No número sete da revista BANG! podem ler, entre outros artigos muito bem escritos (Livros Míticos ou a Biblioteca (Quase) Invisível de António de Macedo e H. P. Lovecraft - Um Ícone da Cultura Ocidental Contemporânea de José Carlos Gil, por exemplo), um ensaio de minha autoria, intitulado A Companhia dos Cegos.
Consiste numa leitura paralela de Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago (1995) e O Dia das Trífides de John Wyndham (1951): um texto que interroga o modo como o tema da cegueira é tratado de modo diferente em ambos os títulos - um de literatura considerada erudita e outro pertencente aos géneros do horror e da ficção científica. Deixo-vos um excerto, em jeito de primeira dose gratuita:
Consiste numa leitura paralela de Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago (1995) e O Dia das Trífides de John Wyndham (1951): um texto que interroga o modo como o tema da cegueira é tratado de modo diferente em ambos os títulos - um de literatura considerada erudita e outro pertencente aos géneros do horror e da ficção científica. Deixo-vos um excerto, em jeito de primeira dose gratuita:
«A monstruosidade em Ensaio Sobre a Cegueira e O Dia das Trífides não é, com efeito, uma consequência da cegueira. Nasce, com maior autoridade, das nossas próprias noções sobre o que é normal e higiénico; da ideia que, na cultura ocidental, qualquer coisa que se distancie, pela singularidade, dos modelos afeiçoados aos cânones, se transforma numa contagiosa fonte de horrores. Quando lemos sobre um cego a apalpar as fezes dos companheiros de reclusão enquanto procura o buraco da latrina para se aliviar, não podemos fazer nada a respeito disso. E quando lemos sobre trífides a alimentarem-se de corpos em decomposição, também não. Ambas as situações são obscenas fugas à norma – acidentes de percurso: testemunhá-las deixa-nos muitíssimo vulneráveis. Uma vulnerabilidade que se mistura com o nojo, mas esse sentimento é, em última análise, de pechisbeque diante da biologia. Convido-vos a uma pequena experiência: façam uma bola de saliva dentro da boca e engulam-na; em seguida, façam outra bola de saliva, cuspam-na para dentro de um copo e engulam-na. Se não tiveram problemas em realizar a primeira operação, certamente irão recusar-se a fazer a segunda. Mas porquê? A saliva é a mesma; não adquiriu, magicamente, propriedades tóxicas ao ser vertida para o copo. A experiência mostra que o conceito que classifica o que é asqueroso nada tem a ver com a biologia, mas tem tudo a ver com a cultura. «Pode ser que o nojo tenha uma estrutura que se impõe nas nossas noções culturais?», pergunta William Ian Miller no livro The Anatomy of Disgust (Harvard University Press, 1997. Pág. 62). O livro de Miller é o melhor ensaio que conheço sobre a temática do nojo, enquanto agente formador do humano; uma das ideias que o autor avança, para interrogar como é que ele se manifesta, relaciona-se com o tema da Inconformidade: «(…) coisas que metem nojo porque falham em se encaixar nas nossas expectativas. Explica-se, desse modo, o nojo que pode provocar a pele de um homem que possua o toque das escamas de um réptil e o nojo que pode provocar as escamas de um réptil que possuam o toque da pele humana.» Nessa perspectiva, os militares e os cegos “malvados” [sic] de Saramago, mais os hooligans de Wyndham possuem uma falsa humanidade: são humanos só porque não são, morfologicamente, monstros!... Esse papel está, em exclusivo, reservado às trífides.
Em suma: nós, leitores desprevenidos, podemos sentir nojo pelo médico cego que tacteia na trampa em busca da cloaca, mas imagino que uma enfermeira, por exemplo, que contacta com fezes, escarros e sangue o dia inteiro, tenha uma reacção diferente ao ler o mesmo texto. Talvez piedade. Ou ennui…»
A revista BANG! está disponível aqui.
Em suma: nós, leitores desprevenidos, podemos sentir nojo pelo médico cego que tacteia na trampa em busca da cloaca, mas imagino que uma enfermeira, por exemplo, que contacta com fezes, escarros e sangue o dia inteiro, tenha uma reacção diferente ao ler o mesmo texto. Talvez piedade. Ou ennui…»
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