quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Alfacinha

(Retrato de um Lisboeta?)

Uma alcunha muito mal explicada, cuja origem nunca foi apurada...
Que eu saiba, surge pela primeira vez no livro Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, publicado em 1846. Diz ele na já famosa passagem que «Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço (...)» (Guimarães Editores, 2001. Capítulo VII, páginas 39-40). Será que a alcunha já existia em uso corrente ou foi uma completa invenção do escritor? E a sê-lo, qual o sentido que ele lhe quis dar? Antes desta passagem, ele tem outra: «Coroai-vos de alface, e ide jogar o bilhar (...)» (pág. 39). O certo é que se tornou a alcunha dos lisboetas, para o bem ou para o mal, mas tenho dúvidas quanto às histórias de embalar que contam que éramos uns inveterados comedores de alfaces ou que as alfaces eram muito populares na cultura dos saloios dos nossos arrabaldes. Já agora: alface deriva da palavra árabe al-khass.
saloio tem outra origem, mas também árabe: vem da palavra çahrauii que significa apenas homem que habita no deserto e acho que surge pela primeira vez como çaloio no final do século XVIII. Em vista disso, é legítimo achar que os proverbiais saloios de Lisboa começaram por ser alguns mouros (vindos do Norte de África, talvez?) que habitaram nas mourarias medievais e se dedicaram, entre outras actividades, à agricultura; mas foi, de certeza, uma agricultura muito simplória, mais para consumo próprio que para venda. Hoje toda a gente usa a palavra saloio para designar, de maneira geral, um agricultor, seja ele de Lisboa ou não; ou até, de modo pejorativo, quando se quer chamar parolo a alguém.
Vale bem a pena recordar algo que eu não me canso de dizer: a maioria das coisas que nós achamos que são tradicionais, castiças, antigas, etc., foram inventadas há pouco mais de cento e cinquenta ou duzentos anos. Tripeiro, por exemplo, embora exista desde o século XV, só passou a ser usado como sinónimo de "portuense" no século XIX.