçam, é a primeira distopia climática de
Ballard, à qual se seguiram The Burning
World (1964), sobre um mundo em que a água é cada vez mais rara, e o
inquietante The Crystal World (1966),
sobre uma irreversível pandemia de cristalização que mineraliza todas as formas
de vida. Assentando em diferente enunciado, o romance de Brunner, publicado dez
anos depois, já não elege o aquecimento global como motor da catástrofe, mas a
poluição. Do ponto de vista narrativo, Brunner está menos interessado que
Ballard em contar uma história dita tradicional, com início, meio e fim,
preferindo uma abordagem mais impressionista, embora com personagens e espinha
vertebral comuns. O resultado é uma das mais negríssimas distopias –
ambientais, também – já escritas em ficção científica, perpassada por uma
frieza perturbante.
Quanto ao cinema, é admissível
que os dois primeiros filmes da série Exterminador Implacável, idealizada pelo
cineasta americano James Cameron, consistam nos exemplos de massas mais
completos, porque têm a arte de combinar nos tropos dos filmes de acção e de terror
dois grandes medos contemporâneos: o de um holocausto nuclear, que ensombrou as
gerações que viveram a Guerra Fria (e que estará novamente a erguer a cabeça),
e o da projectada automatização do trabalho – sobretudo, o da autonomização da
máquina pelo despontar da inteligência artificial. Por este conceito sopra,
aliás, um vero perfume a antigos terrores que possuem sábios ou conventículos
secretos a entretecer teias maciças de conspiração, capazes de enredar o globo
– pois que outra coisa não é essa inteligência artificial tornada diabólica que
uma espécie de Velho da Montanha virtual?
Neste aspecto, em
particular, não deixa de ser revelador do extremo egocentrismo da mentalidade
hodierna que o medo do futuro continue a passar pela antropomorfização de
forças ainda invisíveis e incontroláveis.
(Texto publicado originalmente no jornal MEDO: número especial temático, editado por João Paulo Cotrim e Carlos Morais José, do suplemento h do jornal Hoje Macau, por ocasião do FOLIO (Festival Literário de Óbidos), em colaboração com a Editora Abysmo.)