sexta-feira, 25 de maio de 2012

Arco do Triunfo da Rua Augusta


O Arco do Triunfo da Rua Augusta foi concebido pelo arquitecto "pombalino" Eugénio dos Santos, em 1759, mas somente em 1815 se ergueram as suas colunas; vinte e oito anos depois (durante o governo de António da Costa Cabral), foi aberto um concurso público para a construção do coroamento destas e, no ano seguinte, foi escolhido para o efeito o projecto do arquitecto Veríssimo José da Costa. Com contribuições escultóricas dos artistas Anatole Célestin Calmels, Vítor Bastos e Leandro Braga (assistente de Calmels), iniciadas em 1873, o monumento foi finalmente inaugurado dois anos depois.

Enquanto escultor e entalhador, Braga trabalhou com clientes de prestígio, realizando peças diversas para locais como o Palácio Foz, na Praça dos Restauradores, em Lisboa, e o Chalet Biester e o Palácio da Quinta da Regaleira, em Sintra. No conjunto escultórico do Arco do Triunfo da Rua Augusta, Calmels esculpiu as três personagens cimeiras que, de modo mais ou menos consensual, têm sido interpretadas como sendo três alegorias: a Glória coroando o Génio e o Valor. Com efeito, a coroação das alegorias remete para os tratamentos artísticos das coroações dos iniciados pela Beatitude em certos ritos iniciáticos; interpretação "esotérica" reforçada pela existência de uma ara situada atrás da personagem central e que sustenta mais duas coroas de louros (à espera de outros iniciados). A personagem à esquerda do observador assemelha-se às alegorias da Fortaleza que têm como modelo a deusa grega Atena (como a que decora o túmulo do Papa Gregório XIII - cujo nome baptizou o calendário gregoriano -, esculpida pelo artista italiano Camillo Rusconi). A personagem à nossa direita também remete para as costumeiras reproduções do Génio das Artes, que faz-se acompanhar por instrumentos musicais, parafernália de pintura e até livros (todos elementos existentes nesta escultura). Outra interpretação que pode ser feita sobre as anteriores, e que não as desvirtua, é a de que as personagens masculina e feminina que estão a ser coroadas também compõem uma alegoria maçónica para o Sol e para a Lua, da mesma ordem que, por exemplo, as obras escultóricas ou pictóricas que mostram, lado a lado, Apolo e Ártemis.


Aliás, esta leitura apolínea corresponde-se com um detalhe curioso, somente visível aos visitantes do monumento, in situ: sob uma das asas, a personagem masculina oculta uma estatueta de um homem barbado, que agarra um bastão. Várias interpretações têm sido avançadas para explicar a identidade desta personagem, desde a que consiste numa alegoria quinto-imperial até à de que se trata de uma estátua de Ulisses, logo uma alusão à lenda da sua fundação da cidade de Lisboa. A minha humilde proposta para a decifração deste enigma é a de que talvez seja uma criação de alguma maneira relacionada com a estátua romana de Constantino como Apolo, deus do Sol, que era conservada no interior do Milion de Constantinopla - o pavilhão formado por dois arcos do triunfo, mais uma cúpula, a partir do qual eram medidas todas as distâncias entre as cidades do império e a Nova Roma. Nos dias de triunfo, essa estátua de Constantino-Apolo era levada numa quadriga até ao hipódromo e todos podiam ver a pequena figura alada que ela trazia na mão: o espírito-guardião da própria cidade. À luz desta informação histórica, não é nenhuma impossibilidade que a estatueta quasi-oculta personifique em pedra o "espírito-guardião" de Lisboa. Não faz sentido? Faz sentido? É um contributo que deixo para este debate.

As esculturas de Bastos no Arco do Triunfo da Rua Augusta são, da esquerda do observador para a direita: uma alegoria do Rio Tejo, uma estátua de Viriato, outra de Vasco da Gama, uma de Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, uma de D. Nuno Álvares Pereira e uma alegoria do Rio Douro. A tradução da inscrição em latim («virtvtibvs maiorvm vt sit omnibvs docvmentvm. Pecvnia pvblica dicatvm») que pode ler-se no pódio é «às virtudes dos maiores, para que a todos sirva de ensinamento. Dedicado a expensas públicas».
No que concerne a esta inscrição, chamo a atenção para o que Justino Mendes de Almeida apontou no Dicionário da História de Lisboa na entrada que escreveu sobre o Arco do Triunfo da Rua Augusta: «Curiosa a "guerra" filológica travada entre os autores do projecto final, que redigiram um texto, e a Academia das Ciências de Lisboa, com relevo para Augusto Soromenho e D. José de Lacerda, que impuseram outro bem diferente. Ainda assim, os primeiros "vingaram-se": onde os académicos escreveram SINT, em concordância com "virtudes", os escultores registaram SIT, em ligação com a ideia genérica de "monumento", subentendida». É um sinal de que as boutades das quais a história também se faz não podem iludir os hermeneutas.  

