sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Sobre consensos e vaidades


A idade contemporânea padece de um erro de percepção de que teima em não se escamotear: o de confundir ciência com método científico.

Este consiste num algoritmo confiável e constante; a outra é um nome que se atribui a disciplinas, a conjuntos de saberes, que, com exclusividade, se arrogam de ser representadas pelo método científico e de representá-lo — fazendo lembrar certas divindades da antiguidade que, em simultâneo, eram o Deus de uma certa propriedade e a propriedade em si. Porém, o método científico é perpétuo e anterior às ciências modernas se terem coalescido como tais. Pelo contrário, as ciências nada têm de perpétuo: vêm e vão; e por vezes tão depressa quanto apareceram. A Frenologia foi considerada uma ciência, assim como a Eugenia — e não foram tratadas, digamos assim, como hoje olhamos com displicência para as pseudociências, mas recebidas, divulgadas e leccionadas como Ciências de C grande. Hoje, do mesmo modo que outras ciências que foram consideradas de C grande nas suas épocas respectivas, estão — e ainda bem —completamente desacreditadas.

Assim, quando ouço falar em “consenso científico” fico desconfiado: acreditar que a cárie era provocada por um verme que vivia nos dentes já foi consenso científico; achar que o hálito dos gatos era venenoso já foi consenso científico; achar que os animais não eram capazes de sentir dor e que estariam só a “fazer fita” enquanto uivavam e se contorciam ao ser dissecados vivos fez com que a prática geral da vivissecção fosse consenso científico; achar que a teoria gravitacional newtoniana estava certa e que Einstein estava errado já foi consenso científico; leccionar a teoria da recapitulação já foi consenso científico; classificar negros como símios e sub-humanos já foi consenso científico; declarar que a radiação nuclear fazia bem à saúde já foi consenso científico; abortar compulsivamente fetos saudáveis e esterilizar centenas de homens e mulheres na Europa e nos Estados Unidos, porque foram considerados mentecaptos pela ciência já foi consenso científico; alarmar a sociedade com o fantasma de um Inverno Nuclear já foi consenso científico; difundir nos media a toda a hora a popular crença de meados do século XX no Arrefecimento Global já foi consenso científico. Em suma, já existiram milhares de consensos científicos que foram recebidos como verdadeiros, autoritativos, imutáveis, mas que hoje se compreende que não só não tinham nada de científico como já nada reservam de consensual.

A existência de um consenso, seja em que área for, somente nos diz que uma maioria de indivíduos partilha uma opinião, uma crença ou uma ideologia — a palavra “consenso”, só por si, não possui nenhum valor científico nem nenhum superior valor deontológico; assim como o enunciado “a ciência diz”, pois qual ciência é que se invoca, em majestática terceira pessoa do singular, de maneira a credibilizar campos de conhecimento tentativos, arbitrários e, provavelmente, falsos. Do mesmo modo que as pseudociências repescam de arrasto elementos e gramática científicos para credibilizar-se junto do público, também as Ciências, propriamente ditas, incorrem no mesmo beato enfatuamento com a sua reputação de rigor — que lhes é, sobremaneira, emprestada pelo método científico.
A Ciência não tem, para concluir, o monopólio do rigor: a arte pode ser rigorosa, no sentido de ser correcta à luz de objectivos estéticos e preceitos técnicos específicos e não é científica; a literatura pode ser rigorosa — perfeita, inclusive — sob todas as exigências do prontuário e da elegância gramatical e não é científica. A precipitada adopção das palavras “ciência” ou “científico” cada vez que se pretende cunhar uma matéria ou uma disciplina como sendo rigorosa — ou até mais rigorosa que outras — é um erro que já seria altura de corrigir.