A idade contemporânea padece de um erro de percepção de que teima em
não se escamotear: o de confundir ciência com método científico.
Este consiste num algoritmo confiável e constante; a outra é um nome que
se atribui a disciplinas, a conjuntos de saberes, que, com
exclusividade, se arrogam de ser representadas pelo método científico e
de representá-lo — fazendo lembrar certas divindades da antiguidade que,
em simultâneo, eram o Deus de uma certa propriedade e a propriedade em
si. Porém, o método científico é perpétuo e anterior às ciências
modernas se terem coalescido como tais. Pelo contrário, as ciências nada
têm de perpétuo: vêm e vão; e por vezes tão depressa quanto apareceram.
A Frenologia foi considerada uma ciência, assim como a Eugenia — e não
foram tratadas, digamos assim, como hoje olhamos com displicência para
as pseudociências, mas recebidas, divulgadas e leccionadas como Ciências
de C grande. Hoje, do mesmo modo que outras ciências que foram
consideradas de C grande nas suas épocas respectivas, estão — e ainda
bem —completamente desacreditadas.
Assim, quando ouço falar em
“consenso científico” fico desconfiado: acreditar que a cárie era
provocada por um verme que vivia nos dentes já foi consenso científico;
achar que o hálito dos gatos era venenoso já foi consenso científico;
achar que os animais não eram capazes de sentir dor e que estariam só a
“fazer fita” enquanto uivavam e se contorciam ao ser dissecados vivos
fez com que a prática geral da vivissecção fosse consenso científico;
achar que a teoria gravitacional newtoniana estava certa e que Einstein
estava errado já foi consenso científico; leccionar a teoria da
recapitulação já foi consenso científico; classificar negros como símios
e sub-humanos já foi consenso científico; declarar que a radiação
nuclear fazia bem à saúde já foi consenso científico; abortar
compulsivamente fetos saudáveis e esterilizar centenas de homens e
mulheres na Europa e nos Estados Unidos, porque foram considerados
mentecaptos pela ciência já foi consenso científico; alarmar a sociedade
com o fantasma de um Inverno Nuclear já foi consenso científico;
difundir nos media a toda a hora a popular crença de meados do século XX
no Arrefecimento Global já foi consenso científico. Em suma, já
existiram milhares de consensos científicos que foram recebidos como
verdadeiros, autoritativos, imutáveis, mas que hoje se compreende que
não só não tinham nada de científico como já nada reservam de
consensual.
A existência de um consenso, seja em que área for,
somente nos diz que uma maioria de indivíduos partilha uma opinião, uma
crença ou uma ideologia — a palavra “consenso”, só por si, não possui
nenhum valor científico nem nenhum superior valor deontológico; assim
como o enunciado “a ciência diz”, pois qual ciência é que se invoca, em
majestática terceira pessoa do singular, de maneira a credibilizar
campos de conhecimento tentativos, arbitrários e, provavelmente, falsos.
Do mesmo modo que as pseudociências repescam de arrasto elementos e
gramática científicos para credibilizar-se junto do público, também as
Ciências, propriamente ditas, incorrem no mesmo beato enfatuamento com a
sua reputação de rigor — que lhes é, sobremaneira, emprestada pelo
método científico.
A Ciência não tem, para concluir, o monopólio
do rigor: a arte pode ser rigorosa, no sentido de ser correcta à luz de
objectivos estéticos e preceitos técnicos específicos e não é
científica; a literatura pode ser rigorosa — perfeita, inclusive — sob
todas as exigências do prontuário e da elegância gramatical e não é
científica. A precipitada adopção das palavras “ciência” ou “científico”
cada vez que se pretende cunhar uma matéria ou uma disciplina como
sendo rigorosa — ou até mais rigorosa que outras — é um erro que já
seria altura de corrigir.