Vale ainda a pena cotejar estas estátuas do Tejo e do Douro com as homónimas que se encontram no passeio da Avenida da Liberdade, da autoria do escultor setecentista Alexandre Gomes: destinadas a um chafariz que nunca chegou a ser construído no Campo de Santana, foram adornar o célebre (e desaparecido) Passeio Público (abrangia a área entre as actuais Praça D. João da Câmara - em frente à estação ferroviária do Rossio - e Praça dos Restauradores e terminava onde hoje a Rua das Pretas encontra a Praça da Alegria. Notem que a nossa Praça da Alegria era, na altura, a Praça da Alegria de Cima, pois no extremo Norte do Passeio Público, para lá do muro, ficava uma praça chamada Praça da Alegria de Baixo). Construído na segunda metade do século XVIII, após o terramoto de 1755, o Passeio Público pouco tinha de "público", pois era muralhado e nele só entrava a elite. Em suma, era um grande parque, cheio de fontes e diversos cursos naturais de água que nessa época ainda sulcavam o solo daquilo que viria a ser, no final do século XIX, a Avenida da Liberdade. O principal pugnador da Avenida da Liberdade (contra quase toda a opinião pública) foi Rosa Araújo, o único presidente da câmara de Lisboa que foi pasteleiro antes de ser político. O projecto da Avenida da Liberdade foi gizado pelo arquitecto Frederico Ressano Garcia, que também projectou a Praça Marquês de Pombal e a Avenida 24 de Julho. Hoje pouquíssimo resta dos inúmeros fontanários e estatuária do Passeio Público. Algumas peças encontram-se, hoje, no Museu da Cidade (Palácio Pimenta), no jardim do Miradouro de São Pedro de Alcântara e, como vimos, no caso das alegorias do Tejo e Douro, na Avenida da Liberdade.
       
A esta altura vale a pena pensar um pouco sobre o que é, afinal de contas, um arco do triunfo. Em síntese, quando um imperator romano operava uma grande vitória sobre os exércitos bárbaros, o senado concedia-lhe o direito de realizar uma marcha triunfante, na qual ele, à cabeça do seu exército, entrava na cidade com espectacularidade. De maneira geral, estas marchas - triunfos - seguiam a chamada via sacra, que dava entrada em Roma pelo lado meridional: ou seja, deixando o Coliseu para trás, ao longo do Mons Palatinus (do qual deriva a nossa palavra palácio - os palácios eram apenas as casas das famílias de elite erguidas no Monte Palatino) na parte mais velha da cidade, até ao famoso Fórum e em direcção ao templo dedicado a Júpiter no Monte Capitólio. Nesse templo penduravam-se as grilhetas dos prisioneiros, expunha-se o espólio, do qual a parte mais simbólica eram sempre os portões partidos das cidades conquistadas, e faziam-se os sacrifícios e festividades rituais. Em sequência, os imperadores mandavam construir arcos dos triunfos ao longo da via sacra, de modo a que as suas conquistas, como é óbvio, não fossem esquecidas - e, de facto, todos os arcos dos triunfos (ou seja, arcos construídos para lembrar os triunfos dos imperadores), cumeados por alegorias da Vitória (e outras) e decorados com baixos-relevos que narram histórias de campanhas militares bem-sucedidas, são arquitectados ao jeito dos portões das cidades: são as entradas triunfantes dos cidadãos mais ilustres; posto que possuir o estatuto de cidadão romano, pelo menos até ao século III, a partir do qual ele passou a ser automático e universal para todos os indivíduos do império de molde a atender à escassez de legionários, era uma honra por mérito próprio.



Na antecâmara do terraço do Arco do Triunfo da Rua Augusta, onde se encontra o mecanismo do relógio que volta a face para a Rua Augusta.


No meu romance Lisboa Triunfante (Saída de Emergência, 2008), o Lagarto perde para a Raposa: mas ei-lo, no mecanismo do relógio do Arco do Triunfo da Rua Augusta, a contar a passagem do tempo, à espera do momento ideal para emergir com nova pele.





Fotos de Gisela Monteiro: http://www.flickr.com/photos/agmonteiro.