segunda-feira, 14 de setembro de 2009

De quinta-categoria

Já alguém ouviu falar no escritor canadiano Robertson Davies (1913-1995), autor de inúmeros romances, contos, ensaios e libretti?
Até há poucos dias, este autor era, para mim, um desconhecido, até que um email que me foi enviado por um site onde, normalmente, costumo comprar livros antigos mostrou-me uma lista de recomendações, nas quais figurava a Trilogia de Depford de Davies. A descrição intrigou-me, de imediato, e mandei-a vir. Acabei de ler o primeiro livro da trilogia, intitulado Fifth Business, e fico feliz por revelar que se trata de um livro absolutamente extraordinário.

Já há algum tempo que não lia um livro tão bom.
Mágico, irónico, inteligente, surpreendente, são palavras que, na ressaca da leitura, me parecem todas ineficazes para evocar os sentimentos que esta obra incitou.
A história tem início na aldeia canadiana de Depford, cadinho em que são formadas as personagens que iremos seguir ao longo de três volumes, cada um concentrado em demonstrar a vida de uma das três personagens que esteve envolvida num bizarro acidente: um miúdo atirou uma bola de neve a outro, mas este esquivou-se e o projéctil atingiu uma mulher grávida, provocando um parto prematuro. O bebé, nascido quatro meses antes do tempo, sobreviveu e, passados uns anos, tornou-se um famoso ilusionista. O miúdo que atirou a bola escamoteou a culpa da memória e transformou-se num riquíssimo homem de negócios. O labéu caiu, pois, no colo daquele que se esquivou. Roído pelas dúvidas e pelos remorsos, a personagem principal de Fifth Business, o professor universitário e hagiógrafo extraordinário Dunstan Ramsay, vai tornar-se o protector da mulher lesada, ao mesmo tempo que vê nela uma espécie de santa. Será que é mesmo?

O título Fifth Business alude à designação dramatúrgica pela qual são chamadas as personagens que estão ao serviço da fluidez narrativa de uma peça teatral: não são as principais, nem as secundárias, quanto muito podem chamar-se as de "quinta categoria". Ou seja, no pequeno drama que consiste o incidente da bola de neve, Ramsay vê-se como uma personagem de quinta categoria: alguém essencial ao desenvolvimento dos acontecimentos, sem dúvida, mas que se encontra à margem dessas minuciosidades. Será que é assim? Será que a leitura que a personagem faz de si própria corresponde à realidade? E, se não corresponde, porque é que ela pensa dessa forma?

Fifth Business contém passagens excepcionais, assim como monólogos inesquecíveis, vindos das bocas das mais excêntricas criaturas, como, por exemplo, o padre jesuíta que se torna amigo de Ramsay. Descobri numa pesquisa que fiz no Google que existe uma edição - algo obscura? - deste romance em português do Brasil (O Quinto Personagem), mas, mesmo assim, penso que não será errado dizer que ele é um tesouro (infelizmente) ainda por descobrir. Quem souber ler em inglês, descubra-o na versão original, já! Neste preciso momento. Vão à Amazon ou a outro site qualquer do mesmo género e comprem Fifth Business sem hesitar.

Não se trata de um romance de literatura fantástica, mas o tom e os acontecimentos aproximam-no com elegância desse género, deixando magia nas pontas dos dedos, mais ou menos parecida com o pó das asas de uma borboleta. É um livro bom que se farta. É um livro como já não se fazem. É, de certeza, "aquele" livro que vocês querem ler.
M-a-r-a-v-i-l-h-o-s-o-!

(Assim que tiver lido os volumes seguintes da trilogia irei escrever sobre eles.)